Por Valter Pomar (*)
Ontem a Voz do Brasil falou do novo arcabouço fiscal, incluindo várias frases do ministro Fernando Haddad e da ministra Simone Tebet, esta última particularmente entusiasmada.
O novo arcabouço fiscal está sendo proposto como substituto ao “teto de gastos”, nome impopular dado a emenda constitucional aprovada, no governo Temer, para regular as despesas do governo.
O teto de gastos serviu para legalizar um arrocho nas contas públicas. Arrocho seletivo, porque uma parte dos gastos continuava protegido, enquanto outra parte era arrochada.
Aliás, esta é uma característica de várias iniciativas que, nas últimas décadas, supostamente pretendiam garantir o “equilíbrio” via controle das despesas.
Foi assim com a Lei de Responsabilidade Fiscal, imposta no governo FHC. Foi assim com a regra do superávit primário, imposta nos tempos em que Palocci era considerado um companheiro. E foi assim com o “teto de gastos” de Temer.
No lugar de metas sociais, de crescimento e desenvolvimento, a lógica do controle de despesas, tendo como método prejudicar um setor da sociedade, para garantir os ganhos cada vez mais excessivos de uma minoria.
De um lado, as vítimas de sempre: os mais pobres, os trabalhadores, os pequenos proprietários. Doutro lado, os beneficiados de sempre: os salários e rendas mais altas, os grandes empresários, em particular os que ganham dinheiro no mercado financeiro, com a alta taxa de juros e com a dívida pública brasileira.
Por isso mesmo, durante o governo Temer e, depois, durante o governo cavernícola, o PT sempre criticou o teto de gastos. E Lula, na campanha de 2022, prometeu que ia acabar com o teto de gastos.
Supostamente, este é o objetivo do novo arcabouço fiscal: se ele for aprovado, acaba o teto de gastos.
Entretanto, cabe perguntar: o que está sendo proposto, pelo ministro Haddad, com o apoio entusiasmado da ministra Tebet, é uma mudança efetiva, em benefício dos mais pobres, dos trabalhadores, dos pequenos proprietários? Ou equivale a trocar seis por meia dúzia?
O ministro Haddad diz que se trata de uma novidade; e que o Brasil sairá ganhando com a troca, do teto de gastos pelo novo arcabouço fiscal.
Eu também gostaria que fosse assim.
Mas ao ler e ouvir o que Haddad disse, penso que estamos diante, não de um arcabouço fiscal, mas sim de um novo calabouço fiscal. Um pouco mais espaçoso, mas ainda sim um calabouço.
Vale lembrar que ainda não foi divulgada a versão final da proposta. Portanto, pode ser que – em relação ao que li e ouvi – alguma coisa mude para melhor.
Vale lembrar, também, que pode mudar para pior, pois quem vai deliberar a respeito é o Congresso nacional, onde a extrema direita e a direita neoliberal são ampla maioria.
Feita esta ressalva, alguns comentários mais.
Primeiro, é muito grave que o ministro tenha aberto mão, já na largada, da intenção de criar novos impostos que façam os ricos pagarem a conta.
Haddad, na entrevista citada, diz que esta postura seria a materialização de uma promessa de Lula, a saber: “colocar o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda”.
Nesta linha, Haddad diz que não vai criar novos impostos, nem vai aumentar a carga tributária, que seu objetivo é fazer pagar os que deveriam pagar, mas não pagam, os impostos já existentes. Ou seja: os que sonegam etc.
Acontece que isto não é suficiente, nem é justo. Não é suficiente, pois precisamos de muitos recursos para poder fazer o país crescer e se desenvolver.
E não é justo, pois os impostos no Brasil são altamente regressivos. E do que precisamos são novos impostos que recaiam sobre o patrimônio dos que são muito ricos.
Temos maioria no Congresso para aprovar isto? Provavelmente não. E nunca teremos, se continuarmos abrindo mão deste objetivo. Mas dizer que é possível ajustar as contas nacionais sem tributar pesadamente o patrimônio dos ricos é aceitar, como horizonte, o status quo que temos hoje.
Por tudo isso, é um imenso desserviço abrir mão, já na largada, do que é necessário e indispensável, se realmente quisermos transformar o Brasil.
Este é o primeiro problema da proposta de arcabouço fiscal.
O segundo problema é que ela reintroduz a lógica presente no “teto de gastos”, embora com outras regras e nomes, bem mais elegantes do que o estabelecido pelo vampiro golpista.
A regra proposta por Haddad & Tebet é a seguinte: as despesas aumentarão até o teto de 70% do crescimento das receitas. Portanto: se produzirmos mais, se arrecadarmos mais, só 70% disso pode se converter em aumento das despesas.
Se o país estivesse bem das pernas, esta regra poderia ser classificada como prudente. Mas num país que precisa desesperadamente de crescimento, de desenvolvimento, de bem estar social, essa regra 70/30 é uma bola de ferro presa no pé do Estado.
Na prática, o que se está propondo é o seguinte: o papel do Estado na economia vai ser tributar 100, devolver 70 para a sociedade e usar 30 para abater dívidas.
Com palavras novas, é a mesma lógica que predominou na Lei de Responsabilidade Fiscal, no superavit primário, no teto de gastos etc.
Há quem acredite que, fazendo isso, o Banco Central vai reduzir os juros. E, com o BC reduzindo os juros, o espírito animal do empresariado brasileiro vai fazer a sua parte: os empresários vão investir e com isso o país vai crescer de maneira “sadia” (a maneira não sadia seria, nesta lógica, o crescimento impulsionado via endividamento público).
Pode ser que a crença acima vire realidade?
Pode ser, sempre pode ser, nesse mundo passa de tudo.
Mas o mais provável é que prevaleça o que sempre prevaleceu em nossa história republicana: só tivemos saltos em nosso desenvolvimento, quando o Estado assumiu a dianteira.
Mas como o Estado vai assumir a dianteira, com uma bola de ferro atada no pé do Estado?
Há quem argumente que a bola não é tão pesada assim, que podemos repetir a performance do segundo governo Lula. No mundo dos cálculos econométricos, isso até pode parecer assim; mas no mundo da economia política, o que se pode ver é um crescimento inferior ao necessário para vencermos, por exemplo, nas eleições de 2024 e 2026.
Além disso, há um “detalhe” adicional, que vários economistas petistas e amigos tem destacado: a lógica 70/30 aponta para uma redução do setor público na economia. E, ato contínuo, serve de argumento para a proposta de redução da carga tributária sobre os ricos.
Claro, se o novo arcabouço fiscal for aprovado tal como está sendo apresentado, algumas “despesas” (como saúde, educação e previdência) estarão relativamente protegidas. Digo relativamente, pois se trata de manter o status quo, que não é bom.
Mas para que algumas “despesas” sejam relativamente protegidas, outras vão ter que sofrer mais, para que média final possa ser 70/30.
A proposta do novo arcabouço fiscal prevê, também, uma regra anticíclica, que Haddad chamou de “colchão”; mas o colchão é fininho como aqueles levados para acampamentos. Segundo entendi, em momentos de baixa arrecadação, o colchão seria a inflação mais 0,5%.
Se a economia brasileira e mundial estivessem bem, se a situação social fosse razoável, esta regra estaria ótima. Mas num país cheio de desigualdades estruturais, necessitando crescer muito e rapidamente, em tempos de crise e de instabilidade mundiais, inflação mais 0,5% não merece ser chamada de política anticíclica.
A proposta de novo arcabouço fiscal inclui também outras regras, inclusive a de atingir déficit zero e depois superavit nos próximos anos. Seria uma homenagem involuntária à proposta chamada de “tosca” por uma certa ex-presidenta?
Feitas as contas, se esta proposta de arcabouço fiscal for aprovada e aplicada; e se tudo acontecer como o ministro Haddad e a ministra Tebet prometem, corremos alto risco de entregar o governo enxuto para a oposição assumir em 2027. Pois se não houver uma virada agora, no biênio 2023-2024, o cenário político vai se complicar muito. E o “plano de voo” do arcabouço prevê, implicitamente, que uma virada – se houver – depende do investimento privado e do investimento externo. Previsão que faz sentido, ao menos para quem acredita que a mão invisível do mercado premia quem não gasta mais do que arrecada.
Cá entre nós, de conjunto a proposta não me surpreende. Ela se enquadra no movimento mais geral de adaptar-se à correlação de forças, ao invés de buscar pontos de apoio para virar o jogo a nosso favor. Como disse, em entrevista recente, o secretário-executivo do ministério da Fazenda: “a democracia deve caber na regra econômica”.
(Aqui um parêntesis: fiquei impressionado pela quantidade de pessoas que afirmou ter havido um “equívoco de interpretação” acerca do que disse o secretário-executivo. Ou seja: não é apenas nas notas do BC que o javanês segue em alta. Mas, para infelicidade de quem disse ter havido má interpretação, a proposta de arcabouço fiscal funciona como uma pedra de roseta.)
Isto posto, o que devemos fazer?
Criticar a proposta apresentada, com o objetivo de que ela seja alterada.
Exigir que o governo se comprometa com a tese de uma reforma tributária progressiva, que cobre novos e mais impostos dos ricos.
Exigir que o governo subordine as regras fiscais às metas sociais e de crescimento. Ou seja, submeter as regras econômicas à democracia, e não o contrário.
E mobilizar a sociedade em defesa de mais políticas para os pobres, mais impostos para os ricos.
Se não tivermos êxito nisso, corremos o risco de viver, de novo, o que já vivemos no início do primeiro governo Lula (2003-2006)
Dois anos de juros altos, superavit primário e contenção. Uma derrota nas eleições municipais. E uma crise de governabilidade no biênio pré-eleição presidencial.
Naquela ocasião, foi preciso muito esforço para conseguir dar a volta por cima. Mas, naquela ocasião, enfrentávamos uma única oposição (os neoliberais tucanos) e o mundo estava menos conflituoso. Hoje enfrentamos duas oposições (a de extrema-direita e a neoliberal gourmet) e o mundo está bem mais agitado, a começar pela guerra.
Para não dizer que não falei de flores: hoje é 31 de março, 59º aniversário do golpe militar. Um bom momento para dizer que precisamos derrotar, não só a herança maldita da ditadura militar, mas também a ditadura do capital financeiro, com seus calabouços fiscais e suas regras econômicas, mesmo quando vem embrulhadas como um ovo da Páscoa.
(*) Valter Pomar é professor e membro do diretório nacional do PT