O sentido e o impacto da retirada dos Estados Unidos da OMS

Por Deisy Ventura (*)

Texto publicado originalmente no Jornal da USP

Cumprindo uma promessa de campanha, o presidente Donald Trump anunciou a retirada dos Estados Unidos da Organização Mundial da Saúde (OMS) já nas primeiras horas do seu novo mandato. Com isto, busca completar o que começou em julho de 2020, ao final de seu primeiro governo, quando já havia notificado oficialmente o abandono da organização. Derrotado por Joe Biden nas eleições presidenciais, Trump teve sua iniciativa revertida no início de 2021.

Do ponto de vista jurídico, a notificação de retirada levaria um ano para produzir os seus efeitos. No entanto, não estamos diante de um simples afastamento, e sim de uma ruptura estrondosa. Trump anunciou igualmente: a suspensão imediata de qualquer forma de financiamento ou apoio do governo norte-americano à OMS; a ordem de retorno à Washington dos servidores ou contratados dos Estados Unidos que desempenhem alguma função na organização; e a retirada das negociações do acordo sobre pandemias, e também recusará as emendas ao Regulamento Sanitário Internacional recentemente adotadas.

Sendo os Estados Unidos um dos principais financiadores da OMS, com o perdão pela analogia, é claro que não estamos diante de uma separação amigável, e sim de um divórcio litigioso, daqueles que incluem disputas pela partilha dos bens e pela guarda dos filhos.

Esta ruptura necessita ser interpretada em ao menos três dimensões.

Em primeiro lugar, a mais evidente: sair da OMS faz parte de um amplo e vigoroso ataque ao multilateralismo, sendo anunciada a ruptura de outros compromissos internacionais, entre eles os relativos a mudanças climáticas, também abandonados no primeiro mandato de Trump. Sob o pretexto de defender a soberania nacional absoluta – no caso, a dos Estados Unidos, eis que a dos demais países é por eles aviltada de forma sistemática, tanto por republicanos como por democratas –, é bastante conhecida e comentada a aversão de Trump e de suas bases de apoio à cooperação multilateral e às organizações internacionais, personagens frequentes de mentiras deslavadas e dos enredos de teorias conspiratórias. Em setembro de 2020, por exemplo, a Casa Branca afirmou, em nota oficial, que a OMS não havia demonstrado independência em relação ao Partido Comunista Chinês, entre outras pérolas. Na verdade, a ferrenha oposição das extremas direitas ao sistema da Organização das Nações Unidas (ONU) está relacionada principalmente à promoção de direitos individuais e coletivos pelo sistema onusiano, que são contestados por alianças transnacionais conservadoras.

Em segundo lugar, é preciso reconhecer as especificidades da OMS. Coordenadora da atuação internacional em matéria de saúde, sua essência é a defesa das evidências científicas como base para a tomada de decisão e a elaboração de políticas de saúde. É fácil entender que, composta de 194 Estados-membros com notável heterogeneidade política, religiosa e cultural, cujos interesses ela é obrigada a compatibilizar, outra linguagem que não fosse a científica não seria possível nem desejável.

Longe de ser perfeita, porém, a OMS é imprescindível. Por meio de seus comitês de especialistas, órgãos e parcerias, ela fomenta, produz e difunde evidências científicas,
cumprindo missões que vão da elaboração de lista de medicamentos essenciais à classificação internacional das doenças, passando por padrões que cotidianamente funcionam como parâmetros para sistemas e profissionais de saúde, legisladores, pesquisadores, entidades sociais, mídias etc.

Ora, para aqueles que pretendem impor as suas visões de mundo e os seus interesses pessoais à coletividade, nada poderia ser mais inconveniente do que a atuação da OMS. Quando trazidos para o terreno das evidências científicas, extremistas como o presidente Trump buscam desqualificar os cientistas e pesquisadores, ou forjar evidências que sirvam aos seus objetivos políticos imediatos. Esta prática recorrente gera falsas controvérsias científicas que, mesmo quando desmentidas, causam estragos difíceis de reverter, entre eles morte e adoecimento evitáveis, autoridades sanitárias desacreditadas e populações confusas. Neste plano, operam publicações predatórias, ausência de regulação adequada da difusão de informações, impunidade de quem atenta contra a saúde pública etc.

Infelizmente, pela emoção que é capaz de causar e pelo hermetismo da linguagem científica, a saúde funciona como um nervo exposto, com potenciais sensibilidade e irradiação que se prestam perfeitamente à propaganda ideológica e à desinformação. A posição da OMS em favor da completa descriminalização do aborto, com amplo fundamento científico, é um exemplo cabal do quanto evidências podem contrariar ambições políticas e religiosas baseadas em preconceitos e crenças que não podem ser impostos à coletividade. Do mesmo modo, os ataques às pessoas trans causam danos inestimáveis a elas e ao conjunto da sociedade, com importantes repercussões sobre a sua integridade física e mental.

A politização da resposta à covid-19 nos Estados Unidos é outro exemplo fundamental. As recomendações da OMS foram apresentadas pela base de Trump como ameaças à forma de vida, à liberdade, à segurança e à economia norte-americanas, ou seja, como o contrário do que elas de fato foram. As conferências de imprensa da OMS funcionaram como pedras no sapato do presidente, pois fortaleciam as autoridades sanitárias independentes e todos aqueles que buscavam conter a propagação da doença, enquanto Trump recomendava a ingestão de desinfetantes e defendia tratamentos sem eficácia comprovada como forma de incitar a população ao contágio.

Entre as críticas inesquecíveis à OMS, recordo a da consultora do alto escalão governamental, Kellyanne Conway, a mesma que apresentou mentiras do presidente como “fatos paralelos”, que declarou: “Isto é covid-19, não covid-1, pessoal. Seria de esperar que as pessoas encarregadas dos fatos e números da OMS estivessem sabendo disso”, jogando com o nome da doença para dar a entender que aquele seria o seu décimo nono surto, quando, como sabemos, 2019 é o ano em que o vírus foi reconhecido.

A abordagem da pandemia que se afirma nos Estados Unidos é um risco não apenas para o país, mas também para o mundo. Vale recordar que, em 2017, Trump eliminou o órgão de preparação para emergências de saúde que havia sido criado por Barak Obama. Já anunciou que fechará igualmente órgão similar criado por Biden. Em entrevista à revista Time, Trump afirmou que a preparação para pandemias não compensa porque as doenças são muito variadas e produtos de saúde podem ficar obsoletos, sendo melhor esperar que as crises aconteçam para avaliar o que se pode fazer.

Isto nos leva à terceira dimensão importante da análise, que é a institucional e regulatória. Tendo o controle do Parlamento, é provável que o segundo mandato de Trump consiga minar salvaguardas legais e institucionais que contribuíram para minimizar o impacto negativo de seu primeiro mandato. A defesa da redução do papel regulador do Estado, supostamente corrupto e ineficiente, é fachada para os interesses de gigantes da indústria, que sonham com a eliminação de regras e mecanismos de vigilância que priorizam a saúde da população em detrimento do lucro.

No discurso da vitória eleitoral, o presidente anunciou Robert Kennedy Jr. como importante colaborador de seu governo, e pediu que ele “sacudisse” as instituições sanitárias e remodelasse os programas nacionais de saúde, em especial a regulação de alimentos e remédios. Agitador antivacina e negacionista contumaz, Kennedy Jr. vêm lutando há anos para que o flúor seja retirado da água tratada, entre outros desserviços à saúde.

Por certo, Trump enfrentará a resistência de governos locais e atores sociais, também de setores dos poderes Legislativo e Judiciário. Mas um movimento de massas, a exemplo do que sustenta o presidente, que exerça uma oposição aguerrida à agenda extremista, parece estar distante.

É à luz dessas três dimensões que deve ser lida a notícia divulgada em primeira mão pelo grande jornalista Jamil Chade, que fez uma brilhante cobertura da campanha eleitoral norte-americana de 2024, e da mesma forma oferece uma leitura única da posse do novo presidente. Segundo Jamil, Trump anunciou que vai “identificar parceiros confiáveis e transparentes dos Estados Unidos e internacionais para assumir as atividades necessárias anteriormente realizadas pela OMS”, e que a Estratégia de Segurança da Saúde Global dos EUA de 2024 deve ser substituída assim que possível.

Assim, mais do que a retirada dos Estados Unidos da OMS, há a consolidação de um polo rival no cenário internacional, já presente no primeiro mandato de Trump, e agora fortalecido. As alianças conservadoras transnacionais encontrarão no presidente um ativista experiente, que domina os meandros do Estado, conhecedor de todo o potencial de caos e desinformação que uma pandemia pode trazer. Naquilo que vem sendo chamado de neoliberalismo epidemiológico, manifestado entre outras formas pelo uso da imunidade de rebanho por contágio como resposta à covid-19 – cientificamente falsa e, ainda que fosse verdadeira, eticamente inaceitável pelo número avassalador de mortes evitáveis que causa. Deixar que as epidemias avancem pode se afirmar como uma estratégia extremista para que os mais vulneráveis, na qualidade de indesejados, sejam eliminados.

O poderio econômico, político e militar dos Estados Unidos se traduz na capacidade de estabelecer iniciativas de cooperação em saúde com países de média e baixa renda orientada por valores antagônicos aos da OMS. Trump pode induzir o desrespeito a direitos conquistados, à frente deles os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, das populações LGBTQIA+ e dos migrantes e refugiados, além de direitos relacionados ao meio ambiente e à proteção dos povos originários. Também está clara a sua capacidade de organizar, financiar e promover a desinformação em saúde em escalas inéditas, considerando o lugar de honra reservado aos grandes empresários do setor da tecnologia na nova gestão.

Assim, com 42 emergências em curso no mundo, sendo 17 delas em grau máximo, a OMS enfrenta um duro golpe, no momento em que mais precisa ser fortalecida. A redução do financiamento da organização, tão comentada, embora muito importante, está longe de ser o único impacto negativo do retorno de Trump ao poder.

Cresce, então, a importância de países como o Brasil no cenário da saúde global. Nossas tarefas são muitas. Mas isto é assunto para uma outra coluna.

(*) Deisy Ventura, professora da Faculdade de Saúde Pública da USP

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