Livro de jornalista norte-americano apresentou Mao Tsé-tung e o partido comunista chinês ao mundo
Edgar Snow
Por Piero Locatelli (*)
Em 1936, um norte-americano de trinta anos viajou de Xangai para uma região remota e montanhosa do noroeste da China, então controlada pelo incipiente Partido Comunista Chinês. Edgar Snow foi o primeiro jornalista a entrar naquele soviete, onde ficou por quatro meses em companhia de agricultores e militantes comunistas. Entre eles estava uma liderança despercebida pelo resto do mundo, o comandante Mao Tsé-tung.
Os “vermelhos” ocupavam então uma região relativamente pequena, onde se protegiam do exército do governo de Chiang Kai-shek e seu partido, o Kuomintang, que haviam empreendido perseguições aos comunistas, e pensavam em estratégias para expulsar as forças japonesas que ocupavam parte do país. Pouco mais de dez anos depois, o exército vermelho venceria as disputas com os japoneses e o Kuomintang, o partido comunista lideraria o país mais populoso do mundo e Mao se tornaria não só presidente, mas um dos rostos mais conhecidos da política mundial.
A estrela vermelha brilha sobre a China, relato de Edgar Snow publicado em 1936, é o primeiro sobre Mao Tsé-tung
A estrela vermelha brilha sobre a China, que resultou da viagem de Snow, é o prólogo mais conhecido desse processo e o primeiro relato sobre Mao. A publicação em 1937 não apenas registrou um momento significativo da história chinesa, mas se transformou em um importante evento dela por si só. A tradução em mandarim no ano seguinte já teria um efeito imediato, inspirando jovens chineses de outras regiões a se juntarem aos rebeldes.
O relato — que enfim chega ao Brasil — é também ponto de partida de um dos movimentos políticos mais importantes do século 20. Em Maoism: A Global History (sem tradução em português), a historiadora Julia Lovell o elenca como ponto de partida de todo o maoísmo: “A estrela vermelha não só determinará a carreira de Snow como cronista da revolução comunista chinesa e como mediador entre os comunistas chineses e o público internacional, mas também transformará Mao em uma celebridade política”.
O maoísmo influenciou grupos diversos em todo o mundo, dos que recebem a simpatia contemporânea, como os Panteras Negras, aos que não sobreviveram ao escrutínio do tempo, como o Sendero Luminoso. Do cineasta francês Jean-Luc Godard aos zapatistas do México, dos guerrilheiros do Araguaia ao atual governo do Nepal, todos foram, direta ou indiretamente, tributários de Snow.
Em mais de quinhentas páginas, Snow conta duas histórias que se intercalam: a de sua própria descoberta da região e a da jornada do Partido Comunista. Ele narra dificuldades logísticas e culturais e a austeridade do local, mas seu encantamento sobrepuja-se. Presciente e imodesto, ele já enfatizava a importância e o ineditismo do próprio trabalho. Ao contar a história dos membros do partido comunista, oferece um relato benevolente e forma um mosaico não somente da história do partido e de sua mobilização, mas também da história chinesa do começo do século 20. Snow se mostra deslumbrado e enfatiza o contraste da região com o restante da China, onde vivia havia quase uma década. Ele escreve que não viu “um só mendigo” durante todas as suas viagens pelo soviete. “O enfaixamento dos pés e o infanticídio eram crimes, a escravidão infantil e a prostituição haviam desaparecido, enquanto a poliandria e a poligamia foram proibidas.”
Como tantos de seu tempo, o livro talvez não sobreviva ao escrutínio dos padrões contemporâneos de jornalismo — ele carece de ceticismo e distanciamento e não deixa clara a precisão de dados e histórias. Porém, um olhar anacrônico do leitor poderia afastá-lo de seu ponto mais importante: A estrela vermelha é um documento valioso para compreender a construção da imagem daqueles líderes e daquele partido, já que moldou como seriam compreendidos e interpretados dali em diante. Snow esboçou o primeiro retrato relevante de Mao, muito antes de ele ser a matéria-prima de um grande culto de personalidade que culminaria na revolução cultural da segunda metade dos anos 60. O Mao descrito por Snow oscila entre uma figura terrena e uma liderança intangível, ainda em construção.
Vitalidade elemental
Ao conhecê-lo, o repórter descreve Mao como uma pessoa ordinária, “uma figura magra, que de alguma forma me lembrava Abraham Lincoln, altura acima da média para um chinês, relativamente curvado, cabelos bastante cheios, pretos e bastante longos, com longos olhos inquisitivos, um dorso de nariz alto e maçãs do rosto proeminentes”. É um Mao bem-humorado, que tem dúvidas, enfrenta suas contradições e é digno de empatia e identificação. Em outros momentos, já se ensaia uma perspectiva mais parecida com a dos bustos e cartazes das décadas seguintes. Snow diz que “sentia uma força do destino em Mao”: “Não era nada imediato ou reluzente, mas um tipo de vitalidade elemental. O que qualquer indivíduo poderia perceber de grandiosidade em Mao emanava de sua desconcertante capacidade de sintetizar e expressar as exigências de milhões de chineses, especialmente do campesinato”.
Snow também esboça perfis de outras figuras essenciais para a história chinesa contemporânea, como Zhou Enlai, futuro premiê do país, e Peng Dehuai, que viria a ser ministro da Defesa. Ele também constrói os momentos-chave do imaginário comunista chinês. Em especial da chamada Longa Marcha, caminhada de 10 mil quilômetros feita pelos revolucionários nos anos anteriores. Perseguidos pelo exército de Chiang Kai-shek no sul da China, 100 mil combatentes do Exército Vermelho haviam rumado ao norte do país para fundar uma nova república. Snow a descreve como “uma odisseia incomparável nos tempos modernos” e que “um dia, alguém escreverá sobre a grandiosidade daquela expedição emocionante”, sem perceber que ele mesmo já fazia um dos relatos mais perenes a respeito dela.
A publicação em português mais de oitenta anos depois do lançamento segue o rastro de um interesse do mundo editorial sobre a China. Há pouco mais de dez anos o país passou a receber traduções diretas de alguns de seus principais textos clássicos, como os Analectos de Confúcio e o Dao De Jing. Já o maior escritor moderno, Lu Xun, ganhou duas traduções diretas recentemente. A estrela vermelha complementa este quadro e aponta outra direção, onde o Brasil está mais defasado: a tradução de textos clássicos a respeito da China contemporânea.
No país, o livro segue sendo tratado com reverência, e Snow é lembrado em uma lápide na universidade de Pequim como “um amigo americano do povo chinês”. Em um prefácio de 1961, o sinólogo John K. Fairbank afirmava que o livro de Snow havia sobrevivido ao teste do tempo não só por ser um registro histórico, mas pela perspectiva profética que trazia sobre um grupo até então desconhecido. Décadas depois, ainda parece ser o caso.
(*) Texto publicado no site https://www.quatrocincoum.com.br
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