Por Francisco Junior(*) e Nayara Oliveira (**)
O SUS, enquanto Política de Estado universal, integral e democrática foi o maior golpe sofrido pela elite brasileira na história do país pós-Constituição. A reação não tardou a acontecer na forma de desconstrução do seu arcabouço jurídico-legal via sucessivas mudanças na legislação, do apoderamento político através dos grupos e corporações organizados, do crônico subfinanciamento e da privatização das ações, da gestão e gerência da Rede e da sua força de trabalho.
Mais recentemente, foi deflagrado mais um ataque, o mais violento e definitivo, que se traduz num Projeto Político e Ideológico de extinção dos servidores públicos estatutários e do Regime Jurídico Único, utilizando para isso a entrega de serviços da Rede a instituições públicas de direito privado como o Grupo Hospitalar Conceição, do Rio Grande do Sul, a EBSERH (nos hospitais universitários), aprovada no final do governo Lula, o Serviço Social Autônomo (em Minas Gerais) e as Fundações “Estatais” de Direito Privado (na Bahia, entre outros).
Esse Projeto acaba de ter uma vitória importante através da decisão do STF contra a ADI 2135 proposta em 2000 pelo PT, PC do B, PDT e PSB que questionou a validade do processo de votação da EC 19/98 que por sua vez extinguiu o Regime Jurídico Único permitindo a contratação de servidores públicos sob o regime de CLT. O fim do RJU num país onde o patrimonialismo e o clientelismo norteiam a administração pública, é o mais duro golpe sofrido pelo Estado e pelo povo brasileiro na sua história recente.
Conceitualmente falando, é impossível uma Política de Estado com a abrangência do SUS se viabilizar plenamente sem um financiamento suficiente e sustentado ou ter uma gestão e gerência efetivamente de Estado, sem ter uma força de trabalho também de Estado, imune às ações clientelistas, fisiologistas e patrimonialistas dos governos de plantão. Apesar de ser propalada como Política de Estado, cada governo faz, na prática, o SUS que lhe interessa e, em grande parte das vezes, com flagrantes violências à legislação estabelecida. Na outra ponta, sua força de trabalho, hoje majoritariamente precarizada, quando muito contratada através da CLT, é totalmente refém dos governos que se sucedem.
Isso está na raiz das debilidades e da real impossibilidade do SUS de se estabelecer conforme preconizado na Constituição Federal. Vemos hoje a volta de conceitos plantados por Bresser Pereira durante o governo de FHC que apontava para o desmantelamento do Estado brasileiro.
Ao apresentar como solução para a crise vivida pelos hospitais federais do Rio de Janeiro a sua literal, antidemocrática e violenta ocupação por instituições como Grupo Hospitalar Conceição e EBSERH, os revisionistas que hoje estão no governo pretendem fortalecer e consolidar as referidas estruturas como aparelhos políticos, ao mesmo tempo em que – apesar do discurso oficial da “estabilidade” dos servidores naquela instituição – dão passos definitivos para o aprofundamento da vulnerabilidade dos servidores públicos, condição vital para a sobrevivência, fortalecimento e perpetuação daqueles aparelhos. Qualquer governo que queira demitir os trabalhadores, assim o fará porque sempre terá à disposição instrumentos “legais” que o justificarão.
Servidores públicos estáveis são uma ameaça que precisa ser eliminada enquanto inviabilizam o Projeto de Poder pensado, estabelecido e instituído através daqueles aparelhos políticos.
Esse Projeto — pensado por revisionistas outrora integrantes do movimento da Reforma Sanitária e por neófitos que conhecem a Reforma e o SUS por livros, alguns não exatamente as melhores referências — fragiliza o Estado brasileiro, desconstrói e inviabiliza definitivamente o Sistema Único de Saúde, sintonizando-se com os escritos de alguns “pensadores” que afirmam a necessidade de “mudanças” estruturais no SUS com a finalidade de se “adequar à nova conjuntura mundial”.
Para salvar o SUS dos seus inimigos, os movimentos devem agir exatamente num sentido inverso, combatendo as gestões clientelistas e patrimonialistas de “operadores” indicados por Partidos Políticos e políticos da base do governo, através de um processo de contratualização direta entre o serviço e o correspondente nível de gestão, propiciando autonomia administrativa e financeira, bem como a profissionalização da gestão com nossos próprios quadros a partir de critérios previamente definidos. Com a extinção do RJU, essas propostas juntamente com a Carreira Única e Interfederativa no SUS serão ferramentas fundamentais na valorização e garantia de estabilidade e segurança previdenciária dos trabalhadores para viabilizar um sistema universal, integral e democrático.
Dessa forma, não queremos e não entraremos para a história como responsáveis pela extinção dos servidores públicos nem pela definitiva destruição do Sistema Único de Saúde.
(*) Francisco Junior é farmacêutico do SUS no Rio Grande do Norte, membro do Setorial Nacional de Saúde do PT, ex-presidente do Conselho Nacional de Saúde.
(**) Nayara Oliveira é educadora popular em Saúde aposentada do SUS em Campinas/SP, militante do Movimento Popular de Saúde (MOPS) de Campinas, ex-presidenta do Conselho Municipal de Saúde de Campinas e membra dos Setoriais de Saúde Nacional e Estadual do PT.