Por Simone Daumas
Graças à pandemia que assolou a humanidade em março de 2020, a ideia de Estado mínimo, embutida na ideologia neoliberal, caiu por terra, ficando evidente que investimentos estatais em saúde pública e em programas de proteção e assistência às pessoas e empresas mais vulneráveis seriam necessários para enfrentar a crise sanitária e econômica.
No entanto, o fenômeno da precarização das condições de trabalho, outro pilar do neoliberalismo, se alastrou ainda mais por um grande contingente de pessoas, em meio ao índice recorde de desemprego, agravado pela pandemia. Com o aumento da demanda, surgiu uma nova legião de entregadores de mercadorias e de alimentação em domicílio.
Nos últimos anos, diante dos efeitos duradouros da crise econômica de 2008 e do consequente aumento do desemprego, um conjunto de ideias ganhou força no imaginário popular: a necessidade de flexibilização das leis trabalhistas para a criação de novos postos de trabalho, a inutilidade dos sindicatos e as vantagens do empreendedorismo individual. Tal ideário, muito disseminado na mídia, facilitou a aprovação da reforma trabalhista brasileira em 2017. Entretanto, a criação de novos postos de trabalho depende do aquecimento da economia, não da retirada de direitos trabalhistas, como ficou comprovado depois. Segundo a CUT, a reforma trabalhista completou três anos “sem gerar os 6 milhões de empregos prometidos e com um exército cada vez maior de trabalhadores e trabalhadoras informais e sem direitos”. [1]
Como um conjunto de ideias tão prejudiciais aos trabalhadores pode ser inculcado e propagado por eles mesmos? Discutindo o conceito de ideologia, o filósofo Terry Eagleton elenca várias definições, sendo que uma delas se encaixa perfeitamente aqui: “ideologia significa as ideias e crenças que ajudam a legitimar os interesses de um grupo ou classe dominante, mediante sobretudo a distorção e a dissimulação”.[2] Em outras palavras, a ideologia dominante “cola” na mente do sujeito se encontra ali um terreno fértil, ou seja, desejos genuínos que ela, de forma ilusória, promete satisfazer.
Ganhar dinheiro por conta própria é um sonho para muitos, pois parece implicar mais chances de sucesso e liberdade, inclusive para estabelecer a própria jornada de trabalho. O que se oculta aqui é que o “empreendedor individual”, além de não ter os direitos garantidos aos empregados formais, como férias e 13º salário, arca sozinho com oscilações em seus ganhos e não tem garantia de aposentadoria ou pensão, em caso de invalidez, velhice ou morte. Quanto à jornada, ele precisa dedicar mais horas ao trabalho, para garantir o seu sustento, do que um empregado com salário e horário fixos.
Vemos a ideologia do empreendedorismo individual em operação e, ao mesmo tempo, em processo de desmonte, assistindo ao filme Você não estava aqui (2019), do cineasta Ken Loach. Trata-se da história de um trabalhador que cai na armadilha de um discurso ideológico e se vê depois à mercê de uma grande empresa de logística, que lhe retira o que é mais precioso: o tempo e, junto com ele, a qualidade do convívio familiar.
A primeira cena é a entrevista de emprego do personagem Ricky, ex-operário da construção civil. Ricky diz que deseja trabalhar sozinho: “ser meu próprio chefe”. O gerente explica que não há contrato de trabalho, nem salário, nem metas a atingir, apenas o pagamento de honorários pela prestação do serviço de entrega de mercadorias, segundo os padrões estabelecidos pela empresa. Ricky responde que esperava por uma oportunidade dessas há muito tempo; não pensa duas vezes e assina o contrato. À noite, ele explica à esposa Abby, que trabalha como cuidadora, que terá seu próprio negócio e será um franqueado da empresa, podendo faturar 1.200 libras por semana, mas ela calcula que para isso ele terá que trabalhar 14h por dia, 6 dias por semana. Mesmo assim, Ricky convence a mulher a vender o carro que ela usa para trabalhar, para dar entrada no financiamento de um furgão, seu novo instrumento de trabalho.
É curioso, para não dizer cruel, que um trabalhador tenha que contrair uma dívida para poder trabalhar. Assim, voltamos mais de 70 anos atrás para fazer um paralelo com o filme Ladrões de bicicleta (1948), ícone do neorrealismo italiano, no qual o personagem Antonio penhora suas roupas de cama para comprar uma bicicleta, necessária para conseguir o emprego de colocador de cartazes, no contexto do pós-guerra na Itália.
No filme do cineasta britânico, acompanhamos Ricky, sempre de cenho franzido, tenso e apressado, literalmente correndo para entregar encomendas, em prazos exíguos, para clientes hostis. Ao mesmo tempo, assistimos à pesada rotina de Abby, cuidando pacientemente de idosos e deficientes em seus domicílios, em jornadas exaustivas. Sobra pouco tempo para o casal cuidar dos dois filhos. Aos poucos, o que era sonho revela-se um pesadelo. Ricky percebe que não tem autonomia nenhuma, pois deve cumprir horários rígidos, não tem tempo sequer de ir ao banheiro, nem pode tirar um único dia de folga. A tese de fundo é que o grande capital ilude o trabalhador para retirar-lhe direitos, transferir-lhe riscos e, consequentemente, exorbitar seus lucros. O filme revela a realidade por trás da ideologia mistificadora e retrata a precarização da vida, subtraída pelo trabalho, no capitalismo do século XXI. Desnuda, a ideologia torna-se repulsiva e frágil como um esqueleto ambulante.