Por Eleutério F. S. Prado*
Crê-se iluminado pela ciência positiva e despreza vozes divergentes. De seu pedestal, usa teorias e dados para legitimar opressões. Mas fala em nome da Grande Causa, nos termos de Lacan, e assim pode dormir tranquilo frente às injustiças sociais
Três economistas de centro-direita escreveram um artigo para dizer que “políticas equivocadas dos petistas, ignoradas por Lula e seu partido, produziram crise e alimentaram a ascensão da extrema direita”. Em virtude do caráter do argumento que será aqui desenvolvido, os seus nomes, assim como o veículo em que o texto foi publicado, serão de início omitidos. Eis que se deseja focar o padrão implícito da alegação, evitando a eventual acusação de que a crítica aqui feita tem conotação ad hominem.
Registre-se, no entanto, que os nomes dos autores não tem grande importância já que esse padrão é recorrente; eis que se repete no discurso dos economistas de direita em geral. Ademais, como vai ficar claro, nomeá-los não teria, na verdade, grande valor de imputação já que falam em nome de um grande Outro.
É também necessário enfatizar, num sentido semelhante, que não se pretende fazer qualquer defesa dos governos do PT. É evidente que esse partido, tal como sempre acontece com os governantes em geral, cometeu equívocos em seus doze anos de poder. E eles devem sempre ser apontados e ponderados, mas com uma explícita menção dos interesses classistas que norteiam a crítica contingente.
Em resumo, esses economistas acusam as políticas econômicas do PT de serem amplamente populistas. Ora, esse é o discurso explícito que logo mais se examinará na perspectiva anunciada. Implicitamente, é preciso ver, eles dizem que não caem nesse vício porque são pessoas isentas, que só pensam no bem público e que, sobretudo, raciocinam com base na boa teoria econômica, que supostamente dominam melhor do que aqueles que criticam. Eles se enxergam – e fazem questão de indicar de modo firme aos incautos – como competentes, como muito competentes.
A primeira crítica que fazem ao PT corre no plano político: “na América Latina, o populismo se caracteriza pela retórica dominada por referência a inimigos que devem ser derrotados; há interesses escusos da elite e de forças externas que exploram o país por meio de uma agenda de dominação”. Trata-se, é evidente, de uma simplificação deformadora do discurso político do adversário, que insinua que a sua fala é vazia e que não passa de mera retórica.
É preciso notar então que, tal como se sabe desde Aristóteles, toda a argumentação no campo da phronesis é retórica – e isto é verdadeiro mesmo quando se usa modelos matemáticos tais como as parábolas neoclássicas. Veja-se, então, que esses três economistas usam o termo num sentido vulgar porque, como bons cientificistas, pressupõe que há um discurso não retórico, qual seja ele, aquele da economia positiva que manejam bem, que julgam saber, mas que não parecem compreendê-la a fundo. Em segundo lugar, é necessário lembrar que economistas consagrados como Joseph Schumpeter e John Hobson não consideraram o imperialismo como besteira esquerdopática.
A segunda crítica é, no entanto, crucial do ponto de vista deles. Eis o que dizem: “a outra face do populismo é o desprezo pelas evidências sobre o impacto das propostas econômicas. Ambos os extremos populistas, à esquerda e à direita, supõem que os problemas se resumem a um conflito distributivo: de um lado, a imensa maioria da sociedade, oprimida; de outro, os inimigos exploradores”. Veja-se de imediato que colocar a direita e a esquerda no mesmo barco da exploração do homem pelo homem é realmente um argumento de má retórica, um argumento algo desonesto… com a direita, evidentemente.
Em adição, colocar ênfase na questão distributiva, supondo por certo que ela depende das instituições que estruturam o sistema econômico e da política econômica, não pode ser considerado como algo errôneo. Como se sabe, o economista liberal clássico David Ricardo considerou que “determinar as leis que regulam essa distribuição é a principal questão da Economia Política”. Ora, ele também sabia que os interesses, o poder de instituir e de bloquear as instituições governam a repartição da renda, já que ele, como é bem sabido, defendia a importação de trigo pela Inglaterra para reduzir os salários nominais da população trabalhadora para elevar a taxa de lucro. O grande Ricardo, pelo menos, não escondia o lado em que estava e não passava a ideia de que o saber econômico pode ser apolítico.
O texto aqui visado sustenta, como foi visto, a tese de que há um funcionamento imperativo, pouco flexível, do sistema econômico e que ele é apreendido adequadamente apenas pela boa teoria econômica, isto é, por aquela teorização que os economistas do chamado “mainstream” supostamente dominam. Ora, essa tese é ideológica, ou seja, é falsa, mesmo se for aparentemente verdadeira. A teoria econômica como um todo é um campo conflagrado de teses que se desdizem e que se contraditam. Não há qualquer consenso teórico, as teorias em geral costumam falhar miseravelmente diante do sistema complexo investigado e a própria evidência empírica, como sabem os economistas honestos, nunca advém como decisiva.
Porém, essa tese também se configura como um disfarce de uma técnica de poder que faz questão de esquecer o próprio interesse constitutivo, assim como o seu caráter ilocucionário – e, portanto, não isento. Em consequência, a teoria neoclássica, por exemplo, deveria ser considerada não como ciência simplesmente, mas como tecnociência, isto é, como um saber para a dominação da esfera econômica (pessoas e coisas) e que funciona usualmente como instrumento para propósitos autoritários e mesmo, no limite, totalitários. A tortura de dados, usualmente chamada de econometria, é também parte dessa técnica de poder que legitima por vezes a opressão dos mais vulneráveis economicamente.
O que tal ciência positiva veicula não é apenas um conjunto de proposições sobre os fenômenos do sistema econômico, mas um discurso, ou seja, uma forma de interagir e de estabelecer laços com os interessados nos significados e não apenas nos resultados do evolver desse sistema. E ela só pensa que não é assim porque o método científico que emprega suprimiu um aspecto central da própria ciência enquanto tal. Ora, isto ocorreu porque se aproveitou de uma violação possível da própria linguagem, a qual consiste em falar de um lugar em que o sujeito humano está desaparecido, em nome de algo superior que não precisa ser anunciado como tal.
De um ponto de vista psicanalítico, como mostra Jean-Pierre Lebrun em Um mundo sem limites (Companhia Freud, 2004), esse modo de proceder não é um “abuso atribuível ao cientista, mas, ao contrário, acontece porque o método científico é estruturado de tal forma que engendra, de fato, com a sua produção, um cientificismo comum”. Eis que, mediante a prática desse método, o cientista que fala não precisa assumir todas as consequências do que implica falar, do que consiste no arrazoar para outras pessoas. Nos termos de Lacan, o cientista que milita no campo da ciência positiva não fala por si mesmo, não assume a responsabilidade pelo que fala, pois ele se apresenta como representante de um Outro, ou seja, da própria cientificidade positiva e de suas supostas conquistas.
Note-se, porém, que os resultados apresentados por essa cientificidade decorrem em princípio dos próprios funcionamentos que ela mesma se esforça para apreender. E que, portanto, são deles derivados por meio de uma tradução que o método empregado realiza.
A posição do economista que assume essa cientificidade é bem confortável. Eis que ele pode, por exemplo dizer: trabalhador, o sistema econômico é implacável; se você quer emprego na atual conjuntura, tem de se sujeitar a trabalhar mais por um salário menor. Que tal se apresentar ao empregador a partir de agora com uma carteira verde e amarela que o Paulo Guedes criou para você! Ora, é assim que o economista do sistema pode expressar – sem qualquer culpa ou dolo – uma verdade factual desse próprio sistema, que tem se tornado cada vez mais iníquo.
Lebrun explica que a ciência, desde os seus primórdios na Grécia Antiga, sempre quis se desembaraçar de sua dimensão retórica: já aí “desejava que a linguagem fosse utilitária, que servisse apenas para comunicar as suas descobertas”. É evidente que ela só conseguiu alcançar plenamente esse desiderato, qual seja ele, ocultar a dimensão ilocucionária da linguagem, na sociedade moderna. E o caso mais eloquente dessa ambição se encontra precisamente na ciência econômica que levou ao último grau o projeto de matematizar os fenômenos da sociedade. Desse modo, ocorre uma elisão da dimensão humana do real por meio de uma construção simbólica que se apresenta como indiferente ao sofrimento humano.
Junto com esse autor, é preciso dizer que essa operação não provém de um truque ou de um deslizamento ideológico, consciente ou inconsciente, praticado pelo economista (cientista no caso mais geral). Eis que é próprio da ciência positiva ter essa pretensão de tratar os fatos sociais como coisas, envidando esforços para apreender as relações externa entre os fenômenos por meio das assim chamadas funções matemáticas. Ao proceder assim, o método cientificista “coloca o simbólico em posição originária”. Ou seja, o cientista deixa de ser sujeito do processo científico para se tornar um objeto de um grande sujeito impessoal que consiste na própria trama das teorias e das proposições científicas.
A ciência assim constituída tem uma pretensão de onipotência. Ela, por sua própria natureza, quer abranger os fenômenos de seu campo de investigação de uma maneira totalizadora. Ela quer dizer o que é verdadeiro e o que é falso, o que é certo e o que é errado – e não admite qualquer contestação que venha de impulsos humanitários ou de sentimentos de um coração acabrunhado com a miséria de muitos. Se eles aparecem em sua frente de alguma forma, ela não hesita e simplesmente esculacha. E o faz, como aliás não podia deixar de ser, por meio de seus cientistas, de seus economistas competentes, muito competentes.
Lebrun esclarece, ademais, que essa cientificidade não tem apenas uma pretensão totalizadora, pois, na verdade, ela pode se tornar totalitária se lhe faltam certos limites que são postos por uma diversidade ativa de opiniões e de interesses. Mesmo se esses três economistas vão para cima do PT com um ódio mal disfarçado, é de se esperar que tenham, pelo menos um pouco, amor pela pluralidade inerente à democracia. À medida que se põem como funcionários zelosos de uma racionalidade instrumental que domina e rege no campo Ciência Econômica (Economics) parece que não é assim: “a economia” – afirmam para desqualificar as políticas sociais do PT – “não é tão elástica assim”.
Mas por que ela não é tão elástica assim – pode-se perguntar? Ora, Karl Marx pode ter razão quando disse que esse sistema econômico é governado por uma lógica imperativa, qual seja ela, a da reprodução insaciável da relação entre o capital e o trabalho assalariado. O capital – disse – é um sujeito automático. O que está por trás da ciência positiva é a racionalidade quantitativa do capital: sempre mais, sempre mais, sempre mais…
Para ilustrar agora, de uma forma enfática, o processo por meio do qual o homem se coloca como suporte de uma Grande Causa, uma verdadeira causa-sujeito, cita-se uma passagem do livro Como ler Lacan (Zahar, 2010) de Slovoj Zizek. Se aqui foi analisado apenas uma situação muito comum que manifesta mais uma vez o orgulho da razão econômica, esse autor se reporta a um caso inventado, mas muito plausível, de totalitarismo político explícito.
Um verdadeiro estalinista ama a humanidade, mas apesar disso promove horríveis expurgos e execuções – fica com o coração partido quando o faz, mas não pode evitá-lo, é seu Dever para com o Progresso da Humanidade. Esta é a atitude perversa de adotar a posição de puro instrumento da Vontade do grande Outro: não é minha responsabilidade, não sou eu realmente que faço isso, sou apenas um instrumento da Necessidade Histórica.
Finalmente, para não ser eventualmente acusado de covardia, informa-se que o artigo criticado foi publicado na Folha de S. Paulo, em 1º de dezembro de 2019, no caderno Ilustríssima, sob o título Brasil vive entre riscos de extrema direita e recaída lulista. Os seus autores foram Paulo Hartung, Marcos Lisboa e Samuel Pessoa.
*Eleutério F. S. Prado é professor titular e sênior do departamento de economia da FEA/USP. Mantém o blog Economia e Complexidade (http://eleuterioprado.wordpress.com). Correio eletrônico: eleuter@usp.br
Fonte: Outras Palavras