Por Marcos Jakoby (*)
A partir de 1989 – com a Frente Brasil Popular, composta pelo PT, PSB e PCdoB—até 2014, o PT foi o principal protagonista de uma política de alianças de esquerda-centro, algumas vezes incluindo partidos à direita. Esta política foi mais efetiva no governo do que nas eleições, no segundo do que no primeiro turno, nas eleições do que fora delas, nacionalmente do que nos estados e municípios. Mas podemos dizer que existia um campo de alianças, que tinha o PT como centro. Entretanto, nos últimos anos está em curso uma tentativa de compor uma frente de centro-esquerda que exclua o PT.
Um momento importante desta tentativa ocorreu nas eleições de 2014, quando o PSB lançou a candidatura de Eduardo Campos, ex-governador de Pernambuco e Marina Silva, que acabara de formar a Rede Sustentabilidade, como candidatos a presidente e à vice-presidência, respectivamente. Com a morte de Eduardo Campos em um acidente aéreo, Marina assume a candidatura à presidência. A linha da campanha era de se apresentar como uma alternativa política à polarização entre PT e PSDB. O programa de governo relegava o pré-sal a um segundo plano, defendida um Estado menor na economia, abandonando o “dirigismo” estatal, e abrindo mais espaço para o capital privado. Marina também se manifestou durante a campanha ser contra em pautar em seu programa de governo a criminalização da homofobia e o casamento homoafetivo. Fica patente que a divisão era muito mais do que eleitoral.
Com a vitória de Dilma Rousseff no segundo turno de 2014, imediatamente as classes dominantes lançaram uma ofensiva violenta contra o governo e a esquerda, mirando um golpe que veio se consumar em 2016. Uma enorme aliança foi forjada para derrubar o governo legítimo. Manifestações com base em setores médios conservadores e reacionários, tomaram as ruas. O oligopólio da mídia se dedicava diuturnamente em criminalizar o PT e suas lideranças. O Partido do Judiciário cumpria o seu papel em atropelar a legalidade democrática para viabilizar o golpe. Direita e extrema-direita marchavam juntas. Criou-se o ambiente e uma correlação de forças muito desfavorável ao campo democrático e popular, facilitado, a bem da verdade, por erros cometidos pelo governo e pelo PT.
Foi nesse contexto que ocorreu a votação da Câmara do impeachment, onde o PDT contou com 12 votos contrários ao golpe e 6 a favor (embora sua Executiva houvesse fechado questão em votar contra). Na Rede foram 2 a favor e 2 contra. E no PSB, 29 a favor e apenas 3 contra. Ou seja, parte do que denominamos de centro-esquerda capitulou ao golpe.
As eleições de 2018 marcaram mais um capítulo dessa divisão. Quando o Partido do Judiciário retirou Lula, o candidato mais bem colocado nas pesquisas e a maior liderança popular do país, da disputa eleitoral, abriu-se um debate no PT e no PC do B entre apoiar Ciro Gomes, candidato à presidência pelo PDT, ou lançar uma candidatura própria. O PT e PC do B decidiram lançar as candidaturas de Fernando Haddad e Manuela d`Avila para a majoritária. Haddad foi para o segundo turno e Ciro Gomes fez 12% dos votos. No segundo turno, entre o campo democrático e popular, representado pela candidatura de Haddad, e a candidatura de Bolsonaro representando a aliança do neofascismo e o ultraliberalismo, Ciro Gomes preferiu viajar a Paris e não declarar apoio a Haddad.
Ainda na eleição começou uma operação política, de setores da direita e da centro-esquerda, em construir uma ideia-força de que a vitória da extrema-direita seria responsabilidade do PT, em razão de ter insistido em uma candidatura própria. Não foi o golpe de 2016, não foi a condenação e prisão sem prova e sem crime de Lula, não foi o fato da candidatura com maior capacidade política e eleitoral ter sido retirado da disputa, não foram o financiamento ilegal e a enxurrada das fake News criminosas. A responsabilidade teria sido do “hegemonismo” do PT.
Mesmo assim, Haddad chegou ao segundo turno e conquistou 47 milhões de votos e quase 45% dos votos válidos. O argumento de Ciro Gomes e de seus aliados é de que era impossível vencer o antipetismo. A afirmação tão peremptória era baseada em pesquisas que demonstrariam que Ciro teria mais chances de vencer no segundo turno. Acontece que muitas pesquisas também indicavam um percentual parecido entre Ciro e Haddad em um provável segundo turno. Por outro lado, as pesquisas também haviam indicado que Lula, se fosse candidato, sairia vitorioso. E Lula é do PT, não? Portanto, afirmar que o antipetismo foi o maior fator para a nossa derrota não se sustenta. Isso sem falar de outras questões que aqui não cabe desenvolver.
Apesar e contra os fatos, desde então Ciro Gomes e outros na centro-esquerda vêm operando na frequência de que, para derrotar a extrema-direita, o PT não pode ter protagonismo. A lógica é de que é impossível derrotar a extrema direita sem atrair setores mais ao centro e conservadores; e é impossível atrair estes setores, tendo o PT na linha de frente.
Dentro desse contexto, é que presenciamos uma escalada de ataques feitos por Ciro ao PT e a Lula, ao passo que percebemos também diversos movimentos buscando nos isolar. Trata-se de um esforço para se distanciar do PT e se mostrar palatável aos olhos de setores “antipetistas”. Mas por trás disso e para além da tática estritamente eleitoral, há também uma evidente disputa em construir um outro polo da disputa política em nosso país, onde esses atores pretendem ocupar o espaço que o PT obteve desde 1989.
O problema não é querer necessariamente construir outra hegemonia no campo da centro-esquerda. O PT sofreu grandes derrotas, é natural que outras forças queiram disputar a liderança que envolve o campo. O problema, a nosso ver, está em fazer isso através de métodos que resultarão em grandes derrotas para a classe trabalhadora, para a luta em favor dos direitos sociais e políticos e para a luta pela soberania nacional. E o pior, construindo esse caminho em alianças estratégicas e programáticas com setores da classe dominante.
Ciro Gomes, em entrevista ao jornal Estado de Minas (https://bit.ly/2Y5AvkN ) diz que “O projeto que eu defendo é completamente diferente da visão que o PT tem, que, aliás, não tem visão nenhuma. Portanto, se na primeira tarefa pede-se unidade para defender a democracia, a segunda pede um debate que nós aclaremos ou aprofundemos nossas diferenças de forma fraterna, coisa que eles nunca fazem.”
O curioso é que Ciro pede um debate de forma “fraterna” e na mesma entrevista fala de “lulopetismo corrompido”, chama a presidenta do Partido, Gleisi Hoffman, de “puxa saco de quinto nível” e ataca Lula como corrupto. Por outro lado, cobra por “aclarar” as diferenças sobre o Brasil. Isso acontece no mesmo momento em que o o PT e suas lideranças apontaram vários limites do manifesto “Estamos Juntos”, afirmando que há uma ausência completa dos interesses da classe trabalhadora e dos setores populares e nem mesmo traça um objetivo específico básico, como o impeachment de Bolsonaro. Assim, essa tática que leva a esquerda a diluir-se numa frente com a direita, sem ao menos preservar sua identidade e seus interesses, seria um caminho equivocado na opinião de Lula e do PT.
Qual foi a reação de Ciro, também na mesma entrevista, e de muitos outros? O PT estaria “censurando” o manifesto e de que o Partido só critica porque é “hegemonista”.
Lendo a entrevista de Ciro, observando as formulações e as posições de outros representantes da centro-esquerda, fica nítido que traçam uma linha política de um tipo etapista. Primeiro uma luta política por democracia, que consiste basicamente em afastar Bolsonaro, e depois uma outra etapa, em torno de um outro projeto para o país. Ocorre que para o PT, a luta por afastar Bolsonaro está intrinsicamente ligado à luta por direitos sociais e trabalhistas, desenvolvimento econômico, reformas estruturais e por soberania.
Por exemplo, basta afastar Bolsonaro e manter Mourão com os olhos nas eleições de 2022? Ou devemos lutar por afastar todo o governo e convocar novas eleições, devolvendo ao povo a possibilidade de dar solução para a crise atual? É possível lutar por democracia sem pautar o programa ultraliberal, que está levando a uma regressão social e econômica sem precedentes? Ou ainda: esvaziar a luta contra Bolsonaro de conteúdo político e programático da esquerda, para fazer uma aliança com a direita não bolsonarista e com frações da classe dominante, não levaria a um outro arranjo das classes dominantes, com o mesmo programa ultraliberal, o qual só se viabiliza, cada vez mais, com grandes doses de autoritarismo?
As perguntas acima evidenciam que há ao menos duas táticas distintas no âmbito da esquerda e da centro-esquerda, no enfrentamento ao governo Bolsonaro. Isso em si já é um grande problema e desafio a ser superado. Mas a linha política de setores da centro-esquerda de que só é possível vencer a extrema-direita isolando e enfraquecendo o PT agrava ainda mais a situação. Minha opinião é de que estes impasses terão maior ou menor resolução a depender do que vier acontecer nas ruas no próximo período. Portanto, esperamos e lutaremos para que elas compareçam.
(*) Marcos Jakoby é professor, militante do PT e editor do www.pagina13.org.br