Por Marcelo Zero (*)
EUA e alguns aliados parecem dispostos a colocar fogo no mundo. Fogo até mesmo nuclear.
Não bastasse a injustificada expansão da Otan para leste, causa última da atual guerra na Ucrânia, que tende a se perenizar e se alargar, agora tenta-se aumentar bastante a temperatura com a China.
Com efeito, a viagem de Nancy Pelosi a Taiwan, em aeronave da força aérea norte-americana, constitui-se numa séria e gratuita provocação a Beijing. Na realidade, é uma bofetada humilhante na China e em Xi Jinping, às vésperas da realização do 20° Congresso do Partido Comunista Chinês.
A versão de que a presidente da House of Representatives dos EUA foi lá contra os desejos da administração de Biden não parece crível. Se Biden, de fato, não quisesse a vigem, teria meios para desencorajá-la. Nancy Pelosi, desafeta histórica da China, não foi a Taiwan somente para fazer diplomacia parlamentar. Ela foi para reafirmar os interesses dos EUA na região.
Como menciona o próprio comunicado da Speaker of The House:
Nossa visita faz parte de um périplo mais amplo pelo Indo-Pacífico – incluindo Cingapura, Malásia, Coréia do Sul e Japão – focado em segurança mútua, parceria econômica e governança democrática. Nossas discussões com a liderança de Taiwan se concentrarão em reafirmar nosso apoio ao nosso parceiro e na promoção de nossos interesses compartilhados, incluindo a promoção de uma região do Indo-Pacífico livre e aberta. A solidariedade dos Estados Unidos com os 23 milhões de habitantes de Taiwan é mais importante hoje do que nunca, pois o mundo enfrenta uma escolha entre autocracia e democracia.
Nossa visita é uma das várias delegações do Congresso a Taiwan – e de forma alguma contradiz a política de longo prazo dos Estados Unidos, guiada pela Lei de Relações com Taiwan de 1979, Comunicados Conjuntos EUA-China e as Seis Garantias. Os Estados Unidos continuam a se opor aos esforços unilaterais para mudar o status quo.
Desse modo, a visita de Nancy Pelosi se insere dentro das diretrizes da atual política externa do Poder Executivo estadunidense, a qual visa se contrapor, por quaisquer meios, à ascensão da China no cenário mundial. Nesse contexto, a afirmação do apoio a um “Taiwan independente” poderá ser instrumento crucial.
Contudo, tal diretriz não tem suporte nas regras do direito internacional público.
É preciso considerar que Taiwan, como nação independente e representante oficial da China, foi uma ficção, criada por Chiang Kai-shek e o Kuomintang, com o apoio dos EUA e aliados.
Derrotado pelas forças de Mao Zedong (Mao Tsé-Tung) em 1949, Kai-shek fugiu para Taiwan e de lá se autoproclamou o legítimo governante da China, embora dominasse efetivamente apenas uma ínfima fração da população e do território chinês.
Essa ficção geopolítica, essa espécie de país-Guaidó, durou até 1971, quando a ONU se curvou à realidade e finalmente reconheceu o regime de Beijing como o verdadeiro representante da China e comprometeu-se com o princípio de “uma única China”.
Os próprios EUA acabaram também, em 1978, na esteira da diplomacia de aproximação a Beijing, por reconhecer a então chamada “China continental” com o a única China.
Não obstante, ante as novas diretrizes da política externa dos EUA, que colocam o combate à ascensão da China como prioridade máxima, Washington começa a descumprir aquilo que fora acordado na década de 1970 e a incentivar, ainda que de forma indireta, o secessionismo taiwanês, com a justificativa cínica e esfarrapada da defesa da “democracia”.
Trata-se de um caminho extremamente perigoso para o todo o mundo.
A citada “Lei de Relações com Taiwan, de 1979” obriga o governo dos EUA a defenderam militarmente essa ilha, caso ela sofra alguma agressão. Por outro lado, a China, em 14 de março de 2005, aprovou a “Lei Anti-Secessão” a qual impõe uma intervenção armada, em caso de declaração formal da independência de Taiwan.
Portanto, qualquer movimento em prol do secessionismo taiwanês poderia acarretar uma guerra de consequências muito graves e imprevisíveis. Dado o estreitamento das relações China/Rússia e ao atual conflito na Ucrânia, essa poderia ser uma guerra mundial.
É claro que, no momento atual, ambos os países não querem um enfrentamento militar. A China fará somente exercícios militares nas proximidades de Taiwan, como já fez em anos anteriores. Mas é necessário observar que, muitas vezes, as guerras começam devido a atitudes intempestivas e irracionais, como a de Nancy Pelosi. A estupidez humana não pode ser menosprezada.
Porém, embora a guerra não esteja no horizonte do provável, um grande dano à economia mundial está.
Com efeito, a intensificação do conflito EUA/China poderá conduzir a economia mundial, já muito fragilizada pelas consequências da pandemia e da guerra na Ucrânia, a uma depressão.
Afinal, trata-se das duas maiores economias do mundo.
A China, em particular, é, apesar da redução recente de seu crescimento, a principal locomotiva econômica do planeta e a “fábrica do mundo”.
A China é o primeiro exportador mundial (US$ 2, 64 trilhões, em 2019) e o segundo importador do planeta (US$ 2,05 trilhões, em 2020). Ademais, esse país tem projetos ambiciosos de investimentos mundiais, como os relativos à Nova Rota da Seda, que deverão ter grande impacto positivo em muitas outras economias.
Por conseguinte, quaisquer danos ou sanções contra a economia chinesa afetariam seriamente todo o mundo.
O Brasil seria um dos países mais afetados. No ano passado (2021), a China foi o destino de quase um terço de todas as exportações do nosso país (US$ 82, 2 bilhões, 32,1% do total exportado). Os EUA ficaram num distante segundo lugar (US$ 27,9 bilhões, apenas 10,9% do total).
Os EUA pretendem inserir o planeta na lógica obtusa, arcaica e estreita de uma nova Guerra Fria, na qual, tal como mencionado explicitamente no comunicado de Nancy Pelosi, o mundo teria de escolher entre “autocracia” (China, Rússia etc.) e “democracia” (EUA e aliados).
Na teoria dos jogos, isso se chama “jogo de soma zero”, no qual um dos contendentes só pode ganhar se o outro perder. O ganho de um só pode se dar com a inexorável perda do outro.
No entanto, a tese do Equilíbrio de Nash (de John Nash, o grande matemático, ganhador do Nobel de Economia de 1994) diz que as disputas podem e devem ser um jogo de ganha-ganha, no qual todos os envolvidos obtêm vantagens, desde que suas estratégias sejam consideradas de forma igualitária.
O Brasil e os demais países do planeta deveriam inserir sua política externa nesse princípio do “ganha-ganha”, ou seja, na estratégia em prol de uma ordem mundial colaborativa, solidária e igualitária, em que todos obtenham vantagens, mesmo com interesses diversos.
Nosso país, com Lula, fez isso de forma admirável, no início deste século. Defendemos nossos interesses e, ao mesmo tempo, contribuímos com os interesses de todos.
Em outras palavras, o mundo precisa de mais Lula e menos de Nancy Pelosi.
(*) Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais.