Operação Contenção e o Estado como gestor da morte: necropolítica, repressão e classe dominante

Por José Burato (*)

Vítimas da chacina nos complexos da Penha e do Alemão, no Rio de Janeiro. Foto Tomaz Silva/Agência Brasil

A taticamente requintada megaoperação policial nos complexos da Penha e do Alemão, no Rio de Janeiro – a mais letal da história – deixou mais de 120 pessoas mortas, incluindo dois policiais civis e dois militares. Não se trata apenas de uma ação de segurança pública que divide opiniões, mas de um episódio emblemático da necropolítica brasileira, conceito formulado por Achille Mbembe para descrever como o Estado exerce poder sobre a vida e a morte, decidindo quais corpos são protegidos e quais são descartáveis. [1]

Como de costume, os corpos descartáveis são majoritariamente jovens, negros e pobres – expressão tantas vezes tida como jargão, mas sempre confirmada pelas estatísticas. São moradores de favelas, periferias e comunidades historicamente negligenciadas, oprimidas e reprimidas. A operação, espetáculo de força e de morte, reafirma uma lógica de guerra interna, já exaustivamente denunciada, que transforma territórios urbanos em zonas de combate e cidadãos em alvos prováveis.

A tática do chamado “muro do BOPE” [2], apresentada como medida para evitar danos colaterais, resultou, segundo relatos de moradores, em execuções sumárias e empilhamento de corpos nas áreas de mata. A ausência de perícia imediata, o impedimento do acompanhamento da Defensoria Pública no IML e a inexistência de câmeras corporais reforçam a falta de transparência e garantem o apagamento da dignidade das vítimas. 

A rotulagem dos suspeitos como “narcoterroristas” pelo governador Cláudio Castro não é mero recurso retórico, porque ela legitima a força letal, desumaniza os alvos e dificulta qualquer responsabilização institucional. É a construção simbólica do inimigo interno – aquele que pode ser eliminado em nome da “ordem”. [3]

Há especialista que classifica a operação como uma “lambança”, apontando falhas táticas, ausência de inteligência integrada e desprezo por protocolos de direitos humanos; outros usam outros termos para defini-la. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública denunciou a falta de articulação federativa e o uso da violência como substituto para as políticas públicas.

Mas a verdade é que esse padrão militarizado de guerra não é novidade. A segurança pública brasileira é estruturalmente marcada pela letalidade seletiva e pela ausência de políticas estruturantes. Basta compará-la com as operações Escudo e Verão, realizadas na Baixada Santista – SP –, respectivamente em 2023 e 2024, que deixaram pelo menos 84 mortos. Em ambas, repete-se a mesma lógica, ou seja, motivação baseada em eventos pontuais; ausência de inteligência integrada; incursões ostensivas; letalidade concentrada em territórios periféricos; vítimas negras e pobres; e sistemáticas violações de direitos humanos, com denúncias de execuções, desaparecimentos e obstrução da perícia independente.

Esses episódios revelam a necropolítica como modus operandi do Estado brasileiro, que escolhe quem pode viver e quem deve morrer. Em São Paulo, a “ruptura conservadora” promovida pelo governo estadual implicou uma reconfiguração institucional da polícia, respaldada por um discurso de enfrentamento direto ao inimigo interno. No Rio, o mesmo discurso é reproduzido, agora sob o rótulo de “terrorismo”.
O resultado é o mesmo, as zonas de exceção, onde o Estado não garante direitos, mas impõe a morte como forma de controle. [4] 

Essa crítica, porém, não se limita ao plano operacional, abrange também o estrutural. Retomando a teoria marxiana, o Estado é instrumento da classe dominante, é gestor dos interesses daqueles que detêm os meios de produção. Ele não é neutro. Suas instituições, incluindo as forças de segurança, servem prioritariamente à manutenção da ordem social que protege a propriedade e o capital. Assim, o Estado não protege vidas – protege valores de mercado.

O discurso oficial, que invoca a “segurança pública”, na verdade, protege a ordem urbana que favorece o capital: grandes eventos, circulação de mercadorias, turismo e investimentos. A repressão violenta ocorre sempre que há ameaça à estabilidade dessa ordem – seja pela ação de facções, seja por revoltas populares. Desumanizar, portanto, é estratégico. Quando o Estado rotula o crime comum como terrorismo, ele legitima sua violência, despersonaliza corpos periféricos e torna aceitável sua eliminação. A violência estatal é proporcional à violência econômica que estrutura a sociedade.

A ausência de políticas públicas significativas em educação, saúde e moradia, por exemplo, é parte dessa engrenagem. A criminalização da pobreza é funcional e justifica o encarceramento em massa, o controle territorial e a exclusão política. Quando o controle ideológico falha, o Estado recorre à espetacularização da força para reafirmar seu poder sobre corpos economicamente desvalorizados.

Contudo, essas tragédias não tardam a ser esquecidas. Assim como a Operação Escudo e Verão foram silenciadas, a megaoperação nos Complexos da Penha e do Alemão será absorvida pela rotina da barbárie. E ainda há os que aplaudem, parte significativa da população, inclusive de áreas periféricas, que apoiam a eliminação dos “transviados da ordem”, acreditando que a violência estatal é solução para a insegurança. Não percebem que o Estado cria a doença e se oferece como remédio – um remédio que mata.

Políticos como Tarcísio de Freitas e Cláudio Castro, embora criticados por defensores dos direitos humanos, ganham projeção entre parcelas relevantes do eleitorado. A conjuntura ideológica lhes é favorável, pois o medo e a insegurança são combustíveis eficazes para o autoritarismo. As reações nas redes sociais à megaoperação fluminense revelam um assustador adoecimento moral coletivo, que torna a barbárie uma virtude e a civilização um delírio.

Em meio a esse contexto, o governo fluminense chegou a enviar aos Estados Unidos um relatório solicitando apoio de Donald Trump para classificar o Comando Vermelho como organização terrorista. A iniciativa, travestida de política de segurança, caso se concretize, pode abrir caminho para futuras intervenções estadunidenses sob o pretexto de combate ao terror – à semelhança do que ocorreu na Colômbia.

Para encerrar este breve texto, quando refletimos sobre a tática “muro do BOPE”, torna-se evidente que ninguém foi lá para prender criminosos, mas para eliminá-los. Na mata fechada, quem sobrevive conta a história – e sempre é o Estado quem narra a versão oficial.

O que resta é continuar a luta por um país mais justo, sem ilusões nem utopias, lembrando que nada é mais utópico do que acreditar que um sistema opressor possa curar a si mesmo. O Estado que administra a morte não tem vocação para a vida.

(*) José Burato é diretor de Comunicação da Associação de Professores/as e Filósofos/as do Brasil – APROFFIB; ex-sargento da Polícia Militar do Estado de São Paulo.

Notas:

  1. Veja Necropolítica, de Achille Mbembe, disponível em: https://www.procomum.org/wp-content/uploads/2019/04/necropolitica.pdf.
  2. Tática que consiste na formação de uma barreira humana, em que policiais se posicionam em todos os possíveis pontos de fuga do inimigo. No caso da Operação Contenção, tropas policiais que invadiram os Complexos da Penha e do Alemão forçaram a retirada dos supostos traficantes para a região da mata da Serra da Misericórdia, onde foram encurralados, e não podiam voltar nem seguir adiante. Na prática, é uma antiga tática militar conhecida como “martelo/bigorna”, citada na próxima nota. 
  3. Semelhante à convicção estadunidense de guerra ao terrorismo, consolidada a partir do início deste século, na qual “grupos terroristas constituem uma enorme ameaça aos Estados Unidos e à sociedade civilizada”, e que, portanto, “por não serem considerados passíveis de serem apaziguados ou coibidos”, devem ser simplesmente eliminados. Essa operação policial no Rio de Janeiro revela o uso de duas táticas: o Shock and Awe – Choque e Pavor ou Domínio Rápido –, que com a utilização de uma força militar irresistível e avassaladora, numa demonstração assustadora e desproporcional do poder armado, visa a paralisia do ânimo inimigo para a luta; e a antiga Hammer and Anvil – Martelo e bigorna ou o agora renomeado “muro do BOPE” –, em que uma força militar, o martelo, encurrala o inimigo contra outra força militar, a bigorna, não tendo para onde fugir. Veja Força militar dos EUA no pós-guerra fria: ganhando batalhas e perdendo guerras, de Humberto José Lourenção e Luis Eduardo P. C. Cordeiro (p. 108-110), Revista Brasileira de Estudos de Defesa. Porto Alegre, v. 3, n. 2, jul./dez. 2016, p. 103-117. Disponível em: https://rbed.abedef.org/rbed/issue/view/2975/408.
  4. Veja mais em O fim da operação Verão/Escudo na baixada santista: problemáticas, impactos e o porvir, de Eduardo Armando Medina, publicado em Observatório de Segurança, em 28 de maio de 2024, disponível em: https://www.observatoriodeseguranca.org/pesquisas-e-estudos/o-fim-da-operacao-verao-escudo-na-baixada-santista-problematicas-impactos-e-o-porvir/. Veja também Carandiru, Jacarezinho, Operação Escudo: as ações policiais mais letais do país, de Bianca Muniz e Nayara Felizardo, publicado em G1, em 29 de outubro de 2025, disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2025/10/29/acoes-mais-letais-do-pais.ghtml.

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *