Quantas omissões são necessárias para o surgimento de um estado fascista? (*)

Por Valéria Dallegrave (**)

“A doença do fascismo avançou, derrubando diversas defesas. É preciso combater a infecção oportunista imediatamente, antes que se estabeleça o domínio da Bolha de Pus”

Neste domingo (19/04), o Presidente Lula declarou, nas redes sociais, que “A mesma Constituição que permite que um Presidente seja eleito democraticamente tem mecanismos para impedir que ele conduza o país ao esfacelamento da democracia e a um genocídio da população”. No dia anterior, sábado, já havia sido realizada a primeira plenária do PT “Em Defesa da Vida-Fora Bolsonaro e Mourão”. Nesta, muitos dos que se pronunciaram deixaram claro que a proposta não é superficial. Quando se reivindica Fora Bolsonaro, é um “fora tudo’ que o levou até a cadeira presidencial. Ou seja: eliminar todos os focos de infecção que geraram a Bolha de Pus. Cabe aqui citar a definição de pus: “secreção de cor amarelada ou amarelo-esverdeada, frequentemente malcheirosa, produzida em consequência de um processo de infecção bacteriana extracelular e constituída por glóbulos brancos em processo de degeneração, sangue, bactérias, proteínas e elementos orgânicos… (wikipedia) ”, etc… E até a cor combina.

É preciso compreender que a Bolha de Pus não é um fenômeno isolado, quando ela surge, já existe a infecção. Isso tem ficado claro com as “carreatas da morte”, que defendem o fim da quarentena e da democracia, ao reivindicar um golpe militar que anule o legislativo e o judiciário. A divisão em três poderes independentes, recordemos, é a base do sistema democrático, uma forma de evitar a centralização de poder que facilmente leva ao abuso -. De evitar que se chegue ao “cortem-lhe a cabeça”, da Rainha de Copas em Alice no País das Maravilhas…

O certo é que o alastramento da infecção na sociedade brasileira aconteceu através de diversos abusos de poder, atos de corrupção (que desviaram até o pau brasil), manipulação de leis, violências em todos os níveis, etc. E, antes de cada um destes atos, houve formas de pensamento que os fizeram surgir e multiplicar: a febre da legitimação do racismo, da exploração, do machismo, da misoginia, do preconceito com diferentes orientações sexuais, de classe, contra indígenas, etc…

A infecção do ódio e do desrespeito à vida se espalhou pelas muitas omissões de indivíduos e instituições frente a tudo isso. A via que levou ao golpe contra Dilma Rousseff tornou-se uma avenida aberta de ilegalidades e abusos. Gritar, em pleno parlamento, uma homenagem a um torturador- e sair incólume disso! – foi um dos maiores absurdos…

E assim, de ação absurda em ação absurda, agigantou-se a cultura da impunidade dos que se julgam acima da lei, da justiça e da humanidade. A doença do fascismo avançou, derrubando diversas defesas. É preciso combater a infecção oportunista imediatamente, antes que se estabeleça o domínio da Bolha de Pus.

Quanto mais tempo se adia administrar o remédio, maiores as chances de tais distorções morais levarem a um estado fascista. A cada dia é mais alienada da realidade a parcela da população programada por notícias parciais da grande mídia – que compactuou com o golpe e ainda não é capaz de um mea culpa -, e pelas fake news recebidas via whatsapp e facebook. Consolida-se nesses indivíduos uma visão de mundo hedionda, em que o ódio e a agressão ao que pensa diferente são reações naturalizadas, em que a economia é pesada na mesma balança que vidas. A cada minuto estão mais doutrinados, já são crentes de uma nova seita, e cada nova omissão do campo progressista torna mais difícil mostrar-lhes o que não querem ver, ou seja: tudo e qualquer coisa que destoe da cor amarelo-esverdeada do pus em que se lambuzam…

Adiar o #ForaBolsonaro é esperar que a bactéria, ou vírus, resolva retirar-se sozinha. É calar e compactuar com cada uma das violências que acontecem mais e mais. Enquanto isso, o ódio aumenta, a ignorância se consolida, a quarentena permanece duvidosa – pois é sistematicamente bombardeada por atitudes individuais e decisões hesitantes ou ineficazes da parte do Governo.

Daqueles entre nós que se indignaram com o golpe contra uma Presidenta democraticamente eleita, muitos já caíram, outros continuam a cair, deprimidos, adoentados, dominados por uma paralisia que enrijece músculos e articulações ou, até mesmo, já morreram. Aguardamos o resultado de uma pesquisa que diga que a vitória é certa afim de começar a agir, e corremos o risco de, quando chegar tal momento perfeito (se chegar), não conseguir mais nos mover…

No quadro atual, atuar pensando nas eleições de 2022 (outra camisa de força que a esquerda se impõe) é sonhar com um milagre. Quais as chances de, até lá, a mídia convencional ter retirado seu bloqueio às forças progressistas? Ou do judiciário se redimir das inúmeras decisões à margem da democracia e da constituição? Ou dos já costumeiros abusadores protegidos pela lei desistirem por conta própria de cometer abusos? Ou de ocorrerem, de fato, eleições!?

E hoje, o que é mais urgente ainda: Quais as chances de evitar milhares de mortes desencadeadas pela influência do sujeito que ocupa o cargo mais importante da nação!? A esquerda, que se quer independente de religiões, permanecerá sonhado com a futura ressurreição de um país a beira da morte, sem ser capaz de empunhar um BASTA!?

Ao que tudo indica, é hora de acordar. De minha parte, posso dizer que acompanhar os pronunciamentos na plenária me fez sentir novamente viva. E hoje eu quero gritar: PRECISAMOS NOS ARRISCAR A VIVER!

(*) O título deste artigo é inspirado em trecho do livro Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago, a pergunta feita por um dos personagens: “Quantos cegos serão precisos para se fazer uma cegueira?”

(**)  Valéria Dallegrave é jornalista, escritora e dramaturga

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(***) Texto publicado originalmente no Brasil 247.

(****) Os textos assinados não expressam necessariamente as opiniões do Página 13.

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