MEC: entre treinar para testes ou educar o povo

Por Marcos Francisco Martins (*)

Desde a vitória de Lula sobre Bolsonaro, em outubro de 2022, diversos desafios têm se apresentado ao novo governo, como demonstravam as evidências captadas por muitos(as) petistas e não petistas antes mesmo das eleições: seria difícil vencer o pleito eleitoral; caso se conquistasse a vitória nas urnas, não seria fácil assumir o posto presidencial; empossado o Presidente, seria por demais complicado governar.

De outubro de 2022 até final de janeiro de 2023, essas hipóteses foram comprovadas: o bolsonarismo empregou inimagináveis e ilegais meios e modos para evitar a vitória da “frente” que o PT articulou, que ganhou no segundo turno por apenas 2% dos votos; os atos golpistas-terroristas promovidos pelo bolsonarismo, principalmente os que destruíram parte das sedes dos três Poderes da República, tentaram impedir a posse; mesmo Lula empossado, o cenário econômico, social, político e cultural nacional e internacional está bem mais complicado do que o enfrentado no primeiro mandato dele na Presidência, além da composição da “frente amplíssima”, que tem forças político-ideológicas não divergentes, mas antagônicas.

No campo educacional, os dilemas do novo governo são enormes, até porque se agigantaram os problemas da educação infantil à pós-graduação, sobretudo, depois da gestão do neoliberal Temer e do inominável neofascista. Como enfrentá-los? Apresentam-se respostas diversas a essa questão; são duas as mais expressivas, porque têm divido a opinião de militantes e profissionais da área, e de “especialistas” na questão: a) a articulada pelos “reformadores empresariais da educação”, baseada na “treinamento” com vistas a que os(as) alunos(as) estejam habilitados(as) a responderem testes nacionais e internacionais padronizados e aplicados em larga escala; b) a que advoga a formação integral, a formação “visando ao pleno desenvolvimento da pessoa”, “do educando”, conforme rezam, respectivamente, o Art. 205 da Constituição e o Art. 2º da LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (9394/96).

Os chamados “reformadores empresariais da educação” têm tido, ao longo das últimas décadas, marcante presença nas instâncias decisórias das políticas públicas educacionais. Eles têm ocupado espaços estratégicos nas secretarias municipais e estaduais de educação, bem como junto ao Ministério da Educação (MEC) de governos petistas e não-petistas. É por essa via que articulam políticas públicas, que vão ao encontro dos interesses do capital e não da emancipação das “classes subalternas”. Eles se articulam na forma de “sociedade civil”, segundo a acepção gramsciana do termo, isto é, como “aparelhos privados de hegemonia”, que buscam manter a predominância da burguesia na determinação dos rumos da vida social, por meio de ações ditas “culturais”, promotoras de “consensos” em torno da concepção de mundo aderente aos interesses do capital. No Brasil, hoje, as mais expressivas organizações dos “reformadores empresariais” são o “Todos pela Educação” e a “Fundação Lemann” (é ele mesmo, o da falência das Lojas Americanas e que levou a Eletrobras na bacia das almas das privatizações!).

De outro modo, há um certo senso comum “letrado” crítico à atuação dos “reformadores empresariais da educação” e às políticas públicas que formularam e viabilizaram a implantação. Presente em sujeitos individuais e coletivos (associações científicas, sindicatos de professores/as e profissionais da educação, organizações estudantis…), o referido senso localiza-se mais à esquerda no espectro político-ideológico. Seus protagonistas se engajaram na campanha em favor de Lula e tornaram públicas, antes mesmo do pleito eleitoral, algumas pautas, que ficaram conhecidas como “revogaço”, porquanto indicavam ao futuro governo abolir uma série de proposições dos “reformadores empresariais”; por exemplo: a Base Nacional Comum Curricular (BNCC); a Reforma do Ensino Médio e o conjunto das normas que a sucedem, a ela aderentes; a Base Nacional Curricular — BNC-Formação (Resolução CNE/CP nº 02/2019).

Vitoriosa na eleição, a chapa Lula/Alckmin logo constituiu o Grupo de Transição e, no Núcleo de Educação, essas disputas políticas entre posições contraditórias se tornaram evidentes. Nele, os “reformadores empresariais” (financiados por Itaú/Unibanco, Natura e o empresário Jorge Paulo Lemann) tiveram, inicialmente, 18 dos 46 assentos, e a FGV (Fundação Getúlio Vargas), 7, algo desproporcional frente aos 3 representantes das 107 universidades e institutos federais, que participaram das reuniões contando com a ausências de entidades estudantis ­– UNE (União Nacional dos Estudantes) e UBES (União Brasileira dos Estudantes Secundaristas) –, da CNTE (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação), de sindicatos docentes e de técnicos administrativos, da ANFOPE (Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação), da ANPED (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação) e de movimentos sociais ligados à causa LGBTQIA+, quilombolas, da terra, da educação infantil, EJA (Educação de Jovens e Adultos) e indígenas.

Isso criou uma saia justa aos(às) que apoiaram a “frente amplíssima” e eram da área da educação, porque viram o governo recém-eleito dando assento a muitos(as) que não tinham compromisso com a luta em favor da Chapa Lula/Alckmin e nem com a histórica campanha de resistência contra a prisão de Lula e o golpe do impeachment à Dilma, ao mesmo tempo em que sentiam que fazer a crítica pública poderia representar jogar gasolina no fogo baixo do neofascismo, que havia acabado de ter uma derrota eleitoral. Mesmo assim, iniciativas para alterar esse processo foram encaminhadas, como o documento intitulado “Nota Pública de Professoras/es, Pesquisadoras/es e Ativistas da Educação sobre a composição da Comissão de Transição da Educação”, que foi lançado em novembro de 2022 e alcançou, em duas semanas, mais de 3 mil assinaturas.

Contudo, com as idas e vindas das articulações para compor o governo, Lula acabou nomeando ao MEC o ex-governador do Ceará: Camilo Santana, do PT. Ao compor a equipe do Ministério, Santana manifestou-se várias vezes no sentido de que pretende levar ao País o que por ele é entendido como o “sucesso” do modelo de Sobral na educação. Apenas para ficar em três exemplos, observe-se que, no dia 6 de janeiro, Santana anunciou a ex-governadora do Ceará, Izolda Cela, como secretária executiva; Kátia Schweickardt como secretária de Educação Básica e Manuel Palácios para chefiar o INEP. Esses e o restante da equipe do MEC não são neófitos, como era a maioria dos(as) ocupantes do ministério sob a gestão do neofascista inominável. O problema aqui é de outra natureza: eles são profundamente articulados e se tornaram pontas de lança da atuação dos “reformadores empresariais da educação”. Izolda é uma das responsáveis pela forte atuação dos “reformadores” no direcionamento das políticas educacionais de Sobral e do Ceará; Kátia Schweickardt, quando anunciada, fez emergir uma campanha nas redes sociais e entre professores(as) da rede municipal de Manaus contra a nomeação, porque como ex-secretária municipal de Educação daquele município, na gestão de Arthur Virgílio Neto, implantou as políticas dos “reformadores” e, em 2017, frente a uma manifestação de professores(as) municipais com o movimento “Fundeb para Todos”, ela os(as) chamou de “criminosos”; Palácios, que foi secretário de Educação Superior do MEC entre 2006 e 2007 (governo Lula) e secretário de Educação Básica entre 2015 e 2016 (governo Dilma), é um dos principais articuladores da BNCC.

De fato, o ministro Camilo Santana não tem escondido as prioridades que dará frente à pasta da Educação e a maioria delas não é afinada ao que pedem os(as) que sempre militaram, no PT e fora dele, em favor da educação pública, laica, gratuita e de qualidade socialmente referenciada. No dia 27 de janeiro corrente, por exemplo, em entrevista à Veja, Santana explicitou isso, ao afirmar o seguinte: o MEC fará esforço para que o modelo de Sobral seja levado aos estados e municípios; a Reforma do Ensino Médio não será revogada, até porque o problema dela, para ele, é que muitos municípios não tiveram condições de plenamente implantá-la; o ENEM será pautado pela Reforma do Ensino Médio; a meritocracia será pano de fundo para as políticas a serem formuladas e implementadas.

Se o modelo educacional de Sobral será espraiado Brasil afora, quais são suas características marcantes? Ele sintetiza a concepção neoliberal da reforma educacional que formularam os “reformadores empresariais da educação”. Partindo de uma concepção liberal de ser humano (uma mônada, um átomo, uma unidade orgânica simples, que se basta a si mesma e é portador natural dos direitos à vida, à propriedade do próprio corpo e à liberdade, inclusive, a de conquistar, com o trabalho, outras propriedades), os “reformadores” entendem que a condição de vida dos indivíduos são decorrência da competência que têm, são méritos deles, que devem ser, portanto, empreendedores(as) de si mesmos(as). Dessa concepção resulta a competição como elemento articulador de todo o processo educativo e, assim, espera-se que a escola centre o trabalho pedagógico na produção de competências individuais, cuja aferição da qualidade ocorre por sistemas de avaliação predominantemente com métricas quantitativas, padronizados (desconhecendo as especificidades locais de aprendizado), em larga escala e sem diálogo e participação dos sujeitos avaliados, para que se forneça um diagnóstico universal dos resultados educativos alcançados (accountability), expressos na forma de ranqueamentos de sujeitos e instituições de ensino[1]. Esse modelo educacional neoliberal é excludente, porque culpa o(a) educando(a) e/ou o(a) educador(a), premiando-os(as) ou punindo-os(as) pelo sistema meritocrático de bônus, induzindo a gestão tecnocrática (e não “democrática”, como está no Art. 206, Inciso VI, da Constituição, e no Art. 14 da LDB), que administra segundo a lógica empresarial (“gerencialismo”) para obter sucesso na competição com os pares.

Com esse tipo de projeto educacional, Sobral conseguiu alcançar os primeiros lugares nos ranqueamentos nacionais de educação. Centrando o processo formativo em Português e Matemática, com pitadas de Ciências, e treinando os(as) educandos(as) a responder testes padronizados em larga escala em escolas de período integral (o que é diferente de formação integral), conseguiu atender aos interesses do capital, como o de combater o analfabetismo funcional, necessário ao mercado atual. Isso é treinamento, não pode ser concebido como formação integral, omnilateral, pois essa exige ampliar o processo formativo com disciplinas que ajudem os(as) alunos(as) a terem condições de bem entenderem-se, entender o mundo vivido para nele atuar, efetivando da melhor forma as capacidades que forjaram no processo educativo. E isso tudo retroalimentado por um sistema qualitativo de avaliação, que diagnostica todo o período de aprendizado, com viés formativo e emancipatório, produzindo subsídios para que os sujeitos educativos possam conhecer e intervir no processo de formação do qual estão participando como educador(a) ou educando(a).

O assim chamado “modelo de Sobral” já foi aplicado em outros lugares no mundo, como nos EUA, e nele resultou um retumbante fracasso educacional. Uma das formuladoras desse projeto naquele país, ex-secretária adjunta de Educação e conselheira do secretário de Educação na gestão de Bush, indicada por Clinton para o “Conselho Diretor de Avaliação Nacional”, Diane Ravitch, passou 20 anos defendendo e aplicando esse sistema (lá denominado de No Child Left Behind e Accountability), que abriu portas para a privatização do ensino público e implementação de vouchers[2] e “escolas charters[3]. Todavia, considerando os péssimos resultados alcançados, hoje ela se apresenta no contexto educacional norte-americano e mundial como a principal crítica dele. Na verdade, foi convencida que treinamento para tirar boas notas em testes padronizados não significa boa educação. Espera-se que o governo Lula não demore tanto tempo para perceber isso.

(*) Marcos Francisco Martins é professor da UFSCar campus Sorocaba e bolsista PQ CNPq. E-mail: marcosfranciscomartins@gmail.com


[1] Nacionalmente, pode-se citar as avaliações realizadas pelo SAEB (Sistema de Avaliação da Educação Básica), empregadas pelo INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) para compor o ranqueamento do IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), criado em 2007 na gestão Lula. Internacionalmente, o PISA (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes”) é uma avaliação mundial de desempenho escolar realizada pela OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), cujos resultados também produzem ranqueamentos dos sistemas de ensino.

[2] Tíquetes que as famílias dos(as) estudantes recebem, representando um valor em dinheiro que elas podem utilizar para matricular o(a) filho(a) em escola da rede privada de ensino. Paulo Guedes, neoliberal convicto e ex-ministro da Economia do inominável neofascista, defendeu na conferência de Davos, em 2020, que “apoiaria um gigantesco programa de vouchers para educação na primeira infância no Brasil”.

[3] Escola pública, mantida com dinheiro público, mas com gestão privada, por vezes administradas por organizações sociais de diferentes perfis.

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