Publicado originalmente em A Terra é Redonda

Por PAULO SÉRGIO PINHEIRO (*)
O manto de uma solenidade comunitária pode esconder a farsa perigosa que une o supremacismo de um Estado estrangeiro ao projeto autoritário da extrema direita local
1.
A CONIB (Confederação Israelita do Brasil), principal organização do lobby sionista no país, nunca reconheceu que Israel cometeu genocídio contra o povo palestino na Faixa de Gaza, fato já apontado pela Comissão Internacional Independente de Inquérito da ONU sobre o Território Palestino Ocupado, presidida pela ex- Alta Comissária de Direitos Humanos Navi Pillay.
Ignorou também as decisões da Corte Internacional de Justiça, que reconheceram a plausibilidade do crime de genocídio e determinaram que Israel se retirasse imediatamente dos territórios ocupados.
Na mesma linha se pronunciaram o Tribunal Penal Internacional, a relatora especial da ONU para os territórios palestinos, Francesca Albanese (alvo de insultos misóginos, tratada de bruxa, por parte do embaixador israelense em plena sessão da Assembleia Geral da ONU de 2025), além das principais organizações da sociedade civil no Brasil e no exterior – B’Tselem (a mais eminente organização de direitos humanos em Israel), Amnesty International e Human Rights Watch.
A CONIB, contudo, despreza todas essas instâncias internacionais. Mais do que isso: atua ativamente para silenciar críticos de Israel. Processou jornalistas e intelectuais, como Breno Altman, acusando-os falsamente de antissemitismo – e nesse caso perdeu feio.
Rotula sistematicamente de “antissemita” qualquer voz acadêmica ou pública que denuncie os crimes de Israel, numa tentativa frustrada de cercear o debate público sobre a política de apartheid e ocupação militar nos territórios palestinos pelo atual governo supremacista de Israel e por todos os governos israelenses desde 1948 sejam de direita ou esquerda.
2.
O jantar anual de confraternização da CONIB, realizado em 8 de outubro, converteu-se em um palanque para a extrema direita brasileira. Sob o patrocínio e a complacência da entidade, governadores como Tarcísio de Freitas, Ronaldo Caiado e Cláudio Castro transformaram o evento em um comício contra o governo federal.
O objetivo foi claro: desqualificar a governança democrática, atacar a política externa independente brasileira e reanimar o projeto autoritário bolsonarista, ainda abatido pelas condenações e prisão de seu líder máximo e de seus generais asseclas pelo crime de golpe de Estado no 8 de janeiro.
O governador de Goiás, Ronaldo Caiado, pré-candidato à Presidência, subiu nas tamancas, perdendo as estribeiras deblaterou que o governo Lula “prega o ódio de classes” e “é conivente com o narcotráfico” – um discurso falacioso, recheado de manipulações típicas da retórica de extrema direita.
Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo, falou em “tempos sombrios” ao lamentar a saída do Brasil da IHRA (Aliança Internacional para a Memória do Holocausto) – organização que, sob o pretexto de combater o antissemitismo, tenta impor uma definição que criminaliza qualquer crítica ao governo supremacista de Israel.
Tarcísio de Freitas, que costuma se envolver numa imensa bandeira de Israel, Estado estrangeiro, defendeu a retomada das relações “estratégicas”, quer dizer submissas, com Israel, interrompidas pelo atual governo federal após o início da “guerra” em Gaza. Guerra que além de genocídio denunciado em todo o mundo pelo Presidente Lula, também é na verdade um ecocídio, aniquilação sistemática pelas forças militares de Israel de tudo que representava vida para os palestinos: mais de 60 mil mortos, em maioria crianças, mulheres e idosos, além de 2,6 milhões submetidos a deslocamento forçado em Gaza.
O governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, adotou um tom belicoso. Falou em “paz”, mas exaltou sua política de segurança pública marcada por massacres policiais – como o episódio em que 118 pessoas, supostamente suspeitos de crimes e criminosos, emboscadas e executadas em operações sob seu comando.
Tentando barrar toda investigação federal externa, em que foi dobrado felizmente pelo ministro Alexandre de Moraes, que exigiu todas informações da desastrada operação que resultou na morte de quatro agentes policiais. Em um discurso pretensamente filosófico cinicamente declarou: “Não é paz aceitar que nos violentem todos os dias, mas é paz lutar por um mundo mais seguro”. Foi aplaudido freneticamente por um público inebriado com o espetáculo de violência ilegal no Rio.
O jantar da CONIB – inabalavelmente alinhada à diplomacia de Tel Aviv, que humilhou recentemente o embaixador do Brasil, considerado “anão diplomático”, declarando o presidente Lula persona non grata – não foi uma confraternização. Foi um ato político de hostilidade à democracia, um tributo à intolerância, um ensaio de rearticulação da extrema direita sob o disfarce de solenidade comunitária. Chega de farsas inúteis.
(*) Paulo Sérgio Pinheiro é professor aposentado de ciência política na USP; ex-ministro dos Direitos Humanos; relator especial da ONU para a Síria e membro da Comissão Arns. Autor, entre outros livros, de Estratégias da ilusão: a revolução mundial e o Brasil, 1922-1935 (Companhia das Letras) [https://amzn.to/4le1Cnw]
