O cuidado em liberdade sob ameaça de uma esquerda manicomial? O PT pode mais!

Por Carmem Cavalcanti (*)

Em 1º de janeiro, a alegria tomou posse. Lula subiu a rampa do Planalto e recebeu a faixa de presidente do Brasil das mãos daqueles imprescindíveis para a reconstrução do nosso país: pretos, mulheres, crianças, indígenas, PcDs, professores. Junto, a esperança também tomou posse. Esperança de um país cansado com o desmonte de políticas sociais, cansado das ameaças do governo genocida, que deixou morrer milhares de brasileiros como projeto político.

A esperança venceu! Grandes nomes tomaram posse. Boa parte com apoio da militância petista; outros, nem tanto. Porque é característica nossa a divergência e o debate de ideias. Derrubamos decretos, demos início à retomada da garantia de direitos e do respeito à classe trabalhadora. Aos 20 dias de janeiro, no entanto, choveram mensagens nos grupos de WhatsApp dos movimentos de luta antimanicomial sobre o Decreto nº 11.392/2023 que, dentre outras ações, cria um “Departamento de Apoio a Comunidades Terapêuticas” dentro do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, encabeçado por Wellington Dias, meu conterrâneo, diga-se de passagem. Ora, se a esperança tomou posse, assumindo um discurso que prega a defesa do SUS e do SUAS, como consolidar um departamento que vai contra o que a esquerda defende em relação à assistência social e à saúde de uma população que foi massacrada com as políticas higienistas e eugênicas do governo genocida?

Longe das premissas da Reforma Psiquiátrica que preveem o cuidado em liberdade e defendem a Redução de Danos como diretriz do atendimento a usuários de substâncias químicas ilícitas, as Comunidades Terapêuticas (CTs) consolidam seu tratamento pautado num tripé perigoso: cárcere aliado à tortura física e psicológica, trabalho forçado e imposição religiosa, entes que, historicamente, justificam toda forma de tortura àqueles que “fogem” da norma social apregoada pelo capitalismo. Mas a quem serve o trabalho forçado nas CTs? Um trabalho não pago, travestido de laborterapia, “busca substituir a contratação de profissionais pelo uso de mão de obra dos internos” (p.16)[1], sem remuneração e sem garantia trabalhista. Isto foi apontado no Relatório da inspeção nacional em Comunidades Terapêuticas, elaborado pelo Conselho Federal de Psicologia, pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e pelo Ministério Público Federal (2018).

O princípio da Redução de Danos para o tratamento da dependência química ancora-se no cuidado clínico de um corpo que vai pedir, à custa de vida ou de morte, a introdução de substâncias que o ajudem a minimizar os efeitos da dependência. As CTs, em sua maioria, tratam os usuários com a Bíblia. Não importa a dor que a fissura cause no corpo, “leia a Bíblia, que passa”, “é falta de Jesus”. Um cristo que chama o cassetete de psicóloga. Uma lástima!

Ao contrário das CTs, a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) é resultado da luta histórica da classe trabalhadora militante da causa antimanicomial e prevê o atendimento com respeito à dignidade humana e o cuidado em liberdade. O Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (CAPS-AD) é um serviço da RAPS, de portas abertas, situado em zona acessível à população e que acolhe quaisquer usuários para tratamento. Estes serviços são resultado da promulgação da Lei da Reforma Psiquiátrica[2], cujo projeto saiu das entranhas do nosso partido, com nomes nossos puxando esta pauta.

Contraditoriamente, não é de hoje que o PT estabelece um lobby com as CTs. Lembremos que foi em 2011, durante o governo Dilma, que as CTs foram inseridas na RAPS, através da portaria 3.088/2011. Com total incoerência com a proposta da Reforma, as CTs não cabem na RAPS! Elas vêm para cobrir uma lacuna na política, desresponsabilizando o Estado de suas obrigações socioassistenciais e de saúde junto a um problema que é político. Isto porque encarcerar, seja com o modelo manicomial, seja criminalizando o uso de drogas, é combater a ponta de um problema que tem raízes fecundas. Guerrear contra pretos, empobrecidos e periféricos é um tiro no pé do partido, pois afeta sua base, que sustenta este país com mãos, braços e muito suor.

Não é surpresa que os investimentos estatais em CTs tenham crescido no governo genocida. Mas um governo petista criar um departamento que vai “propor, planejar, analisar, coordenar, apoiar e acompanhar parcerias e contratações na área de cuidado”,[3] nestas instituições violadoras, não representa o que a esquerda petista entende como defesa de Direitos Humanos. Esta política manicomial e encarceradora é defendida pela extrema-direita e não deve, em hipótese nenhuma, ser pautada em um governo que afirma seu compromisso com a população.

A esperança subiu a rampa do Planalto. Mas parece que esqueceu de segurar as mãos daqueles e daquelas a quem as políticas sociais só chegam acompanhadas do camburão da polícia, com ostensividade, coerção e brutalidade. Se quisermos reconstruir o país, devemos assumir a luta e colocar, no horizonte, a ruptura com a ofensiva neoliberal. As rédeas, agora, estão em nossas mãos. O que faremos com elas?

Carmem Cavalcante é psicóloga, doutora em Psicologia, militante do Partido dos Trabalhadores e defensora de direitos humanos.


[1] Ver em Relatório da inspeção nacional em Comunidades Terapêuticas: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/06/Relat%C3%B3rio-da-Inspe%C3%A7%C3%A3o-Nacional-em-Comunidades-Terap%C3%AAuticas.pdf

[2] Ver em Lei 10.216/2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm#:~:text=LEI%20No%2010.216%2C%20DE,modelo%20assistencial%20em%20sa%C3%BAde%20mental.

[3] Ver em Decreto Nº 11.392/2023 que aprova a estrutura regimental e o quadro demonstrativo dos cargos em comissão e das funções de confiança do ministério do desenvolvimento e assistência social, família e combate à fome, e transforma e remaneja cargos em comissão e funções de confiança: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/decreto/D11392.htm

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