Sindicalista de Sergipe fala dos desafios da automatização na agricultura, da luta por condições dignas de trabalho e da urgência do subsídio e da escolarização
De mãos dadas com o agricultor familiar e dirigente sindical da CUT Sergipe e do Sindicato de Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares de Aquidabã (SINTRAF), Alberto Marques Santos (o nosso querido Betinho), vamos conhecer um pouco das diversas realidades do trabalho no campo no Brasil: presente, passado e perspectivas de futuro, nesta entrevista para o Página 13.
Nascido na roça, no povoado Cajueiro dos Potes, no município de Aquidabã, interior de Sergipe, Betinho não lembra quando começou a trabalhar na agricultura familiar, pois seu pai e seus avós também trabalhavam na agricultura, produzindo para a subsistência da família e ainda conseguindo vender parte da produção para nos municípios de Aquidabã.
Sua avó materna, viúva aos 25 anos e que nunca se casou de novo, herdou terras do marido e, construindo uma casa de farinha, alimentou e criou toda a família com abundância de alimentos, e seguiu produzindo, principalmente milho, feijão e farinha, que chegava a estocar em casa e a compartilhar com a população necessitada do povoado Tapuio, onde morava, também no município de Aquidabã.
Betinho viveu os primeiros anos da vida com os pais e irmãos no povoado Cajueiro dos Potes, onde sua mãe conciliava o trabalho de professora e agricultora, criava galinha e cultivava hortaliças em um quintal produtivo.
Junto à sua família, cozinhando no fogo a lenha, com panelas de barro e talheres de lata (pois os utensílios domésticos eram raros), o agricultor Betinho, que há 20 anos é dirigente sindical, aprendeu logo cedo a cultivar o valor da solidariedade para não cair nas armadilhas do consumismo e superficialidades disfarçadas de luxo, pois para o trabalhador do campo, luxo é ter água potável e encanada em casa. Aliás, não havia água encanada no povoado Cajueiro dos Potes quando Betinho nasceu e, para uso domiciliar, se trazia água do riacho. Só aos 8 anos foi morar no povoado Tapuio, onde a tão sonhada água encanada só chegou em 1990. Foi nessa década também que Betinho foi estudar em Aquidabã durante dois anos. O meio de transporte para a escola, que ficava na cidade, era o carro do leite, que dava carona a poucos jovens da zona rural, em meio aos vasos de leite.
Com o envolvimento de sua mãe na criação de Associações Comunitárias junto à irmã Vicentina Luci, no município de Aquidabã, teve início o seu engajamento com a luta sindical. Aos 18 anos, participou da primeira reunião e seguidas mobilizações que culminaram em 6 de abril de 1999 na ocupação de terra. Mesmo jovem, Betinho foi eleito coordenador da ocupação, que foi vitoriosa e, após dois anos de acampado, Betinho conquistou o seu lote, onde até hoje vive e planta. Nesses 20 anos como sindicalista, já atuou em várias lutas através do Sindicato de Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares de Aquidabã; na CUT; na Fetase; na Comissão Nacional de Biodiversidade, representando a Contag; no Comitê Estadual de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca; na Comissão Nacional de Combate à Desertificação e no Comitê Estadual da Mata Atlântica, entre outros espaços de construção sindical.
Ao longo desta caminhada, Betinho se graduou em Ciências Biológicas pela UFS e, atualmente, na mesma universidade pública, cursa Geologia. Para Betinho, a luta sindical foi e continua sendo uma grande universidade sempre com muito aprendizado. “Junto ao sindicalismo, aprendi a ser linguarudo, independente, defender a importância da independência do trabalhador e da liderança sindical que não se atrela ao poder público para ganhar vantagens e ficar parado, pois, apesar de toda a luta e construção da luta, o movimento sindical no campo ainda tem muito por construir”, explicou. Boa leitura.
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Página 13 – A maioria dos nossos leitores é urbano. Por isso quero começar a entrevista pedindo para você nos contar um pouco: como é a vida dos trabalhadores rurais?
Betinho – A vida dos trabalhadores rurais tem diferenças. O agricultor familiar geralmente produz na sua própria terra e é o seu próprio patrão. Apesar das dificuldades para produzir, tem o alívio de produzir os alimentos para a subsistência de sua família e consegue comercializar o seu excesso. Tem os mais bem sucedidos que produzem, vendem e conseguem ter uma vida digna. Mas a gente também tem agricultor familiar que não consegue produzir todos os componentes da sua cesta básica alimentar.
É chamado de trabalhador rural quem não produz na sua própria terra, então é o trabalhador contratado para produzir na terra dos outros, sendo assalariado ou prestador de serviço no meio rural. Quem não tem terra, trabalha como meeiro. No passado, os meeiros conseguiam se associar para produzir. Hoje a disputa por terra está mais acirrada por causa do agronegócio, que está mais fortalecido a cada dia.
A monocultura está forte. O milho, por exemplo, é produzido em grande quantidade, e cada vez mais o agronegócio quer crescer, arrendar terras e se expandir. Quando não compra várias áreas, o agronegócio cresce comprando áreas de médio porte, áreas pequenas, e vai se fortalecendo. Quanto maior a área, maior a lucratividade. Isso faz com que vá acabando em algumas regiões com a figura do meeiro e do arrendatário. Muitos hoje querem arrendar sua terra para receber em espécie. Quero dizer com isso que está cada vez mais difícil a situação do trabalhador que não tem terra.
Nos acampamentos, você encontra todo tipo de trabalhador. Quem é da cana, quem faz bico em outras profissões… Por isso há quem prefira o termo camponês para designar o trabalhador do campo, mas as realidades são muito diferentes para quem trabalha como empregado, porque não tem sua própria terra. Por isso a luta por reforma agrária é importante para os agricultores familiares que não têm terra.
Quais as dificuldades enfrentadas pelos trabalhadores da agricultura familiar?
Quem tem terra — o agricultor familiar — enfrenta dificuldades para produzir com a questão climática nos dias de hoje. Quando não tem chuva, a seca assola e não tem como ter produção. Outras vezes, o problema é que chove demais e essa chuva em excesso afeta a produção, prejudica a germinação, as terras perdem a produtividade, vai tendo o desgaste do solo. Os produtores da agricultura familiar corrigem com adubo essa questão do desgaste do solo, mas a quantidade de água em excesso lava esse adubo, dissolve e leva tudo embora, então a planta acaba tendo uma baixa produtividade. Aí já demanda uma correção da planta e vai encarecendo a produção. Os valores desses pacotes de cultivo e correção de solo acabam sendo muito altos, e se o agronegócio já utiliza esses pacotes e consegue pagar este preço, para o produtor da agricultura familiar é mais difícil de pagar.
Mesmo quando temos a chuva regular, tem afetado a produção de milho para a subsistência, o milho da agricultura familiar. Eles alardeiam que a produção de milho bombou e divulgam números da Conab, mas isso é porque divulgam junto a produção do agronegócio. O pequeno agricultor é quem mais sofre com as mudanças climáticas. Por isso a agricultura familiar precisa de políticas públicas. Fala-se muito do Pronaf, mas é um sistema complexo, mais voltado para o financiamento. Em seu formato, tem muito financiamento, mas precisamos de um subsídio que influencie de fundo perdido a política do alimento, porque a gente ainda não tem essa política. Tem o subsidio para a compra, o PNAE, mas isso é um acesso ao mercado para quem está organizado. Muitas vezes as pessoas não estão organizadas e precisam produzir para ter acesso a essas politicas colocadas pelo governo.
Precisamos avançar muito mais para garantir a permanência da população que é mais pobre, para que continue no campo com subsídio. Como a gente vê em outros países da Europa: existe subsídio para o camponês. Quem vive na roça ainda enfrenta um grande problema de segurança, e a politica pública da aposentadoria rural é a única que ainda garante um pouco a permanência da população no campo. Pois quem se aposenta passa a ter uma fonte de renda e continua com a sua terra produtiva. Conheço muitos trabalhadores que depois de se aposentar passaram a ter uma produção de agricultura familiar muito maior, pois conseguem sobreviver e resolver os problemas da produção, mas aí só para a mulher que chega aos 55 anos e para o homem do campo com 60 anos. A gente precisa de política pública que incentive a juventude do campo. Senão ele não vai ficar no campo. Falo de quem não recebe o Bolsa Família. Mesmo quem recebe o Bolsa Família, quando vai avançando na vida, perde a Bolsa e fica sem subsídio para fortalecer a produção.
Quais outras políticas públicas podem ajudar o trabalhador do campo a produzir?
O Financiamento bancário. Bastou trocar de governo que ficou dificultado o acesso aos agricultores. Precisamos de uma política permanente de incentivo à produção no campo com financiamento bancário. No campo, como na cidade, tem o mais favorecido e o menos favorecido. Agrava ainda mais a situação do agricultor familiar aqui do Nordeste em comparação à agricultura familiar que se pratica no Sul por causa da questão da água. A gente precisa de água para produzir. Aqui ficamos oito meses sem água, na seca, sem produzir. E temos de três a quatro meses de chuva. Então, nem tudo a gente consegue produzir em três ou quatro meses.
Tracei essa diferença entre o agricultor familiar e o trabalhador rural, e ainda tem a diferença óbvia de quem trabalha para o agronegócio, tem os camponeses ou agricultores que plantam, mas não têm esta atividade como único meio de subsistência, então a realidade no campo é muito diversificada.
Dentro do processo de produção de cana, por exemplo, existe uma enorme cadeia de produção, enorme mesmo, com vários tipos de trabalhadores diferentes. Dentro do grupo de trabalhadores da cana, tem a colheita e na colheita tem as bituqueiras (mulheres com a menor remuneração, que pegam as bitucas que caem no chão durante o corte da cana para que não haja desperdício), tratoristas, motoristas da cana, atravessador, que é como se fosse um RH, veja que só o corte da cana envolve diferentes funções…
E o trabalhador rural que não tem a sua própria terra, quais as principais dificuldades enfrentadas pelos trabalhadores rurais sem terra?
O trabalhador rural sem terra vende a sua mão de obra e enfrenta todas as cobranças do mundo do trabalho. Ele tem que desenvolver um trabalho, por muitas horas, com um desgaste físico muito grande, porque é uma atividade física puxada e ainda por cima a gente sabe como são as condições de trabalho… Por isso, muitas vezes, tem trabalhadores rurais resgatados em condições análogas à escravidão. Eles não têm nenhuma garantia, e é um trabalho muito degradante no meio das culturas. O lucro do patrão está no trabalho dele. Quanto mais ele trabalha, é explorado e tem o seu direito negado, mais ele dá lucro. O patrão vai deixar de ter carro luxuoso e de tomar o seu café no shopping gastando um dinheirão numa xícara de café? O patrão vai deixar de dar luxo pra sua família e de investir em sua vida de rico para que o trabalhador rural tenha um banheiro digno? Claro que não vai abrir mão do luxo, mas, para manter isso, alguém tem que trabalhar. No capitalismo, alguns trabalham exaustivamente em condição análoga ao trabalho escravo para que poucos vivam com luxo. A gente chama de tentáculos do capitalismo. Quase todas as grandes empresas do mundo investem no agronegócio, por quê? Porque sabe que é um investimento lucrativo para quem aplica na bolsa de valores, investe nas commodities, pode ganhar o dinheiro sem sequer trabalhar, mas não enxerga quem deu o suor todo de sua vida produzindo esse milho do agronegócio e nunca conseguiu dar uma vida digna para sua família, porque foram duramente explorados a vida toda. Muitos trabalhadores rurais prestam serviço para o agronegócio.
Com o alto nível de mecanização da produção agrícola no agronegócio, o trabalhador rural sem terra e que recebe um salário menor está cada vez mais escasso? Como está o desemprego no campo com o avanço das máquinas?
Hoje, com a tecnologia, falta trabalhador com formação especializada para atuar no mercado de trabalho. A tecnologia tem avançado e são duas coisas que não têm avançado em paralelo: a formação profissional desses trabalhadores e o mercado de trabalho.
Hoje, aqui em Sergipe, eu vi no município de Rosário do Catete três máquinas colheitadeiras, cada máquina dessa trabalha por 100 homens fazendo o corte da cana. Ali, tirou o posto de 300 trabalhadores. Talvez ali não tenha nem 20 trabalhadores, juntando maquinistas, operadores de tratores e vagões dos caminhões para serem coletados na carreta que não consegue entrar no canavial. Hoje há grande disputa por terra plana, porque a máquina só trabalha em terra plana. A disputa por terra é outra questão. Os outros trabalhadores que ficaram sem escolarização como vão ser absorvidos? Eles, desde criança, estavam sempre fora da escola, porque estavam trabalhando no corte da cana. Agora, quem trabalha no corte da cana é a máquina, e são máquinas cada vez mais tecnológicas, exige formação para lidar com este equipamento. No mínimo, o trabalhador tem que ter 2º grau e saber lidar bem com tecnologia. Existem cursos de capacitação, mas será que o dono de uma usina de açúcar vai botar uma máquina que custa R$ 3 milhões na mão de um trabalhador que acabou de se alfabetizar? Eu duvido. As pessoas se qualificam na cidade e no mundo tecnológico para pegar essas vagas de emprego. Hoje o agrônomo com curso superior pode ser um operador de máquina.
Mesmo com experiência no campo, a contratação do trabalhador analfabeto e da trabalhadora analfabeta é sempre para os serviços mais degradantes. Se tem um vale onde a máquina não consegue entrar, então chama o trabalhador e ele vai passar o dia inteiro dentro da lama, trabalhando em condição degradante, na maioria das vezes com trabalhos exaustivos.
Fale um pouco sobre o sindicalismo rural. Quais as semelhanças e diferenças em relação ao sindicalismo urbano?
O trabalhador rural contratado se depara com muitas semelhanças com o sindicalismo urbano. No campo também tem Acordo Coletivo de Trabalho, a luta por condições dignas de trabalho, o acesso a direitos trabalhistas, previdenciários, contra a exploração, por melhores salários que permitam sobreviver com a sua família no campo. A luta contra a fome é outra semelhança. Existe no campo e na cidade.
No campo, os empregados lutam para ter a sua própria terra e lutam também, no geral, por políticas públicas. Desde a década de 60, quando os trabalhadores criaram os primeiros sindicatos, foi para lutar por uma política pública para quem produz e vive no campo, quem vive da agricultura, era a luta pela aposentadoria rural. A primeira aposentadoria rural conquistada aqui em Sergipe foi em 1971. E, ainda hoje, a gente percebe que o que atrai a maioria dos trabalhadores do campo aos sindicatos é a busca pelo direito à aposentadoria rural.
Ainda hoje, lutamos por outras políticas públicas, pelo acesso à água e o seu uso inteligente, pelo acesso à energia elétrica, por políticas públicas, subsídio da produção, para evitar o desperdício de produção e garantir maior produtividade, mais alimentos e menos fome.
O agricultor familiar precisa estar organizado para conseguir vender a produção, ele precisa do sistema de inspeção. O papel do sindicato é mobilizar, organizar e cobrar a implementação da política pública do SIM (serviço de inspeção municipal), para o produtor conseguir acessar o mercado. Sem mercado não tem desenvolvimento. Estrada e infraestrutura são fundamentais. Escoamento encarece a produção. Estrada é uma política pública de incentivo ao escoamento da produção.
O trabalhador rural toma um grande baque no corpo dele e o serviço de saúde pública no Brasil nunca conseguiu chegar no campo, nos povoados, então, como na Ditadura Militar foram distribuídos gabinetes odontológicos para os sindicatos, também existe muito esse tipo de assistência odontológica, médica, previdenciária nos sindicatos rurais. Entendo que é importante que, com isso, o sindicato não deixe de lutar por mais políticas públicas e por melhores condições de vida no campo.
Do ponto de vista de um Sindicato de Trabalhadores Rurais, por que é mais importante estar filiado à CUT do que se filiar a outras centrais?
Primeiro pelo acúmulo desde o surgimento da CUT. O debate com os rurais dentro da agricultura familiar fundou a CUT. A pauta do campo sempre esteve presente dentro da CUT, uma presença importante na construção de muitas bandeiras de luta. E quando algumas centrais sindicais se aproximam dos trabalhadores rurais, tentando fazer a disputa, é sempre em benefício próprio. Não vemos outras centrais sindicais fazendo a defesa da política da reforma agrária, de acesso ao crédito rural, nem na luta por políticas públicas. Na CUT, conheci toda uma plataforma de luta voltada ao trabalhador rural e aos trabalhadores da agricultura familiar. Por isso há diferença em estar filiado à CUT: pela importância que a central dá à classe trabalhadora rural. Por isso, hoje, vemos o retorno de filiação dos sindicatos de trabalhadores rurais à CUT, porque é a central sindical onde a gente trata das pautas dos trabalhadores rurais e da agricultura familiar.