Por Rafael Tomyama (*)
Hermila Guedes interpreta a protagonista de O Céu de Suely, filme de Karim Aïnouz ambientado na cidade cearense do Iguatu. Sozinha, com filho, e sem perspectiva no calor torrencial do semiárido do Nordeste, resta à desempregada arriscar a sorte migrando para o Sul.
A história dela se enlaça com a do mototaxista João, que se vira para escapar em meio ao abandono e à precariedade do mundo do trabalho, e bate de frente com o moralismo conservador em polvorosa. Essas vidas aí retratadas, as que desfilam na realidade concreta, estarão atentas ou indiferentes aos conchavos do meio político?
A maioria dirigente do PT no Ceará, alheia aos tejus se esgueirando no chão seco esturricado da caatinga, achou por bem aumentar a aridez do ambiente político não só no sertão. No Iguatu, foi além: Enxertaram dentro do PT Ilo José Neto, herdeiro de uma das oligarquias mais conservadoras do estado, filho do deputado Agenor Neto (MDB), para imediatamente concorrer como candidato a prefeito.
A manobra, além de atropelar o diretório local, teve como efeito prático a implosão da pré-candidatura a prefeito do petista histórico Dr. Sá Vilarouca. Diante da desmoralização imposta por seus próprios companheiros, Sá se desfiliou do partido, acompanhado de vários outros militantes, e foi se lançar pelo rival PDT.
Episódios semelhantes ocorreram em pequenos municípios, do litoral e serras ao sertão Não satisfeito em refazer coligações com notórios antipetistas, golpistas e até bolsonaristas, o campo majoritário (ou “democrático”) defenestrou seus próprios apoiadores para impor portas abertas aos seus outrora adversários. Não sem reações e protestos, como houve em Cascavel, Palmácia, Reriutaba, Icó, Nova Olinda, Crato e várias outras cidades.
Podres poderes
O deputado estadual De Assis Diniz (PT), ligado ao deputado federal Guimarães, vice-presidente nacional do PT, líder do grupo que controla a maioria do diretório estadual, em entrevista recente tentou justificar o tratoraço como o “cumprimento de acordos” que possibilitaram a vitória eleitoral de Elmano (PT) governador, no 1º turno, em 2022. Que acordos, cara-pálida?
Até as pedras de urânio de Santa Quitéria sabem que Elmano foi eleito com base num arco de alianças, digamos, heterogêneo, repetindo a fórmula que deu sustentação aos governos anteriores de Camilo Santana (PT), atual senador licenciado e ministro da Educação do governo Lula 3, e de Cid Gomes, atual senador (de volta ao PSB).
Camilo, rompido com Ciro Gomes (PDT) desde a eleição passada, quando este preferiu desmanchar o alegado compromisso para escolha da então vice-governadora Izolda Cela
para substituí-lo, aparece como principal herdeiro do êxodo de políticos pedetistas a cada janela partidária e um dos avalistas de tais acordos pelo interior do estado.
No condomínio partidário em que coabitam Guimarães, Camilo e Elmano – além de alguns outros mais, como o deputado federal José Airton –, e transitam entre influentes lideranças retrógradas com quem partilham o poder político, buscam ainda se fortalecerem perante os interesses econômicos, para seguirem incidindo sobre a pauta política nacional.
É neste contexto que se insere, por exemplo, a declaração recente do governador Elmano de que pretende fazer constar bíblias nas escolas públicas (como se já lá não estivessem). Não se trata de um ponto fora da curva da tática de acenar para o público evangélico, notoriamente conservador. E traz em si outros elementos perigosos, autocráticos e limitantes das possibilidades de avanços nas conquistas efetivas de direitos do povo-que-trabalha.
Enquanto isso, no banquete dos bacanas, o quão distantes estão da realidade dos desvalidos, Hermilas e Joãos, que só podem almejar viver uma noite no paraíso?
Céu de brigadeiro
Mesmo nas cidades acima de 100 mil habitantes – Caucaia, Juazeiro do Norte, Maracanaú e Sobral, além da capital Fortaleza – que não estão submetidas ao arbítrio do Diretório Estadual, prevalecem o pragmatismo nos conchavos das políticas de alianças.
Em Fortaleza, a ex-prefeita e atual deputada federal Luizianne (PT) teve sua pré-candidatura barrada pela postulação do deputado e presidente da Assembleia Legislativa, Evandro Leitão (ex-PDT).
Apressadamente filiado ao PT em dezembro do ano passado, houve denúncias de que o seu grupo de apoiadores com agentes externos e governistas lançou mão de interferências e pressões para cooptar lideranças petistas e viabilizar seu nome no Encontro do PT, ocorrido em abril.
A chapa, que contou com a participação da Articulação de Esquerda nessa disputa, uniu as forças críticas ao processo e em defesa do nome de Luizianne. No entanto, mesmo tendo sido a mais votada, acabou suplantada pelas outras cinco chapas que aderiram à tese pró-Leitão.
A partir desse acúmulo das forças e militantes com as quais protagonizamos o enfrentamento na capital, nos somamos às insatisfações nas bases por todo estado para juntos fazermos frente ao pragmatismo oportunista que descaracteriza a trajetória histórica de lutas do PT.
É assim que nos integramos ao Manifesto do novo Campo de Esquerda, lançado oficialmente no final de julho, agregando setores amplos e movimentos sociais, para repensar os rumos do partido e da esquerda no Ceará e, frente aos planos mirabolantes de domínio da imaginação, construir alternativas autênticas democráticas, populares e socialistas.
Depois de Élio Petri sonhar o destino da classe operária, a sintonia do novo milênio está na voz da banda Melin, que ouvi dizer que existe paraíso na terra e coisas que eu nunca entendi…
(*) Rafael Tomyama é vice-presidente do PT Fortaleza e membro titular do Coletivo da Secretaria Nacional de Meio Ambiente e Desenvolvimento do PT.