Página 13 divulga resolução política do 8° Congresso Nacional da tendência petista Articulação de Esquerda, realizado entre os dias 28 e 30 de julho, em Brasília.
Resolução do 8º Congresso
O Partido dos Trabalhadores aprovou, no V Encontro Nacional (1987) e no I Congresso (1991), o direito de tendência. E determinou que as tendências devem dar publicidade, ao Partido, acerca de suas posições e atividades.
Cumprindo esta determinação, informamos ao conjunto do Partido que nos dias 28, 29 e 30 de julho de 2023, aconteceu na sede nacional do PT, em Brasília, o 8º Congresso nacional da tendência petista Articulação de Esquerda.
Destacamos o fato de que neste ano de 2023 a tendência petista Articulação de Esquerda completa 30 anos, fato que foi lembrado no Oitavo Congresso, para cuja sessão de abertura convidamos o conjunto da militância petista, em particular a direção nacional do PT, a direção do PT no Distrito Federal e a as direções de todas as tendências existentes no Partido, a começar pelas 14 tendências que fazem parte das 8 chapas representadas no Diretório Nacional do Partido eleito em 2019.
O congresso aprovou uma resolução política geral e um conjunto de resoluções específicas (sobre saúde, educação, comunicação e cultura), bem como uma resolução organizativa acerca do PT e da AE. Além disso o Congresso aprovou duas moções, uma sobre os 40 anos da Central Única dos Trabalhadores e outra em apoio a nomeação de Márcio Pochmann para presidente do IBGE. Todas estas resoluções serão proximamente publicadas em formato de livro e já se encontram disponíveis na página eletrônica www.pagina13.org.br
A seguir o texto da resolução principal.
Sem luta não haverá transformação
Lula tomou posse na Presidência da República em 1º de janeiro de 2023. Esta vitória só foi possível porque as forças democráticas e populares resistiram e derrotaram os golpistas e os neofascistas, derrota consagrada no dia 30 de outubro de 2022, tendo sido decisivo o voto da classe trabalhadora com consciência de classe, das mulheres, das negras e negros, da juventude, da população LGBTQIA+ e dos eleitores de coração nordestino, moradores ou não daquela região do país.
A vitória eleitoral de 2022 só foi possível, também, porque fizemos oposição aos governos Temer e Bolsonaro, lutamos pela liberdade de Lula, impulsionamos a mobilização social e a luta política e ideológica, em todas as frentes, combatendo os neoliberais e os neofascistas, enfrentando muitas vezes em nossas próprias fileiras os que preferiam “virar a página do golpe”.
A partir da vitória eleitoral e antes mesmo de ser diplomado, Lula começou de imediato a tomar decisões presidenciais. É o caso de sua participação na 27ª Conferência do Clima das Nações Unidas e, também, da participação de Lula nas negociações junto ao Congresso Nacional, buscando alterar o orçamento 2023, de forma a incluir recursos para pagar a chamada Bolsa Família para milhões de famílias. O governo de extrema-direita não havia incluído tais recursos na previsão orçamentária e, caso a negociação não fosse feita, Lula teria iniciado seu governo administrando uma crise humanitária de proporções ainda mais graves.
Também no período de 31 de outubro de 2022 a 1º de janeiro de 2023, Lula dedicou grande atenção à transição e ao balanço da situação do país e do governo federal. O resultado deste trabalho foi tornado público no dia 22 de dezembro de 2022, num relatório cuja leitura é essencial para compreender a herança maldita recebida pelo governo Lula.
No mesmo período, Lula se dedicou à composição do governo e à definição de suas relações com o judiciário e com o legislativo. Nos três casos, aplicou-se a chamada “política de frente ampla”, ou seja, a política de alianças entre o Partido dos Trabalhadores e um amplo leque de forças, incluindo aí partidos e setores de partidos de esquerda, de centro, de centro-direita e de direita.
Usando como argumento e muitas vezes como pretexto a “correlação de forças”, se fizeram alianças, inclusive, com forças que integraram a base de apoio do governo de extrema-direita. Um dos efeitos colaterais desta política de amplas alianças foi que as forças de direita e extrema direita obtiveram maioria nas eleições estaduais (governos e assembleias legislativas), maioria no Congresso nacional (Senado e Câmara) e 48% de votos no segundo turno das eleições presidenciais de 2022.
Alguns argumentam que a pequena diferença de votos que garantiu a vitória de Lula (2 milhões de votos) seria uma confirmação da necessidade de amplas alianças. Pensamos diferente: outra política no primeiro turno nos teria colocado em melhores condições para disputar e vencer segundo turno.
Aliás, cabe lembrar que nós sempre dissemos que o mais provável seria uma disputa muito dura, decidida apenas no segundo turno. Já entre os defensores da “frente ampla” foram muitos os que acreditaram em uma vitória já no primeiro turno. Depois, frente aos fatos, passaram a usar como “argumento” em favor da frente ampla exatamente o contrário do que diziam antes, demonstrando que sua defesa da ampla política de alianças é um dogma: não importa o que esteja acontecendo, a solução estaria sempre nas amplas alianças.
Em nossa opinião, para ampliar nossa votação seria necessário, especialmente no contexto das eleições presidenciais de 2022, priorizar a disputa da classe trabalhadora, especialmente do voto daqueles que se abstiveram, votaram branco e nulo – ao final quase 30 milhões de brasileiros e brasileiras. E para disputar estes votos teria sido necessário fazer uma campanha muito mais definida, política e programaticamente, que atacasse não apenas o neofascismo, mas também o neoliberalismo.
Em resumo: para disputar e vencer as eleições presidenciais de 2022 era necessário, sem dúvida, fazer alianças. Mas fazer alianças é diferente de rebaixar o programa e capitular frente aos inimigos, motivo pelo qual repetimos: outra política de alianças era possível e necessária, com mais critérios, com mais limites. Foi isso o que propusemos ao Diretório Nacional do PT, inclusive no debate acerca da candidatura a vice-presidente, onde fizemos parte dos “13 votos” que se pronunciaram contra o nome finalmente aprovado.
Na mesma linha, é óbvio que se faz necessário manter relações institucionais com o sistema judiciário. Mas se hoje prevalece no Supremo Tribunal Federal uma postura contrária à extrema direita, há pouco tempo prevaleceu uma postura contrária à esquerda, com destaque para o respaldo dado pela “suprema corte” para a ilegal condenação, prisão e interdição eleitoral de Lula. Por isso, seguiremos lutando pelo controle externo e democrático do judiciário, combatendo os que buscam atribuir-lhe funções e atribuições que não são suas.
O cumprimento da lei – como foi feito na decisão pela inelegibilidade do genocida – não deve ser confundido com a partidarização da justiça, com a judicialização da política, com o protagonismo político das supremas cortes, por exemplo, sob a forma do lavajatismo e do chamado lawfare. Em nenhum caso é aceitável – ao menos em uma democracia – conceder a uma instituição não eleita poderes exclusivos da soberania popular e de quem for diretamente eleito por ela.
Especificamente sobre a inelegibilidade do cavernícola, é preciso manter a guarda alta e evitar euforias despropositadas. Entre outros motivos, por ser ilusão acreditar que a derrota do neofascismo dependerá principal ou exclusivamente de medidas judiciais. Registramos, ainda, que não é aceitável a recondução do atual Procurador Geral da República.
Ao compor o ministério com que iniciou seu governo, Lula contemplou a ampla coligação que o elegeu, mas também buscou contemplar outras forças políticas, geralmente em nome de compor uma maioria congressual. Entretanto, este objetivo não foi, até agora, alcançado. As vitórias do governo no Congresso, pelo menos até o momento, se deram apenas naqueles casos em que contamos com o apoio dos setores neoliberais, que por sua vez só apoiam aquilo com o que têm acordo total ou parcial. As derrotas sofridas no marco temporal e na questão do saneamento são uma demonstração disto.
Dos 37 ministros e ministras nomeados inicialmente por Lula, 17 são petistas ou simpatizantes do Partido; 3 são do PSB; 3 são do MDB; 3 são do PSD; 2 são do União Brasil (partido que, entretanto, não se considera parte da base do governo no Congresso Nacional); 2 são vinculados ao PDT (embora um destes dois seja na verdade vinculado ao União Brasil, que portanto ocupa de fato três cadeiras no ministério); 1 é presidenta do PCdoB, 1 é destacada liderança da Rede e 1 é filiada ao PSOL (embora não tenha se oposto a participação de Sônia Guajajara como ministra, o PSOL enquanto partido não se considera parte do governo).
Os partidos de direita com participação no governo não garantiram, até o momento, nem mesmo a fidelidade de suas bancadas parlamentares, configurando um caso do “toma lá, sem dá cá”, atitude que tem caracterizado a relação de setores do PT com setores da direita.
Quando encerramos o 8º Congresso da AE, estava em curso uma negociação que pode levar à nomeação de novos ministros de direita, sob o argumento de ampliar a governabilidade, vista única e exclusivamente de uma ótica institucional. Ademais, há pressões no sentido de reduzir a participação das mulheres em ministérios de grande peso.
O Partido dos Trabalhadores não pode nunca esquecer, nas suas articulações visando a “governabilidade”, que em 2016 houve uma ruptura do chamado Estado democrático de direito, da qual resultou a deposição da presidenta da República, a assunção de um governo usurpador, a fraude judicial e eleitoral de 2018. Deste processo participou, direta e indiretamente, pelo menos um governo estrangeiro. Todos estes fatos imprimem ilegalidade jurídica e ilegitimidade política à todas as mudanças na legislação impostas, à gestão do Estado e do povo brasileiros, pelos governos golpista e neofacista.
Como já disse o atual presidente da Câmara dos Deputados, a presente legislatura é conservadora na política e liberal na economia; logo, o governo pode mudar sua composição, mas isto não vai alterar a orientação do Congresso.
Ademais da composição partidária estrito senso, é importante ressaltar que o ministério é composto por uma maioria de homens e brancos, realidade que precisa ser alterada, sempre tendo como premissa ampliar o espaço, no governo, do campo democrático, popular e socialista.
Também se faz necessário corrigir distorções regionais e contemplar adequadamente a diversidade partidária, pois uma única tendência controla a maior parte dos principais cargos. Aliás, é sintomático que se defenda amplas alianças com a direita e, ao mesmo tempo, se tente monopolizar os espaços de governo para uma única tendência partidária.
Quando encerramos o 8º Congresso da Articulação de Esquerda, no dia 30 de julho de 2023, completar-se-ão sete meses do terceiro mandato de Lula na presidência da República do Brasil.
Balanço oficial divulgado pelo próprio governo apresenta o seguinte resumo: “meses de união e reconstrução: é o Brasil no rumo certo”, citando entre outras medidas “programas que fazem a diferença no combate às desigualdades e conciliam crescimento econômico com inclusão social: Bolsa Família, Minha Casa, Minha Vida, Mais Médicos, Brasil Sorridente e Farmácia Popular, entre tantos outros”; “mais renda, mais consumo e mais empregos, impulsionados pelo aumento real do salário mínimo, a redução dos preços de alimentos e combustíveis e o aumento da taxa de isenção do imposto de renda”; “o combate à fome voltou a ser uma política de Estado, com o aumento de repasses do Bolsa Família, o novo Programa de Aquisição de Alimentos, o Plano Safra Agricultura Familiar e o reajuste nos repasses da alimentação escolar para estados e municípios”; “foram criados os ministérios da Mulher, da Igualdade Racial e dos Povos Indígenas e sancionada a lei da igualdade salarial e remuneratória entre mulheres e homens, além do anúncio do pacote de igualdade racial e a volta da demarcação e homologação de terras indígenas”; “o presidente Lula se reuniu com líderes de mais de 40 países e organizações internacionais e transnacionais dentro e fora do País”. Acrescentamos, entre outras medidas: combate ao garimpo ilegal; recursos para ciência e tecnologia; investimento cultural via Lei Paulo Gustavo e Lei Aldir Blanc 2; combate ao trabalho escravo; recomposição do orçamento das universidades federais; ações para deter o genocídio contra o povo Yanomami; a retomada de várias obras paradas; a interrupção de privatizações; a recomposição do salário do funcionalismo público; e destacamos a política externa do presidente Lula.
Especificamente sobre a política externa, apontamos que nossa posição em defesa da paz – as vezes criticada como sendo de apoio à Rússia – não é algo trivial. No processo em curso, de transformação do cenário geopolítico global, é fundamental que o Brasil marque um caminho próprio, que contribua para derrotar o militarismo dos EUA e seus aliados, mas que preserve a autonomia dos nossos interesses nacionais e regionais. É preciso lembrar que esta política externa “altiva e ativa” nos coloca na alça de mira do imperialismo. Aliás, o golpe de Estado de 2016, que instalou um governo usurpador, ilegal e ilegítimo, tornando possível a fraude eleitoral ocorrida no pleito de 2018, teve o apoio direto e indireto dos Estados Unidos, numa ação coordenada pelo então vice-presidente de Obama, o senhor Joe Biden, atual presidente dos EUA.
Entre os diversos pontos da política externa que merecem destaque, citamos a indicação de Dilma Rousseff para presidir o Banco dos BRICS. Independente das divergências que tivemos no passado com a companheira presidenta Dilma Rousseff e sem prejuízo de divergências que possamos ter no presente e no futuro, é imprescindível reconhecer sua imensa contribuição, seja na resistência ao golpe, seja no debate nacional e partidário desde então. Assim como o presidente Lula, a companheira Dilma Rousseff conquistou – na resistência contra a ditadura militar, na ação dos governos petistas e no enfrentamento do golpismo e do neofascismo – um lugar destacado na trajetória de lutas do povo brasileiro.
Retomando nosso balanço dos primeiros meses do governo Lula: de conjunto, embora haja muito que comemorar, é muito mais o que resta por fazer. Sabemos, também, que não basta governar bem, não basta administrar bem. Fizemos grandes realizações administrativas entre 2003 e 2016, mas isso não impediu o golpe, a vitória do cavernícola e quase sete anos de destruição. O desfecho da luta política se decide na luta política, que é muito mais ampla do que a ação administrativa de governo.
Por isto, o conjunto da militância petista deve saber combinar, de maneira adequada, a necessária propaganda positiva das nossas realizações, com a crítica e autocrítica dos nossos erros; a análise detalhada dos grandes desafios que temos pela frente com um trabalho intenso de conscientização, de permanente organização e mobilização do povo, bem como de elaboração das táticas e da estratégica adequadas ao atual período histórico.
Êxitos, críticas e autocrítica
Tomados de conjunto, os primeiros meses do governo Lula devem ser comemorados, especialmente frente aos malfeitos de sete anos dos governos golpistas e de extrema-direita.
Entretanto, sabemos que a avaliação política do governo não é um desdobramento automático de suas realizações administrativas; sabemos, também, que – como diz o próprio presidente Lula – precisamos exercer nossa capacidade de crítica e de autocrítica.
Devemos lembrar que o desempenho do governo Lula nesses primeiros meses teria sido melhor, se vários ministérios não tivessem sido saqueados, desmontados ou até mesmo extintos pelo governo cavernícola, o que agora exige uma engenharia administrativa, legal e orçamentária que torna muito difícil este início de governo. Além disso, o orçamento deixado pelo governo de extrema-direita foi absolutamente inferior ao necessário, contrastando com a realidade, que exige grande e imediata intervenção.
Outro fator que dificulta a ação de vários ministérios é o fato de as equipes demorarem demasiado para ser montadas, entre outros motivos porque o governo combinou as nomeações com a busca – até o momento infrutífera – de ter maioria no Congresso Nacional.
Como resultado daquela busca, há situações que na opinião do PT são inaceitáveis, como é o caso da presença de integrantes e apoiadores do governo cavernícola em postos chave do atual governo. Presença que não mudou o comportamento efetivo destes setores no Congresso, que aliás clamam por mais espaços no ministério, tendo inicialmente mirado inclusive no ministério da Saúde. A esse respeito, na esteira das manifestações da 17ª Conferência Nacional de Saúde, reafirmamos: a saúde não é mercadoria e não pode ser objeto de negociatas.
As ações positivas do governo Lula – especialmente quando postas em contraste com anos de gestão golpista e da extrema-direita – não podem nos levar a fechar os olhos para o fato de que, em algumas áreas e temas, até agora muito pouco ou quase nada mudou. E isto se deve, entre outros motivos, ao fato de que vários ministérios são encabeçados por titulares vinculados a direita, inclusive a setores que participaram do golpe, do lavajatismo, além de terem apoiado o governo derrotado.
Evidente que enquanto prosseguir esta situação, nesses ministérios – com destaque para situações como as da Comunicação, da Defesa e o das Minas e Energia – não haverá avanços efetivos, no sentido do cumprimento do programa de reconstrução e transformação. Avanços que são urgentes: como tem dito e repetido o presidente Lula, temos pressa. Não apenas para superar os motivos que produzem sofrimento no povo, mas também porque a situação política nacional, continental e mundial é muito instável, não sendo admissível que se perca um segundo sequer. E não será possível avançar sem travar uma intensa disputa política.
Neste sentido, a questão da correlação de forças desfavorável, especialmente no Congresso Nacional, não pode ser encarada como empecilho absoluto para que o governo submeta, às casas legislativas, projetos de lei que avancem nas reformas estruturais; afinal, como já afirmamos, não basta diagnosticar a existência de uma correlação de forças desfavorável, cabendo adotar os meios para alterá-la a nosso favor.
E nesta luta pela alteração na correlação de forças, tem papel fundamental a defesa aberta e explícita das reformas estruturais. E esta defesa inclui, além do debate político e da mobilização social, a ação do próprio governo, do presidente Lula e de seus ministros, em defesa de leis que contribuam para materializar as mudanças que defendemos e que constam do programa legitimado pelas urnas nas últimas eleições.
Portanto, pode contribuir na luta pela mudança na correlação de forças, por exemplo, a defesa de uma reforma tributária que grave os ricos e incida sobre a renda e o patrimônio, projetos que alterem o sistema financeiro nacional e o papel do BC, projetos em defesa da ampliação das políticas sociais, da reforma agrária, da reforma das Forças Armadas e das PMs, da emenda constitucional que dará nova redação aos art. 142 da Constituição, da reformulação da Lei da Anistia. Projetos estruturantes que sirvam para mobilizar a sociedade em torno dos verdadeiros interesses da maioria do nosso povo. Resumindo – na linha de que preferimos uma boa luta a um mau acordo – é muito importante e didático que o governo Lula eleja boas batalhas para travar no Congresso Nacional, batalhas que acumulem forças no sentido de alterar as desigualdades estruturais.
Citamos, entre estas desigualdades, as vinculadas ao acesso à terra, do campesinato em geral, das populações quilombolas e das populações periféricas, na sua maioria negras. As violações de direitos e do território remonta ao Brasil colonial. O trabalho escravo contemporâneo está vinculado ao debate sobre a terra e sobre as desigualdades raciais. Cabe lembrar, ainda, da intersecção das desigualdades de propriedade, renda, racial, de gênero e sexualidade. É isto que explica a simultaneidade das violações de direitos humanos, com destaque para as violências contra as mulheres, a população negra e a população LGBTQI+. No Brasil, a violência policial é direcionada principalmente contra estas populações mais vulneráveis. Violência que cresceu com a ampliação do acesso as armas de fogo, que serviu para aumentar a violência letal contra as maiorias populacionais, contra a classe trabalhadora, especialmente mulheres, negros, jovens e população LGBTQI+. Sendo importante perceber que o crescimento da violência não é um fenômeno nacional, mas mundial.
Crise sistêmica mundial
A situação mundial é de crise sistêmica. Esta crise possui múltiplas dimensões (militar, política, social, econômica, ambiental, cultural), tem duração indeterminada e seu desfecho dependerá de muitos conflitos que atualmente estão em curso.
No âmbito mundial, um dos principais conflitos envolve Estados Unidos e República Popular da China. Em nosso continente, um dos conflitos fundamentais se dá entre os que defendem a submissão ao imperialismo estadounidense e, de outro lado, nós que defendemos a integração regional latino-americana e caribenha. E, no âmbito nacional, um dos conflitos fundamentais se dá entre opositores e defensores do modelo primário-exportador, sem cuja superação não haverá como garantir desenvolvimento, bem-estar social, liberdades democráticas e soberania nacional.
Os grandes conflitos que caracterizam o atual período histórico ganharam maior dimensão, profundidade e velocidade nos últimos anos, a partir da crise internacional de 2008. Em seguida vieram: a onda de golpes na América Latina e a posterior reviravolta ocorrida em diversos países, com governos direitistas sendo substituídos por governos progressistas e de esquerda; a pandemia e todos os seus impactos; o crescimento mundial da extrema-direita; a guerra entre Rússia e Ucrânia/Otan.
Para onde quer que se olhe, o mundo está atravessado por conflitos, lutas e mobilizações de todo tipo, como demonstra a recente onda de protestos na França.
Momentos de crise profunda – como o que vivemos atualmente – são terríveis e perigosos, mas também são propícios para darmos passos decisivos para a construção de um novo mundo, um mundo com bem-estar e liberdades, com soberania e integração, um mundo desenvolvido e que preserve o meio ambiente, um mundo socialista.
Este é um dos motivos, aliás, que explica a calorosa recepção dada a Lula nos quatro cantos do mundo: a humanidade quer um futuro diferente do passado, um futuro que tenha na palavra igualdade uma de suas mais poderosas sínteses. E igualdade – falemos das coisas por completo – implica em lutar contra o capitalismo e pelo socialismo.
É desta perspectiva, favorável à mudanças radicais e sistêmicas, que abordamos a atual conjuntura brasileira.
Nosso governo está chamado a contribuir para uma missão histórica, que inclusive transcende as fronteiras do Brasil. Mas só teremos êxito se ampliarmos nosso apoio junto a classe trabalhadora, se dermos um salto de qualidade na atuação de nosso Partido e se impusermos derrotas estruturais tanto à extrema-direita neofacista quanto aos neoliberais.
Neste sentido, mais do que comemorar os êxitos parciais obtidos até agora – entre os quais incluímos a inelegibilidade do cavernícola e, também, a realização no Brasil do XXVI encontro do Foro de São Paulo – o esforço principal do PT deve ser vencer as batalhas presentes e futuras, entre as quais: i/mudar a política do Banco Central e ii/derrotar a ditadura do capital financeiro; iii/garantir forças armadas comprometidas com a defesa da soberania nacional; iv/impor à maioria de direita do Congresso o respeito às prerrogativas constitucionais do executivo e v/criar as condições para construir uma maioria de esquerda no Congresso nacional; vi/democratizar o sistema judiciário; vii/quebrar o oligopólio da comunicação; viii/executar uma política de reforma agrária e ix/enfrentar o agronegócio e a mineração; x/iniciar um novo ciclo de desenvolvimento do Brasil, com industrialização, alta tecnologia e proteção do meio ambiente. Tudo isto combinado e à serviço de xi/melhorar rápida e profundamente a qualidade de vida da maioria do povo brasileiro, com empregos, salários, direitos trabalhistas e sociais, políticas de moradia, saúde, educação e cultura. Vistas de conjunto, as batalhas presentes e futuras demandam xii/um processo Constituinte, na linha do que já decidiu o sexto congressos do PT. A Constituição de 1988 tinha imensas limitações, bem explicadas por Lula quando informou – na fase final do Congresso Constituinte – que a bancada do PT votaria contra o texto final, ao mesmo tempo que assinaria a Carta. Posteriormente, cerca de 120 emendas constitucionais alteraram o texto aprovado, geralmente acentuando seu caráter conservador. Quem deseja transformar o país, não pode aprisionar nossos direitos e liberdades nos marcos de 1988. Nem tampouco pode retardar a revogação das medidas adotadas pelos governos pós golpe de 2016: reafirmamos a necessidade de xiii/revogar as contra reformas trabalhista e da previdência, bem como destacamos que o correto teria sido aumentar o salário mínimo – como defendeu a CUT – para no mínimo R$ 1.382,71 e já a partir do início de 2023, como forma de compensar o confisco salarial resultante da inflação. Reafirmamos, também, que é preciso achar maneiras de recuperar o que foi confiscado desde o golpe.
Exonerar o presidente do Banco Central
Legislação aprovada durante o governo golpista concedeu uma suposta “independência” ao Banco Central, suposta porque na prática o tornou ainda mais dependente e extensão dos interesses do grande capital financeiro.
Nomeado pelo derrotado, o atual presidente do Banco Central mantém uma política de juros altíssimos, cujo único propósito é transferir recursos para o setor financeiro. Mais recentemente, o presidente do BC tem falado em terceirizar ainda mais a gestão de nossas reservas em moeda estrangeira.
É preciso tomar todas as medidas legais e institucionais para, no mais rápido prazo possível, alterar a diretoria do Banco Central, a começar pela sua presidência, sob pena de não conseguirmos adotar uma política de desenvolvimento com ampliação do bem-estar social.
Apoiamos as críticas feitas pelo presidente Lula contra a política de juros. E propomos, ao governo, que oriente seus representantes no Conselho Monetário Nacional a atuar conforme prevê o artigo 5º da lei complementar número 179, de 24 de fevereiro de 2021, que no seu artigo 5º diz o seguinte: “O Presidente e os Diretores do Banco Central do Brasil serão exonerados pelo Presidente da República (…) IV – quando apresentarem comprovado e recorrente desempenho insuficiente para o alcance dos objetivos do Banco Central do Brasil. § 1º Na hipótese de que trata o inciso IV do caput deste artigo, compete ao Conselho Monetário Nacional submeter ao Presidente da República a proposta de exoneração, cujo aperfeiçoamento ficará condicionado à prévia aprovação, por maioria absoluta, do Senado Federal. § 2º Ocorrendo vacância do cargo de Presidente ou de Diretor do Banco Central do Brasil, um substituto será indicado e nomeado para completar o mandato, observados os procedimentos estabelecidos no art. 3º e no caput do art. 4º desta Lei Complementar, devendo a posse ocorrer no prazo de 15 (quinze) dias, contado da aprovação do nome pelo Senado Federal. § 3º Na hipótese do § 2º deste artigo, o cargo de Presidente do Banco Central do Brasil será exercido interinamente pelo Diretor com mais tempo no exercício do cargo e, dentre os Diretores com o mesmo tempo de exercício, pelo mais idoso, até a nomeação de novo Presidente”.
A demissão do presidente do Banco Central e a redução da taxa de juros são objetivos importantes, mas não são suficientes. Além de mudar a política de juros altos e passar a ter a geração de empregos como o objetivo central da política de juros, é preciso tomar medidas contra o oligopólio financeiro privado. O país precisa ter soberania sobre sua moeda e isso depende de um sistema financeiro que seja público.
Sem Anistia para os golpistas
No dia 8 de janeiro, milhares de criminosos atacaram os prédios do governo federal, do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal. Para fazer a polícia da capital do país agir adequadamente contra os criminosos, o presidente Lula foi obrigado a decretar intervenção na segurança do Distrito Federal. Posteriormente, o presidente do Supremo Tribunal Federal decretou o afastamento temporário do governador do Distrito Federal. E, dias depois, foi a vez do comandante do Exército ser demitido e substituído, comprovando que ele nunca deveria ter sido nomeado.
O ataque dos criminosos de extrema-direita não foi um ato espontâneo, nem totalmente inesperado. Já no dia 12 de dezembro de 2022, quando da diplomação de Lula, a extrema-direita promoveu um quebra-quebra na cidade de Brasília, contando com a cumplicidade do então presidente da República, do governo do Distrito Federal, de setores das Forças Armadas e das polícias. Na sequência destes fatos, no final de dezembro de 2022 e início de janeiro de 2023, as redes (anti)sociais da extrema-direita foram tomadas por mensagens arregimentando pessoas para vir a Brasília. E acampamentos foram montados em frente a quartéis, por todo o Brasil.
Tratou-se, portanto, de uma operação de guerra, financiada por empresários, coordenada por uma aliança cívico-militar e perpetrada por alguns milhares de neofascistas, que usaram o acampamento defronte ao Quartel General do Exército como principal base de operações. Apesar disso, o então e ainda ministro da Defesa – que, reiteramos, precisa ser demitido – disse que nos tais acampamentos havia “democratas”, inclusive “amigos e familiares” seus, prevendo que eles se desmobilizariam aos poucos e pacificamente. Aliás, até hoje o atual ministro da Defesa segue – contra todas as evidências – tentando encobrir a participação criminosa de altos comandantes nos atos de 8 de janeiro. Suas declarações apenas confirmam os motivos pelos quais ele foi preferido pelos militares para ocupar o posto.
Resta evidente a necessidade de processar, julgar e punir quem financiou as caravanas e os acampamentos da extrema-direita; quem, por ação ou omissão, facilitou o acesso da extrema-direita à Esplanada dos Ministérios, onde ficam os três prédios atacados; assim como processar, julgar e punir quem invadiu e depredou os três palácios. Ficou patente, também, a necessidade de uma revisão completa dos protocolos de segurança e inteligência do governo federal. Parte disto vem sendo feito. Mas muito resta por ser feito, como ficou fartamente demonstrado pelos fatos que levaram à demissão do General encarregado do chamado GSI; e, mais recentemente, pela descoberta de diálogos mantidos pelo então ajudante de ordem do cavernícola.
Até agora, oficiais-generais e outros militares de alta patente envolvidos com o golpe não foram punidos, nem mesmo administrativamente. O ex-comandante do Exército, por exemplo, general Júlio César Arruda, precisa ser investigado por meio do devido inquérito e punido com prisão, uma vez que resistiu às ordens para desalojar o acampamento bolsonarista montado diante do Quartel General do Exército em Brasília, desacatou ministros e o interventor federal no Distrito Federal (DF) e chegou a ameaçar um coronel da Polícia Militar que tentava remover os acampados.
Outro general de quatro estrelas, Gustavo Dutra de Menezes, foi responsável por impedir ações contra os bolsonaristas acampados no QG. Portanto, é outro caso de militar da mais alta patente que não pode permanecer na ativa, independentemente das ações que vierem a ser ajuizadas contra ele por participação nos eventos golpistas.
Caso os generais Arruda e Dutra não sejam objeto de reforma, passando à reserva, eles continuarão participando do Alto Comando do Exército, o que é uma situação inaceitável, tais as evidências de seu envolvimento com os golpistas.
Reformá-los imediatamente é uma prerrogativa do governo federal e deve ser levada a cabo, sob pena de premiar quem conspirou contra a vontade popular. Dutra, por exemplo, vem até o momento exercendo uma subchefia do Estado-Maior do Exército.
Destaque-se como ação extremamente positiva a transferência da Agência Brasileira de Informações (ABIN) para a Casa Civil, deixando assim de fazer parte do Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Mas o próprio GSI deve ser extinto e o controle da Inteligência (assim como da proteção do presidente da República) deve ficar sob controle de órgãos civis e não do Exército. Ademais, precisamos ter um Ministério da Defesa que seja legítimo representante do poder civil. Além de seguir pendente a necessidade de criar um Ministério da Segurança Pública e de dar publicidade aos atos cometidos pelos ministros da Justiça do governo cavernícola.
Segue necessária, também, uma reforma das Forças Armadas e das PMs, que seja capaz de democratizar tanto os processos de recrutamento e de formação de oficiais como suas estruturas internas (organização, regulamentos, hierarquia). Os currículos atuais dos colégios militares são fortemente enviesados pelo conservadorismo mais reacionário, calcado nas antigas doutrinas de “Segurança Nacional” e nas agendas expansionistas dos EUA, a ponto de as Forças Armadas considerarem seriamente a possibilidade de uma invasão da Amazônia pela França e de colocarem um oficial-general a serviço da 5ª Frota dos Estados Unidos.
Os colégios não podem se furtar às orientações do Ministério da Educação, nem escamotear uma vasta bibliografia de autores e escolas de pensamento que os generais ainda hoje enxergam como “subversivos”. A resistência dos militares a qualquer alteração no seu sistema escolar indica precisamente quão crucial é esse sistema na reprodução da ideologia profundamente antidemocrática, visceralmente oligárquica, que historicamente vem enquadrando a visão de mundo de gerações e gerações de oficiais. Lembrando que esta visão de mundo inclui a subordinação das forças armadas brasileiras a uma potência estrangeira: os Estados Unidos.
A gestão dos colégios militares é profundamente autoritária, desrespeitando a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e a Constituição Federal, que preveem a gestão democrática do ensino, com a participação de professores, funcionários e estudantes nos colegiados e nas decisões das instituições escolares. No ensino superior, um exemplo é o Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), cujo reitor é escolhido em processo de seleção decidido exclusivamente pelo Alto Comando da Aeronáutica, sem consulta à comunidade.
A extinção da diretoria responsável pelas escolas cívico-militares, no âmbito da Secretaria de Educação Básica do MEC, foi um passo importante para sepultar a política do governo anterior. Contudo, este passo e os posteriores não são suficientes para avançarmos na desmilitarização da gestão educacional e escolar das redes públicas. É preciso induzir a descontinuidade e a reversão do processo de militarização de escolas em estados e municípios, para que as estruturas civis responsáveis por essas unidades escolares reassumam plenamente sua gestão, em todos os aspectos, livrando-as da interferência de militares e de suas respectivas corporações. Destacamos, por exemplo, o caso de São Paulo e do Rio Grande do Sul, em que os respectivos governadores são adeptos da militarização.
Vale lembrar, também, da necessidade de alterar o artigo 142 da Constituição Federal, que prevê, atualmente, a figura da “garantia da lei e da ordem” (GLO). É preciso acabar com as chamadas operações de GLO e transferir automaticamente para a reserva o militar que assumir cargo público, encerrando as especulações sobre o suposto “poder moderador” das Forças Armadas, pondo fim a um certo discurso praticado por setores neofascistas com a finalidade de justificar a tutela militar sobre a sociedade civil.
É central a reformulação do artigo 1º da Lei da Anistia (lei 6.683/1979) e do seu parágrafo 1º, que preveem anistia para os autores de “crimes conexos”, uma espécie de código para anistiar agentes militares e civis que praticaram torturas, assassinatos e toda sorte de atrocidades contra aqueles e aquelas que se opuseram à Ditadura Militar, bem como contra diferentes grupos populacionais, inclusive camponeses e povos indígenas.
Ao “interpretar” essa lei, em 2010, o Supremo Tribunal Federal considerou válidos os dispositivos de “crimes conexos”, legitimou a anistia que os militares se autoconcederam (e a seus cúmplices civis), e interditou todo e qualquer processo criminal contra torturadores e assassinos a serviço do regime ditatorial e de seu terrorismo de Estado: centros de tortura, execuções sumárias, “casas da morte”, desaparecimento forçado de corpos, falsificação de laudos etc.
Não haverá sequer liberdades democráticas no Brasil, muito menos uma “democracia”, enquanto persistir a tutela militar sobre a sociedade civil, enquanto a tortura não for definitivamente banida, enquanto as Polícias Militares tiverem licença para matar. Inclusive por isso, outra alteração que devemos priorizar, não “apesar da conjuntura”, mas exatamente para enfrentar as pesadas adversidades conjunturais, é a desmilitarização das Polícias Militares e sua desvinculação do Exército. É preciso pôr fim à falida “guerra às drogas”. As PMs seguem comportando-se como “tropa de ocupação” nas periferias e comunidades faveladas dos grandes centros urbanos. São as forças policiais que mais matam no mundo inteiro e as pessoas negras são as principais vítimas!
O texto atual da Constituição Federal as define como “forças auxiliares do Exército”, o que dificulta aos governadores e governadoras exercer comando sobre elas. O que vale inclusive para os governos estaduais encabeçados por petistas, sendo o caso da Bahia particularmente inaceitável. Como demonstram os dados do Anuário de Segurança Pública 2023, estamos no quinto governo sucessivo do PT no estado e a Bahia tem uma das polícias mais letais do Brasil, abaixo do Amapá e acima do Rio de Janeiro. Além disso, das 50 cidades mais violentas do país (“segundo a taxa de Mortes Violentas Intencionais, com população acima de 100 mil habitantes”), a Bahia tem 12. A saber: Jequié, Santo Antônio de Jesus, Simões Filho, Camaçari, Feira de Santana, Juazeiro, Teixeira de Freitas, Salvador, Ilhéus, Luis Eduardo Magalhães, Eunapolis e Alagoinhas. Reafirmamos aqui todas as críticas feitas em documentos assinados pela tendência petista Articulação de Esquerda contra a “política militar” do então governador Rui Costa, hoje ministro da Casa Civil.
Vale dizer que a desmilitarização é uma das diretrizes aprovadas em 2009 na 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública, realizada em Brasília, entre 27 e 30 de agosto de 2009. No Relatório Final da Conferência, publicado pelo ministério da Justiça, consta o seguinte: “Desmilitarização das polícias – Realizar a transição da segurança pública para atividade eminentemente civil; desmilitarizar as polícias; desvincular a polícia e corpos de bombeiros das forças armadas; rever regulamentos e procedimentos disciplinares; garantir livre associação sindical, direito de greve e filiação político-partidária; criar código de ética único, respeitando a hierarquia, a disciplina e os direitos humanos; submeter irregularidades dos profissionais militares à justiça comum.”
Enfrentar a questão militar deve estar entre as prioridades do programa do PT e exortamos o governo do companheiro Lula a tomar medidas concretas a respeito.
Fatos recentes da história do Brasil – como o golpe contra a Dilma, a prisão de Lula, a eleição do cavernícola, a tentativa de golpe do 8 de janeiro – têm relação direta com a tutela militar.
A respeito disto, há inúmeras resoluções, aprovadas pelo nosso Partido, desde 1980 até 2017, no 6º Congresso Nacional do PT (lembrando que as resoluções do 7º Congresso até hoje não foram publicadas!). Mas o que o nosso atual Diretório Nacional, eleito em 2019, no 7º Congresso, deliberou a respeito da questão?
Quando debatemos o programa de reconstrução e transformação, a maioria dos integrantes do Diretório recusou as propostas de resolução apresentadas a respeito da tutela militar; naquela ocasião, a maioria do Diretório escolheu remeter o tema para debate em uma comissão de especialistas, que nunca se reuniu, ao menos que seja do conhecimento oficial do Partido.
Quando debatemos o programa da Federação, a maioria dos integrantes do atual Diretório Nacional do PT recusou as propostas de resolução apresentadas a respeito. Quando debatemos o programa da coligação presidencial, a maioria dos integrantes do atual Diretório Nacional do PT recusou as propostas de resolução apresentadas a respeito. Na transição de governo, não foi constituído um grupo para tratar do tema. Aí veio o 8 de janeiro de 2023. E apesar disto, seis meses depois, no dia 10 de julho de 2023, 47 integrantes do Diretório Nacional do PT decidiram votar contra um texto que afirmava o seguinte: “Não se poderá falar em democracia plena no Brasil, enquanto persistir a tutela militar. O Diretório Nacional do PT decide convocar uma conferência nacional para debater a política de Defesa Nacional e o papel das forças armadas”.
Ou seja: o mesmo Diretório que exige “punição severa aos golpistas que no dia 08 de janeiro intentaram contra o Estado Democrático de Direito”, inclusive punição a seus “estimuladores militares”; este mesmo Diretório prefere não falar de “tutela militar”. E, ao mesmo tempo, decide não convocar uma conferência para debater o papel das forças armadas. Os argumentos de ocasião utilizados pelos poucos membros do atual Diretório Nacional que tentaram sustentar esta recusa são impublicáveis, pois imputam a sua própria indisposição de tratar do tema, à suposta necessidade de consultar terceiras pessoas.
Diante da resistência da atual maioria da direção nacional do PT em travar o debate acerca da “questão militar”, a tendência Articulação de Esquerda fará sua parte, articulando junto à outras forças do PT e aos movimentos sociais, inclusive na perspectiva de realizar uma atividade nacional onde se possa debater o tema, com vistas a se buscar um maior acúmulo e propostas concretas, a serem posteriormente submetidas às instâncias deliberativas do nosso partido.
O golpismo de 8 de janeiro tem causas sistêmicas e seu tratamento não pode ser adiado. E o tratamento dessas causas sistêmicas inclui o debate público, aberto, democrático, acerca do papel das forças armadas. Aliás, é notável como muitos dos que fogem do tema são os mesmos que enfatizam a “defesa da democracia” como sua estrela guia estratégica. Que “democracia” teremos, se não enfrentarmos a tutela militar?
O fato de o Diretório Nacional não querer debater o assunto e não querer aprovar a emenda citada anteriormente não impede que o debate exista, muito menos faz a tutela desaparecer. Mas o fato de a emenda ser rejeitada revela que os 47, exata metade da direção nacional de nosso Partido, seguem não percebendo que o tema é inescapável e inadiável, e que precisa ser tratado publicamente.
No dia 8 de janeiro, quando muita gente foi surpreendida pelos acontecimentos, vimos o resultado deste procrastinar.
Reafirmamos: o PT deve convocar uma conferência nacional para debater Defesa Nacional e o papel das forças armadas. Precisamos de forças armadas fortes, capacitadas tecnologicamente, subordinadas ao governo eleito pelo povo e comprometidas com a defesa da soberania nacional.
Nesse espírito, consideramos extremamente positiva a emenda constitucional apresentada pelo deputado federal Carlos Zaratini, alterando o artigo 142 da Constituição.
No terreno militar, assim como em outros terrenos, o governo Lula precisa combinar uma “guerra de movimento” com uma “guerra de posição”, neste caso parecida com aquela que se precisa fazer quando se reocupa uma cidade que fora tomada por um exército invasor. É preciso ir de casa em casa, desalojando franco-atiradores, desmontando minas e armadilhas de todo tipo. E ao presidente não cabe o papel de fazer reclamações, como se diz ter feito quando o criminoso Mauro Cid compareceu fardado na CPMI do 8 de janeiro. Ao presidente cabe comandar. E demitir quem não obedece aos seus comandos.
Acrescentamos às nossas preocupações o tema das Guardas Municipais, regidas pela Lei 13.022/2014, uma lei consideravelmente progressista, devido aos princípios mínimos que orientam as atuações dessas instituições de segurança pública municipais, previstos no artigo 3º, tornando-as teoricamente (mas ainda não na prática) polícias de “novo tipo”, humanizadas, comprometidas com a “proteção dos direitos humanos fundamentais, do exercício da cidadania e das liberdades públicas”; com a “preservação da vida, redução do sofrimento e diminuição das perdas” e compromissadas “com a evolução social da comunidade”. Entretanto, são muitas vezes empregadas conforme o arbítrio dos gestores municipais, violando tais princípios, assemelhando-se às polícias militares e reproduzindo o modus operandi dessas forças militares. Assim sendo, defendemos entre outras medidas a formação de um núcleo de fiscalização para o cumprimento e desenvolvimento de tais princípios nas Guardas Municipais, introduzindo uma alteração no parágrafo 8º do artigo 144 da Constituição Federal, com a inclusão da obrigação do governo federal de exercer essa fiscalização.
Acrescentamos, também, a necessidade de prosseguir com as medidas que vem sendo adotadas, no sentido de reduzir o acesso às armas e de enfrentar a extrema-direita abrigada nos CACs.
Contra o “semipresidencialismo/semiparlamentarismo” e contra o loteamento do orçamento público, mobilização popular, orçamento participativo e reforma política
Em 2022, a bancada do PT no Congresso Nacional, com o aval indireto do governo eleito, declarou apoio à reeleição do presidente da Câmara dos Deputados e do presidente do Senado federal. Isto apesar de ambos terem contribuído para dar sustentação legislativa à administração da extrema-direita, além de terem introduzido métodos duramente criticados pelo PT, como o popularmente designado “orçamento secreto”.
Apesar da disposição pacífica do PT, prevalece desde então – especialmente no caso da presidência da Câmara dos Deputados – a tentativa de impor uma espécie de “semiparlamentarismo/semipresidencialismo”.
Combatemos e seguiremos combatendo esta tentativa, sem respaldo constitucional e sem respaldo popular. A atitude especialmente de Arhur Lira confirma o erro cometido pelo PT, ao votar na sua reeleição, sem nem ao menos negociar previamente os termos desse apoio, numa atitude que, como já dissemos, pode ser resumida assim: “toma lá, sem dá cá”.
Mas ao invés de reconhecer o erro cometido em 2022, desde julho de 2023 se está negociando a entrada no governo de ministros indicados pelos partidos que integram o Centrão coordenado por Arthur Lira.
Ceder à chantagem só levará a novas chantagens. Ao contrário desta atitude, deveríamos tomar medidas para derrotar a hegemonia da direita e da extrema-direita no Congresso Nacional.
Registre-se que a bancada liderada por Lira tem como um de seus objetivos aprovar a chamada reforma administrativa. Dentro do governo, há setores que defendem tal reforma, mesmo que de forma mitigada. Neste sentido, a inclusão de novos ministros de direita no governo pode ter como um de seus efeitos colaterais ampliar a pressão no sentido de comprometer o governo (e o PT) com uma contrarreforma neoliberal.
No médio prazo, derrotar a hegemonia da direita exigirá ampliar a votação da esquerda nas próximas eleições proporcionais, mas também exigirá mudanças legislativas constitucionais, sendo este um dos motivos pelos quais reafirmamos a necessidade de fazer uma Assembleia Nacional Constituinte que promova uma reforma política.
Vale dizer que a convocação de uma Constituinte é uma resolução aprovada pelo 6º Congresso do PT e até hoje vigente, embora esquecida pelos que atualmente dirigem o Partido. Uma Constituinte é necessária, também, para democratizar o sistema judiciário.
Evidentemente, para que seja possível convocar uma Assembleia Nacional Constituinte, faz-se necessário criar as condições para tal, o que inclui compreender os riscos envolvidos, como bem demonstra a experiência chilena, em que o desfecho do processo constituinte foi até agora totalmente distinto dos casos boliviano, equatoriano e venezuelano.
Uma Constituinte é necessária, também, para democratizar o sistema de justiça, composto pelo judiciário, pelos Ministérios Públicos Estaduais, pelo Ministério Público Federal, pelas Defensorias Públicas Estaduais e da União, e pelos advogados representados pela OAB.
É necessário adotar o controle externo do judiciário, não só pelo TCU e pelas corregedorias dos tribunais, mas também pela população organizada, superando a insuficiente estrutura de controle interno de caráter explicitamente corporativista; é necessário, também, adotar mecanismos de democratização do judiciário, inclusive no ingresso em suas carreiras. É necessário, ainda, diminuir os poderes excessivos conferidos aos MPs pela Constituição Federal de 1988.
Destaque-se, ainda, a necessária democratização e controle do sistema policial, persecutório, investigativo e prisional, que possui atuação baseada no racismo estrutural, voltando-se quase que exclusivamente contra as pessoas mais pobres, negras e das periferias.
A palavra de ordem da “Assembleia Constituinte” deve, portanto, ser parte de um plano geral de retomada da mobilização social de massas, em torno de uma plataforma de lutas que inclua a revogação de todas as contrarreformas de Temer/Bolsonaro e a retomada do papel das empresas e bancos públicos, bem como da necessária política de reindustrialização do país, com destaque para a desprivatização da Eletrobras e Petrobras, atualizando o programa democrático-popular para as condições atuais da luta de classes no Brasil e no mundo.
No curto prazo, impõe-se ampliar a denúncia contra as manobras do atual presidente da Câmara, apoiar as investigações em curso contra os malfeitos de que ele é acusado e, principalmente, criar um ambiente de mobilização social e um verdadeiro mecanismo de participação popular na definição do orçamento, que resgate os aspectos positivos do Orçamento Participativo, como contraponto ao fisiologismo institucionalizado das emendas secretas, fisiologismo ao qual se adapta crescentemente uma parte das bancadas de esquerda.
Consideramos necessário fazer um balanço do PPA participativo, na perspectiva de construir um Orçamento Participativo. Devemos buscar a elevação permanente de participação popular na gestão da sociedade brasileira como um todo, intensificar e acelerar o caminho para uma democracia cada vez mais participativa, praticar efetivamente o previsto no complemento do parágrafo único do artigo primeiro da Constituição de 1988, usar das possibilidades abertas pelos meios de comunicação eletrônica, reforçando a importância da participação enquanto instrumento pedagógico e de potencial transformador para a classe trabalhadora.
Iniciar um novo ciclo de desenvolvimento
Comemoramos o fato de 88% das negociações (setor privado) da data base de maio de 2023, terem obtido vitórias acima da inflação. Assim como comemoramos todas as medidas de recomposição de políticas públicas adotadas em nossos governos e desmontadas pelo golpismo e pelo cavernícola. Mas para mudar os rumos do Brasil, não basta aumentar os salários e ampliar as políticas sociais. A ampliação do consumo popular é importante, mas ela não é suficiente para dar os saltos produtivos que o país necessita, se quisermos deixar de ser uma subpotência primário-exportadora. E sem deixarmos de ser uma potência primário-exportadora, haverá limites intransponíveis para melhorar a vida do povo.
A nossa vitória contra a extrema direita e contra o neoliberalismo dependem não apenas de melhorar conjunturalmente a vida do povo, mas também de mudanças estruturais, o que exige construirmos uma nova perspectiva de futuro para o Brasil.
Entre estas mudanças estruturais, destacamos a reforma agrária e a política ambiental, essenciais para oferecer alternativas concretas à hegemonia do bloco primário-exportador, composto pelo agronegócio e pela mineração. Outras medidas essenciais, evidentemente, são as que constroem nossa industrialização e desenvolvimento tecnológico.
Neste sentido, é fundamental que o anúncio do Novo PAC mude o rumo do debate acerca da política econômica. O problema central do Brasil não é “controlar gastos”, mas sim ampliar os investimentos, especialmente os investimentos do Estado, no sentido de induzir um tipo de desenvolvimento que combata a desigualdade e mude o lugar do Brasil no mundo. Neste sentido, os investimentos devem ficar de fora do “teto de gastos” estabelecido pelo chamado novo marco fiscal.
As políticas dos governos golpistas e de extrema-direita foram no sentido oposto ao que defendemos, ou seja, foram no sentido de beneficiar a primário exportação e a ditadura do capital financeiro.
Um dos instrumentos disto foi o chamado “teto de gastos”, aprovado em 2017, que buscava limitar por vinte anos a expansão do gasto público à variação inflacionária, excetuando os gastos financeiros, cuja evolução seguiu descontrolada. O resultado foi um crescimento gigantesco da dívida pública, a desestruturação das políticas sociais e a estagnação da economia nacional. E, nos marcos das definições orçamentárias, um conflito entre as chamadas políticas sociais e os investimentos diretamente produtivos, uma vez que nos marcos do teto de gastos, o crescimento de umas só poderia ser feito às expensas de outras; e, sempre, sem tocar nos ganhos do setor financeiro.
O preço deste tipo de política, quem pagou foi a maioria do povo, assim como foi o povo que pagou os custos da mal denominada “lei de responsabilidade fiscal”, que nunca impediu o crescimento da dívida pública, que beneficiava o setor financeiro.
O PT sempre se opôs ao “teto de gastos” e congêneres. O presidente Lula, na campanha de 2022, informou que iria trabalhar por sua revogação. E de fato, enquanto o teto de gastos impedia a expansão real do gasto público, o chamado Novo Arcabouço Fiscal (NAF, ainda em debate no Congresso nacional) permite que isso ocorra. Mas o NAF permite a expansão do gasto público apenas sob determinadas condições. Em um cenário em que não se conseguir aumentar a arrecadação – pela via decorrente do crescimento da economia e/ou pela via decorrente do aumento das alíquotas de impostos, em um cenário em que não se conseguir avanços significativos no combate às desonerações e à sonegação, o crescimento dependerá fundamentalmente do investimento privado e/ou estrangeiro. Mais do que isso: ao estabelecer um crescimento das “despesas” sempre menor do que as receitas, o NAF aponta para um futuro em que o Estado será mais mínimo do que é hoje.
Diante do marco fiscal proposto pelo Ministério da Fazenda, defendemos em tempo hábil diversas alterações, entre as quais estabelecer metas de crescimento e geração de empregos, como parâmetros para a política fiscal; estabelecer metas fiscais expansionistas, portanto opostas à política monetária do BC, para evitar o risco de uma dupla pressão contracionista; estabelecer metas de evolução do superávit subordinadas às necessidades de investimento, em nenhum caso aceitando déficit zero ou superávit, enquanto a economia brasileira não crescer de forma sustentada; diluir ao longo de vários anos as “punições” previstas para o caso de não cumprimento das metas; incluir propostas tributárias que, além de rever desonerações e combater a sonegação, aumentassem os impostos sobre os ricos; alterar os números de variação da receita e crescimento dos “gastos”, no sentido de eliminar qualquer restrição ao papel do setor público na economia brasileira. Reiteramos: o peso do setor público frente ao PIB deve crescer e não diminuir, ao contrário do previsto na proposta da Fazenda e na proposta de Cajado.
Defendemos, ainda, retirar a educação, a saúde, a previdência, o salário-mínimo e os investimentos da conta dos “gastos”, para evitar cortes nos demais gastos públicos; e fortalecer os bancos públicos.
Além disso, apoiamos as propostas que visavam retirar do cálculo de gastos primários eventuais operações de capitalização das empresas estatais. Alertamos que o marco fiscal proposto pelo Ministério da Fazenda, se fosse aprovado como proposto, iria gerar pressões contra o piso constitucional da saúde e da educação. E opinamos que o marco fiscal proposto pelo Ministério da Fazenda era contraditório com as posições históricas do Partido e, principalmente, contraditório com o tipo de política que o Brasil necessita para sair das atuais condições de economia primário-exportadora, capturada pelo setor financeiro, uma sociedade de imensa desigualdade.
Consideramos que a propaganda positiva que o Ministro da Fazenda e parte de sua equipe fazem a respeito do novo marco fiscal é, em parte, puro “pensamento positivo”; e, em parte, expressão de sua submissão à lógica fiscalista e “curtoprazista” que predomina na elite brasileira, inclusive em setores com coração de esquerda.
Argumentou-se, dentro do governo e do Partido, que o marco fiscal proposto pelo Ministério da Fazenda seria “o máximo de avanço possível, dada a correlação de forças”.
De fato, a correlação de forças é sempre um problema. Mas por isso mesmo a questão não está principalmente em constatar qual é a correlação de forças; a questão fundamental está sempre em decidir o que fazer para alterar a correlação de forças. Se nos limitarmos a constatar qual é a correlação de forças, é óbvio que o passo seguinte será dobrar-se a ela e, com isso, retroceder ainda mais. E foi exatamente isso que ocorreu no debate do marco fiscal no Congresso Nacional.
Submetido ao debate na Câmara dos Deputados, o NAF original foi alterado para pior, com a introdução de contingenciamento obrigatório, criminalização, eliminação de exceções, proibição de concursos e reajustes etc.
Mesmo a direção do Partido não tendo sido consultada previamente, prevaleceu na bancada da Câmara uma postura recuada, de não apresentar emendas. Isto contribuiu para que a direita do Congresso nacional, através do relator Cajado, pudesse agir sem nenhum contraponto, apresentando um relatório que piorou muito os problemas já existentes na proposta apresentada originalmente pela Fazenda.
O relatório Cajado foi aprovado pela Câmara, inclusive com o voto da bancada do PT. Posteriormente, no Senado, a proposta aprovada pela Câmara sofreu duas alterações importantes, no sentido de preservar o Fundeb e os investimentos em ciência e tecnologia. Agora o tema está novamente em debate na Câmara. Se for mantida a proposta do relator Cajado (PP Bahia), passaremos a ter dois problemas: uma política monetária contrária ao crescimento e uma política fiscal que não contribui para o desenvolvimento.
Por que então setores do governo e do Partido apresentam o marco fiscal como uma vitória?
Em alguns casos, por achar que tudo que vem do governo é bom. Noutros casos, por entender que o marco fiscal aprovado é melhor do que o teto de gastos, o que era verdade parcial no caso do proposto originalmente pela Fazenda e quase deixou de ser no caso do aprovado pela Câmara. Há, também, os que pensam que, com a aprovação do NAF, será possível alterar pacificamente a política do Banco Central [nota adicionada pela Dnae: logo depois do Congresso da AE, reuniu-se o Copom e reduziu a taxa de juros em incríveis 0,50 pontos percentuais, ou seja, seguimos com uma das maiores taxas de juros do mundo, mostrando que este método de “alteração pacífica” provoca, na melhor das hipóteses, efeitos minimalistas]. E há, ainda, os que sinceramente acreditam que, com o NAF, teremos um cenário de retomada dos investimentos privados, grandes investimentos estrangeiros, êxitos no combate à sonegação e redução nas isenções.
De fato, se este cenário de grandes investimentos se confirmasse, parte das restrições da política monetária do BC e parte das restrições da política fiscal terão sido superadas. Também neste cenário, mesmo que o crescimento dos “gastos” seja sempre menor do que as receitas, mesmo que o marco fiscal projete um futuro em que o peso do setor público no PIB seja menor do que é hoje, mesmo assim seria possível alguma ampliação significativa dos investimentos públicos e do bem-estar social.
A pergunta é: este cenário otimista é realista? E, mesmo que ele venha a se materializar, seria na intensidade e no tempo político adequados, ou seja, de forma a afetar positivamente nosso desempenho nas eleições de 2024 e 2026? E, finalmente, mas não menos importante, as mudanças contidas neste cenário otimista seriam suficientes para o país sair da condição primário-exportadora?
Em nossa opinião, sem mudança na política de juros, sem forte investimento público e sem alteração na política tributária, o investimento privado não crescerá, ao menos não crescerá na quantidade e na qualidade necessárias. Motivo, aliás, pelo qual defendemos uma modificação radical na política de lucros/dividendos da área da energia, Petrobrás principalmente. Defendemos também, pelos motivos já explicados, alterar a lei que concedeu “autonomia” ao Banco Central assim como alterar as orientações do Conselho Monetário Nacional sobre as metas de inflação.
Por outro lado, o cenário internacional é excessivamente turbulento, não sendo prudente confiar em investimentos estrangeiros cujo volume e natureza sejam de monta a permitir saltos de qualidade na economia de um país imenso como o Brasil. Além disso, mesmo que haja crescimento nos investimentos, privados e estrangeiros, nas condições atuais ele seria em grande parte capturado pelo sistema financeiro. Sem falar que fazer depender nosso desenvolvimento de capitais estrangeiros é um equívoco em si mesmo, como já foi fartamente demonstrado pela história republicana brasileira.
O mais importante, contudo, é que só teremos êxito na distribuição de renda, no combate à sonegação e na redução das isenções, no volume e na velocidade necessárias, se houver uma imensa mobilização política dos setores populares contra os muito ricos. Paradoxalmente, abrimos mão – na elaboração do marco fiscal e no debate da reforma tributária – do recurso à mobilização e optamos por fazer concessões à Faria Lima, que retribuiu ampliando momentaneamente a popularidade (entre os gestores financeiros) do ministro da Fazenda.
Conclusão: o cenário otimista não é o mais provável. Sem mobilização popular e intensa luta política e ideológica, o mais realista é um cenário sem grandes investimentos estrangeiros, sem grandes investimentos privados nacionais, sem avanços significativos no combate às desonerações, sem avanços significativos no combate à sonegação. E neste cenário realista o novo marco fiscal imporá imensas restrições à ação do Estado e aos investimentos públicos; aliás, já se pratica o contingenciamento orçamentário e já se discute abertamente o fim dos mínimos constitucionais.
Diante desta situação, estamos convocados a travar uma imensa batalha em favor de uma reforma tributária progressiva, que faça os ricos pagarem a conta. O que exigirá superar, entre outros obstáculos, a postura atual do Ministério da Fazenda, que assumiu indevidamente os compromissos de não aumentar e de não criar impostos sobre os ricos. Defendemos uma reforma tributária progressiva, a tributação do setor agroexportador, a revogação da Lei Kandir e uma alteração no Imposto de Renda, retirando dos ombros da classe trabalhadora assalariada o principal ônus tributário.
Sem novos impostos sobre os ricos, as receitas não vão crescer significativamente. Acontece que, nos próximos anos, certas despesas vão aumentar, aconteça o que acontecer. E como – segundo o marco fiscal – o conjunto das despesas não pode crescer mais do que 70% do crescimento das receitas… a conclusão inevitável é que haverá uma disputa para saber quais despesas serão mantidas e quais serão cortadas.
Pelos motivos acima, cresce a pressão para revogar os atuais pisos constitucionais da saúde e da educação, conforme aliás já anunciado pelo Relatório de Projeções Fiscais, publicação da Secretaria do Tesouro Nacional (STN), que defende mudanças nos “principais despesas vinculadas a receitas”, citando as emendas parlamentares obrigatórios, o fundo constitucional do Distrito Federal, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) e – em primeiro lugar – os Gastos Mínimos Constitucionais com Saúde e Educação.
A atitude da Secretaria do Tesouro Nacional é “coerente”: afinal, como já dissemos, uma das premissas do “novo marco fiscal” é que os gastos só crescerão até 70% do crescimento das receitas. Para um governo que não quer ampliar investimentos, isto não é problema. Mas para um governo que não só deseja, mas também está ampliando investimentos, há um conflito óbvio, que só se resolve: i/fazendo crescer muito as receitas (o que exigiria, por exemplo, uma reforma tributária de verdade, algo totalmente diferente da reforma aprovada recentemente, em primeira instância, pela Câmara dos Deputados) e/ou 2/contendo algumas “despesas”, para abrir espaço para alguns investimentos. Daí vem a tentação de fazer algo que a direita neoliberal sempre defendeu: desconstitucionalizar, de fato ou de direito, os investimentos em saúde e educação.
Ou seja, um dos efeitos colaterais do marco fiscal ainda em debate na Câmara dos Deputados será jogar pobres contra pobres, disputando um cobertor curto.
Por estes e por outros motivos, parabenizamos os parlamentares federais (mais de 22) que, apesar de respeitarem a disciplina partidária, fizeram uma declaração de voto demarcando com as diretrizes do marco fiscal.
Qualquer que seja o formato final do NAF, seguiremos necessitando de medidas extraordinárias que nos permitam sair das atuais condições de desigualdade social e primário-exportação. Precisamos de muitos investimentos, investimentos principalmente estatais, e feitos com velocidade, durante várias décadas. Sem isso, nosso país não escapará da atual situação, de subpotência primário exportadora.
Para financiar nossa política de desenvolvimento, é preciso – entre outras medidas – realizar uma reforma tributária progressiva, de grande impacto. Esta batalha deve ser articulada com o Novo PAC: os ricos devem pagar a conta, para o Brasil se desenvolver combatendo a desigualdade.
Nessa perspectiva, de politizar o debate sobre o desenvolvimento, defendemos a convocatória imediata de uma Conferência nacional pelo desenvolvimento. Sem mobilização popular, a chamada neoindustrialização será apenas um slogan publicitário, restrito a uma bolha ou mesmo capturado pelos defensores da primário-exportação. Aliás, é bom lembrar que parte expressiva dos índices positivos de crescimento recém-verificados são resultado do agro, que usa isso como argumento para seguir capturando imensos recursos públicos, o que por outro lado demonstra que a “livre iniciativa” no Brasil segue sustentada, em grande medida, pelos recursos do Estado. Além disso, grande parte da bem vinda redução do desemprego, verificada nos últimos meses, se fez com base em empregos de baixa remuneração, sem formalização.
Ainda na perspectiva de uma política de desenvolvimento que mereça o nome, destacamos a necessidade de a Petrobrás adotar medidas que rompam totalmente com a política adotada no governo anterior e a façam jogar papel central, junto com a Eletrobrás, no processo de retomada do crescimento, do desenvolvimento e da chamada neoindustrialização.
A mudança da política de preços – cuja redução poderia ter sido muito maior – é um importante passo neste sentido, mas muito mais precisa ser feito. Defendemos a criação de uma empresa pública de energia, como base imprescindível para um projeto de desenvolvimento coerente com nossos objetivos de liberdade, bem-estar, soberania e integração. Uma empresa de energia que tenha como objetivo central o abastecimento do mercado interno aos menores custos, proporcionar competitividade para a economia brasileira, coordenar todo o setor energético brasileiro – fóssil e renováveis, abundantes em nosso território nacional – para enfrentarmos a transição energética com a garantia de assegurar benefício social, econômico e ambiental para a imensa maioria de nossa população.
Destacamos, por fim, que não haverá “neoindustrialização”, nem tampouco política ambiental com transição ecológica, se não houver mudanças radicais no agronegócio e na mineração. Estes dois setores não têm “conflitos ideológicos” apenas com o PT e com o governo Lula; têm conflitos com o futuro da maioria do povo brasileiro. No futuro que eles defendem, não haverá mudança no lugar do Brasil no mundo, nem tampouco mudança na desigualdade social existente em nosso país.
É importante que – ao mesmo tempo que adota medidas de grande escala em favor da industrialização – o governo Lula implemente políticas de inclusão social, através do fortalecimento da economia solidária. Políticas públicas deste tipo, de geração de emprego e renda, são fundamentais para estimular a auto-organização em associações e cooperativas. É crucial que o governo institua políticas púbicas que financiem o processo produtivo da economia solidária e promovam ações de compras destes produtos.
Transformar a qualidade de vida do povo
A luta contra o neofascismo é inseparável da luta contra o neoliberalismo. As políticas neoliberais submetem o povo a um massacre cotidiano e contribuem para que parcelas da nossa população sejam capturadas pela extrema direita e pelo individualismo extremo. Por isso, tampouco basta ampliar os empregos e os salários. É indispensável recuperar e ampliar os direitos trabalhistas e sociais. E é preciso mudar as condições de vida como um todo, o que exige, além de trabalho e emprego, renda e salários, fortes políticas públicas de cultura, comunicação, saúde e educação, entre outras.
As periferias do país são um dos principais espaços desta luta por transformar a qualidade de vida do povo. Nestas periferias moram aqueles setores que mais contribuíram para a vitória eleitoral de 2022. Por outro lado e não por acaso, é também nesses territórios que cresce a presença da extrema-direita.
Tem crescido nas periferias: a atuação da direita e extrema-direita, através de políticos neoliberais e assistencialistas; de uma enorme quantidade de igrejas conservadoras, especialmente neopentecostais, que mantém uma política de assistencialismo e difundem ideias reacionárias e preconceituosas; a atuação das milícias e facções criminosas, que funcionam como um Estado paralelo, mantendo através da opressão e medo o controle social e eleitoral dos territórios periféricos.
As periferias estão em disputa. Também por este motivo, é fundamental que o PT e as organizações populares disputem e contribuam para organizar as populações periféricas, que convivem constantemente com o racismo estrutural, com a violência policial, de gênero e religiosa, com a precarização ou total ausência dos serviços públicos, com as maiores taxas de desemprego e subemprego, com a insegurança alimentar e nutricional entre outras.
Neste trabalho, cumprem papel decisivo as políticas de comunicação, de cultura, de educação e de saúde, objeto de resoluções específicas do 8º Congresso da AE.
É necessário retomar a pauta do financiamento, que de acordo com a Meta 20 do Plano Nacional de Educação deveria chegar até 10% do PIB, objetivo que sofreu um profundo retrocesso com a Emenda Constitucional que instituiu o chamado “teto dos gastos”. É preciso enfrentar, também, os retrocessos ocorridos, desde 2016, na Educação Básica e no Ensino Médio. Nos somamos a luta dos trabalhadores da educação e dos estudantes que pedem a revogação do chamado novo ensino médio e combatem as concepções privatistas na área da educação, inclusive as que se manifestaram na transição e no ministério da Educação.
Apoiamos as resoluções aprovadas pela 17ª Conferência Nacional de Saúde e um SUS 100% público, integral, equânime e democrático. Apoiamos, também, a luta para recuperar o orçamento do SUS, a defesa do piso da enfermagem, a luta contra a avassaladora privatização da gestão dos serviços e das ações assistenciais, o enfrentamento à desregulamentação dos planos e seguros privados, as ameaças ao cuidado em liberdade e antimanicomial.
Ainda no tocante à saúde, lembramos que em janeiro de 2023 foi anunciado a criação de um departamento no Ministério do Desenvolvimento Social, com a seguinte nomenclatura: “departamento de entidades de apoio e acolhimento atuantes em álcool e outras drogas”. Essa ação favorece o setor privatista da saúde, a ala conservadora das igrejas e seus partidos, o tratamento para usuários em abuso/dependência em substâncias psicoativas fora dos preceitos de direitos humanos.
As chamadas comunidades terapêuticas não se enquadram na Resolução de Tipificação dos Serviços Socioassistenciais aprovadas no Conselho Nacional de Assistência Social (n. 13/2014) e há contra as Comunidades Terapêuticas diversas denúncias de irregularidades em todo o Brasil, apontadas no Relatório da inspeção nacional em CTs, elaborado pelo Conselho Federal de Psicologia, pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e pelo Ministério Público Federal (2018).
Nesse sentido, defendemos que o governo Lula revogue o decreto federal que cria tal departamento, como recomendou o Conselho Nacional de Saúde, e simultaneamente desenvolva ações, sob a coordenação do Ministério da Saúde, voltadas ao controle e vigilância, de modo a gradativamente extinguir tais instituições, suspendendo a transferência de verbas públicas e definindo-as como asilos religiosos ou assemelhados, agenciando seu fechamento com a retomada e fortalecimento dos serviços substitutivos na RAPS.
Orientações para as eleições 2024
As eleições municipais de 2024 serão mais uma etapa de nossa guerra contra o neofascismo e o neoliberalismo. Não se tratará de uma batalha exclusivamente contra o bolsonarismo. Também por isso, defendemos que no primeiro turno das eleições o Partido deixe de lado a chamada “tática da frente ampla” e adote uma tática de frente de esquerda.
Uma tática de esquerda nas eleições 2024 implica em apresentar candidaturas petistas e de aliados de esquerda, em todas as cidades onde existimos. Em alguns casos, estas candidaturas servirão para reconstruir o Partido e a esquerda em âmbito local. Em outros casos, serão candidaturas competitivas, que devem buscar reunir em torno de si um leque mais amplo de forças, inclusive para além da esquerda.
A adoção desta tática de esquerda enfrentará, para sua aplicação, um conjunto de dificuldades:
i/a primeira delas é a inexistência ou virtual desaparição dos diretórios municipais do Partido, como instância organizada, em grande número de cidades do país;
ii/a segunda deles é a pressão por submeter o partido a denominada “geopolítica de alianças”, que na prática tem servido para sacrificar a existência do Partido em grande número de cidades, tratadas como moeda de troca em favor da política de alianças de governos estaduais ou federal ou até mesmo em favor do interesse de parlamentares estaduais e federais;
iii/a terceira dificuldade é a existência da Federação, com regras que tiram do PT sua autonomia local e mesmo nacional. Vale lembrar que o Partido Verde, integrante da federação contra o nosso voto, é em muitos locais um partido controlado por forças de direita;
iv/a quarta dificuldade virá da não realização do PED nos municípios, o que não contribui para fortalecer e legitimar as direções locais.
Qualquer que seja a tática que o PT adote para disputar as eleições 2024, devemos trabalhar para lançar candidaturas da esquerda petista em todas as cidades.
Nossas candidaturas devem aproveitar o processo eleitoral para defender o governo Lula, nossos governos estaduais e municipais petistas, a atuação de nossas bancadas e de nosso Partido, bem como devemos defender a atuação dos partidos de esquerda, dos sindicatos e movimentos sociais.
Nossas candidaturas devem se somar ao esforço para que nossos governos cumpram o programa e implementem políticas em defesa dos interesses e necessidades do povo, inclusive em temas como o pagamento dos pisos.
No caso específico do governo Lula, nossas candidaturas devem colocar em debate a necessidade de uma política econômica de industrialização de novo tipo, alicerçada na ampliação dos investimentos públicos, a serem viabilizados através de uma reforma tributária que penalize os ricos, ao mesmo tempo que isente os pobres e reduza a carga tributária sobre os chamados setores médios.
Nossas candidaturas devem contribuir para a retomada da mobilização social, dando especial atenção neste momento para temas como a revogação da chamada reforma do ensino médio, a luta pelo cumprimento do piso (enfermagem e educação) e, também, como já foi dito, para a construção de uma campanha de massas em favor de que os ricos paguem impostos.
Nossas candidaturas devem travar o debate público em defesa dos direitos de todos os setores explorados e oprimidos.
Nossas candidaturas devem contribuir para que a militância se mantenha motivada e mobilizada. Isso foi decisivo para a vitória de 2022 e será igualmente decisivo para as vitórias em 2024 e 2026.
Nossas candidaturas devem defender o programa de reconstrução e transformação do Brasil, bem como formular e apresentar propostas para as cidades e para os respectivos mandatos.
Nossas candidaturas devem contribuir para acumular forças e para conquistar espaços institucionais.
A direção nacional da AE contribuirá com este esforço prosseguindo no balanço detalhado das eleições 2022, apresentando análises e orientações para sobre o cenário de 2023 e 2024, ajudando no planejamento das campanhas, buscando junto ao partido recursos para as campanhas, contribuindo na comunicação e na direção geral da campanha.
No caso das cidades hoje governadas por militantes da AE, bem como no caso das cidades onde temos maiores chances nas eleições majoritárias, a direção nacional da tendência buscará realizar um acompanhamento permanente.
Também buscaremos fazer um acompanhamento permanente nas campanhas de reeleição de nossos atuais parlamentares.
Ao longo dos últimos meses de 2023 e do primeiro semestre de 2023, a Dnae convocará, sempre que possível uma vez por mês, reuniões virtuais nacionais para preparar nossa intervenção nas eleições 2024.
Especificamente sobre a Federação, reafirmamos todas as críticas que fizemos quando o tema esteve em debate na Direção Nacional do PT. Para fazer o Partido adotar a Federação, se fez um debate a toque de caixa, no qual se disse que a Federação teria um significado estratégico e poderia resultar em um grande desempenho nas eleições proporcionais. Hoje, grande número de militantes e dirigentes já constatou que a Federação não afetou positivamente nosso resultado eleitoral em 2022 e cria constrangimentos e pode afetar negativamente nosso resultado eleitoral em 2024. Somos favoráveis a construir uma verdadeira frente de esquerda, com partidos e movimentos; a Federação atualmente existente não é nada disso. E nunca será, pois sua lógica é determinada pela legislação eleitoral. Em nossa opinião, o PT deve deixar a Federação assim que isso for legalmente possível.
A política no comando
O PT foi fundado em 1980. Temos 43 anos. Em 1980 o povo brasileiro não elegia pelo voto direto seu presidente da República. Este direito básico só foi conquistado em 1989. Outra conquista em 1989 foi a ampliação do número de pessoas habilitadas a votar. Desde 1989, a maior parte do povo brasileiro tem direito a votar nas eleições. Não era assim antes. Pois bem: desde 1989 até hoje aconteceram 9 eleições presidenciais. O PT venceu cinco e ficou em segundo lugar nas outras quatro eleições presidenciais.
Isso dá uma ideia da importância do PT na política brasileira e do apoio eleitoral que temos no povo.
Entretanto, toda essa nossa força eleitoral não foi capaz de impedir o golpe de 2016. E em 2022, nós ganhamos a eleição presidencial, com 60 milhões de votos, mas nosso inimigo teve 58 milhões de votos. Além disso, as forças de direita ganharam grande número de eleições estaduais e são majoritárias no Congresso nacional.
Portanto, temos pela frente imensos desafios, se quisermos atingir nossos grandes objetivos: ampliar o bem-estar social do povo, ampliar as liberdades democráticas, impulsionar o desenvolvimento de novo tipo, garantir a soberania nacional, participar da integração regional, contribuir para a construção de uma nova ordem mundial, tudo isto tendo como objetivo histórico e estratégico o socialismo.
Para dar conta desses objetivos de médio e longo prazo, precisamos neste momento concentrar nossas energias em: 1/derrotar a extrema-direita; 2/superar a influência do neoliberalismo; 3/disseminar, no povo brasileiro, uma cultura democrática e popular; 4/ampliar a força das esquerdas nas instituições de Estado, a começar pelas prefeituras que estaremos disputando em 2024 e pela reeleição de nosso projeto em 2026; 5/estimular a auto-organização da classe trabalhadora, em seus movimentos, sindicatos e partidos, a começar pelo próprio PT.
Estas cinco tarefas estão intimamente ligadas ao sucesso do governo Lula, sucesso que não se limita a “união e reconstrução”, mas que precisa se ampliar no sentido da reconstrução e transformação. Se o governo Lula tiver sucesso neste trabalho de reconstrução e transformação, teremos sucesso naquelas cinco tarefas. E para o governo Lula ter sucesso no trabalho de reconstrução e transformação, precisamos que o Partido e a esquerda partidária e social tenham êxito naquelas cinco tarefas.
Por isso, se faz necessário dar um salto de qualidade no funcionamento do nosso Partido, bem como do conjunto do campo democrático e popular. O que inclui, no curto prazo, um enfrentamento coletivo da CPI do MST, a preparação adequada das eleições 2024. E, no curto e médio prazo, maior sincronia entre ação do governo, dos partidos de esquerda e dos movimentos sociais, o que exige a construção de uma frente de esquerda.
Lula é hoje chefe de Estado, chefe de governo, líder da ala esquerda do governo e nosso principal comunicador social. É uma sobrecarga brutal sobre os ombros de uma única pessoa. Cabe ao Partido, como instituição coletiva, assumir mais tarefas na defesa e na disputa de rumos do governo, na luta contra a direita neoliberal e neofascista. E cabe tanto à esquerda partidária quanto à esquerda social – lideradas pelo PT – não apenas vencer nas urnas em 2024 e 2026, mas também ocupar de maneira permanente as redes e as ruas. Só a ampliação da luta social garantirá a reconstrução e a transformação do Brasil. Dito de outra forma: sem uma grande ampliação da luta social, da mobilização de massas, da conscientização e da organização das massas trabalhadoras, não teremos êxito em alterar a conjuntura em nosso favor. E, mais cedo ou mais tarde, seremos novamente derrotados. É um mal sinal, nesse sentido, que desde a campanha eleitoral não tenhamos mais conseguido – as vezes, nem tentado – realizar grandes mobilizações. É particularmente escandaloso que, frente ao ocorrido no dia 8 de janeiro, o campo democrático e popular não tenha reagido à altura, deixando tudo nas mãos das chamadas instituições.
Atuando sob condições mais difíceis
O ocorrido no dia 8 de janeiro, o ocorrido com o NAF e os acontecimentos internacionais confirmam que o terceiro governo Lula atua em condições muito mais complexas e difíceis do que os governos encabeçados pelo PT entre 2003 e 2016.
Além das dificuldades resultantes da situação mundial e da herança maldita do golpismo e do bolsonarismo, temos as dificuldades ligadas à situação do governo Lula, da classe trabalhadora, da esquerda e do PT.
Fica evidente, a cada dia que passa, que enfrentamos uma dupla oposição: da direita tradicional e da direita neofascista, ambas neoliberais. Estas duas direitas estão presentes no governo e na máquina de Estado. São majoritárias no Congresso nacional, entre os governadores de Estado, nos aparatos de segurança e na grande mídia. As duas oposições, embora se dividam no que toca a “reconstrução”, unificam-se para impedir a “transformação” nacional. Ambas operam para vencer as eleições de 2024 e tirar o PT da presidência, se possível já em 2026.
Frente a este quadro, a linha política hegemônica na esquerda brasileira e em nosso Partido está demonstrando ser ineficiente e insuficiente, tanto do ponto de vista tático quanto do ponto de vista estratégico. É preciso mudar de orientação estratégica e tática. E, para fazer isto, é preciso começar abandonando totalmente a atitude baluartista, cabotina, autocongratulatória, de elogio a nós mesmos, que prevalece em certos setores; e, no lugar disto, é preciso debater abertamente os problemas existentes, debate que deve ser feito nas instâncias partidárias, com a base militante, com o povo de esquerda.
Hoje, ainda tem prevalecido a opção de não travar o debate, nem mesmo nas instâncias. Como já dissemos, antes da campanha eleitoral de 2022 começar, a maioria dos integrantes do atual Diretório Nacional escolheu não aprovar nenhuma resolução sobre como enfrentar o bolsonarismo nas forças armadas, assim como não aprovou uma resolução que propunha enfrentar – já na campanha eleitoral – a mal denominada “independência” do Banco Central. Tampouco debatemos previamente, na direção do Partido, a proposta de Novo Arcabouço Fiscal. Como resultado, o Partido tem mais dificuldade de enfrentar os problemas, uma vez que estes não desaparecem pelo fato de não terem sido debatidos.
A respeito desses e de outros temas, como por exemplo a necessidade de revogar as contrarreformas da previdência, trabalhista, sindical e do ensino médio, a mudança de rumo da Petrobrás e a recuperação da Eletrobrás, a luta por outra política de segurança pública e de Defesa, a tendência petista Articulação de Esquerda tem apresentado diversas propostas ao Diretório Nacional do PT e a outras instâncias partidárias.
Com base nelas, o Oitavo Congresso da AE reitera a necessidade de mais e melhores medidas concretas e imediatas, no sentido de retomar o crescimento, implementar uma industrialização de novo tipo, mudar o curso do desenvolvimento nacional, realizar a reforma agrária, defender o meio ambiente, ampliar as políticas públicas de saúde e educação, concretizar o bem-estar social e as liberdades democráticas do povo brasileiro, recuperar a soberania nacional, promover a integração latino-americana e caribenha, mudar o lugar do Brasil no mundo.
Uma das áreas onde tem havido mais ações concretas e disputa política-ideológica é o das políticas ambientais. Durante os governos Temer e Bolsonaro avançou o desmonte da legislação de proteção ambiental. Este desmonte contribuiu para o aumento da devastação ambiental, com queimadas, desmatamento e o uso de agrotóxicos. O governo Lula tem enfrentado o debate ambiental, retomando e ampliando a proteção dos biomas e atuando para frear, entre outros, o processo acelerado de privatização dos parques, praças e áreas verdes em todo o país.
Entretanto, não bastam propostas, se não conquistarmos apoio e maioria organizada junto a classe trabalhadora.
As eleições presidenciais de 2022 demonstraram que a esquerda é majoritária entre os eleitores ativos, por uma diferença de 2 milhões de votos. Aliás, como já foi dito, ganhamos 5 das últimas 9 eleições presidenciais. Entretanto, se considerarmos os mais de 30 milhões que votaram branco, nulo e se abstiveram; e somarmos a estes os trabalhadores que votaram na candidatura presidencial da extrema-direita, a conclusão inescapável é que, neste momento, a esquerda ainda não tem maioria numérica na classe trabalhadora.
Ademais, décadas de neoliberalismo, somadas a décadas de institucionalização e burocratização, enfraqueceram brutalmente a presença, a força e a representatividade das organizações da classe trabalhadora: movimentos, associações, sindicatos, partidos. E, de outro lado, nas últimas décadas constituiu-se uma extrema-direita com base de massas. A situação é tão grave que alguns setores da esquerda têm medo de disputar as ruas, têm medo de mobilizar a população, por receio de que percamos controle e a direita assuma protagonismo. Grande parte do balanço de junho de 2013 é marcado por este temor, que se não for superado vai selar nosso destino: será fatalmente derrotada uma esquerda que, por opção e antecipação, cede as ruas para a direita.
Portanto, uma de nossas tarefas estratégicas, de cujo sucesso dependem todas as outras tarefas, é fazer com que a esquerda conquiste e organize a maioria da classe trabalhadora.
Conquistar e organizar a maioria exige um conjunto de ações práticas, entre as quais trabalho de base, funcionamento regular das instâncias, política de comunicação. Mas exige, acima de tudo, linha política correta. Neste sentido, reafirmamos a necessidade de recuperar o “fio vermelho” das elaborações do V Encontro Nacional (1987) e do 6º Congresso Nacional do PT (2017).
Elaborar uma linha política correta tem sido, também, uma das preocupações fundamentais da tendência petista Articulação de Esquerda, desde 1993. Isso pode ser constatado na leitura das resoluções de nossos seis seminários nacionais (1993-1997), de nossas onze conferências nacionais (1998-2009) e de nossos sete congressos nacionais (2011-2020). A seguir destacamos algumas das questões presentes nessas resoluções.
Diretrizes estratégicas
A construção do socialismo supõe que a classe trabalhadora tenha poder para reorganizar a sociedade. O tema do poder, no que consiste, como construí-lo, como conquistá-lo, é a questão chave em toda reflexão política.
Durante o século XIX, os socialistas enxergavam o tema do poder através do prisma oferecido pela revolução francesa: 1789, 1848, 1871 eram os paradigmas clássicos ao redor dos quais girava o imaginário de anarquistas, sindicalistas revolucionários, socialistas, social-democratas, narodniks, comunistas etc.
As revoluções russas de 1905, fevereiro de 1917 e outubro de 1917 ofereceram um novo paradigma, ao redor do qual passou a girar, durante décadas, a reflexão política, tática e estratégica de diferentes setores da esquerda mundial.
Os paradigmas “francês” e “russo” tinham semelhanças: o protagonismo da plebe urbana, o papel contraditório das massas camponesas, a insurreição seguida de guerra civil e contra inimigos externos, o caráter “permanente” da revolução, o fantasma do “Termidor”.
O isolamento da Rússia soviética e a derrota das tentativas revolucionárias na Alemanha, na Hungria e na Itália, entre outras, resultarão – nos anos 1920 e 1930 – numa reflexão acerca da estratégia a adotar, seja nos países capitalistas desenvolvidos, seja nos países da chamada periferia colonizada ou formalmente independente.
Tal reflexão correu simultânea a outros debates, acerca da construção do socialismo na URSS, acerca de qual devia ser a política internacional de um Estado socialista, acerca da evolução do capitalismo e do imperialismo pós-Primeira Guerra Mundial, acerca de como se posicionar frente a, na época, ascensão do nazifascismo e a cada vez mais provável (segunda) guerra mundial.
Os escritos de Antonio Gramsci datam deste período, embora sua grande influência (em variadas versões e contraditórias releituras) vá se estabelecer após a Segunda Guerra, em uma situação mundial distinta daquela que serviu de base para as reflexões do comunista italiano.
De toda forma, até o final da Segunda Guerra, quando se debatia os temas do poder, predominava em grande parte da esquerda o paradigma da revolução russa: o papel de vanguarda da direção partidária, o protagonismo das plebes urbanas, o acúmulo de forças via lutas sindicais, políticas e ideológicas, o duplo poder, a insurreição como parte da guerra civil, uma certa modalidade de construção do socialismo. Tal “modelo” estava presente inclusive nos que defendiam as Frentes Populares, inclusive em sua versão mais moderada, de alianças estratégicas com setores da burguesia, nas políticas conhecidas como “etapistas”.
Um novo paradigma se afirmará com a vitória da revolução chinesa de 1949. Neste paradigma, o papel do Partido continua destacado, mas agora trata-se de um partido-exército. O protagonismo principal passa a ser das massas camponesas. As cidades, antes palco da insurreição decisiva, passam a ser “cercadas pelo campo”. O acúmulo de forças prévio inclui experiências precoces de duplo poder, com libertação de territórios, formação de governos e de um exército popular. A insurreição urbana torna-se um elemento auxiliar da guerra popular prolongada.
Aos paradigmas “russo” e “chinês” soma-se, logo em seguida, um terceiro, o da guerra de libertação nacional. Este terceiro paradigma vai se materializar sob duas formas principais. A primeira delas é antinazista, por exemplo em países como Albânia e Iugoslávia (onde a derrota dos nazistas foi seguida pela instauração de governos de orientação socialista); como a Grécia (neste caso, a guerrilha comunista foi derrotada pela intervenção britânica); como a Itália e a França (nestes dois casos, a política dos partidos comunistas foi a de nem ao menos tentar transformar a guerra em revolução).
A segunda forma pela qual vai se materializar o paradigma da guerra de libertação nacional é o da guerra anticolonial, como no caso por exemplo de Vietnã, Laos, Camboja, Angola, Moçambique e Guiné Bissau.
Vale lembrar que ainda hoje há lutas anticoloniais em curso, como no caso de Porto Rico, Sahara Ocidental e da Palestina. Por uma destas ironias da história, os Estados Unidos – resultado da revolução anticolonial vitoriosa das chamadas 13 colônias contra o Império Britânico – tornaram-se desde há muito o principal ponto de apoio para o colonialismo moderno.
Os três paradigmas citados – “russo”, “chinês” e de “libertação nacional” – influenciaram o debate político e estratégico da esquerda latino-americana, ao longo de boa parte do século XX. Há toda uma literatura a respeito, que vale a pena revisitar sempre, especialmente aquela que leva em conta o impacto da revolta de Tupac Amaru, da revolução haitiana e da grande revolução mexicana, processos que apavoraram a elite continental muito antes que acontecesse a revolução socialista russa.
A partir de 1959, surge outra grande influência paradigmática, a revolução cubana, uma revolução democrática antiditatorial, baseada na combinação entre diferentes formas de luta e organização, com ênfase na combinação entre guerrilha no campo e insurreição urbana; revolução que, uma vez vitoriosa, se revelou cada vez mais democrática popular e anti-imperialista; e que acabou convertendo-se em uma revolução socialista.
A revolução cubana – especialmente em suas interpretações de tipo “foquista” – também influenciou fortemente a esquerda latinoamericana e caribenha nos anos 1960 e 1970. Mas, com a parcial exceção da revolução nicaraguense, as estratégias inspiradas no exemplo cubano não foram vitoriosas em nenhuma parte de nosso subcontinente.
O mesmo, entretanto, deve ser dito das demais estratégias adotadas pela esquerda socialista em nosso continente. Aliás, devemos reconhecer que se as revoluções são fenômenos raros, as revoluções vitoriosas são fenômenos ainda mais raros e profundamente singulares: há mais constância nos motivos de derrota do que nas razões de vitória.
Nos anos 1970 também tivemos a experiência do governo da Unidade Popular chilena. A história da Unidade Popular, os antecedentes da vitória eleitoral de 1970, as vicissitudes do governo Allende, o golpe de 1973, a ditadura que veio em seguida (com semelhanças e diferenças frente a outras ditaduras contemporâneas), as políticas neoliberais e os governos de centro-esquerda posteriores, são processos cujo estudo é essencial para quem hoje faz ou busca fazer parte dos governos “progressistas e de esquerda” na América Latina.
Reformista demais para os revolucionários, revolucionária demais para os reformistas, a estratégia experimentada pela Unidade Popular ficou numa espécie de limbo até 1998. Desde então, diversos governos da região passaram a tentar construir o socialismo, não a partir de revoluções, mas sim a partir de vitórias eleitorais.
Ao mesmo tempo, outros partidos socialistas da região passaram a ter que lidar – em seus esquemas estratégicos – com governos que buscavam implementar reformas mais ou menos profundas no capitalismo. Portanto, pelo menos para alguns setores da esquerda regional, a experiência pós 1998 exigia revisitar o debate sobre a orientação estratégica que se buscou materializar no governo da Unidade Popular (UP). Evidentemente que este revisitar se fez à busca de construir um “caminho chileno com final feliz”.
O revisitar da experiência da UP não fazia sentido, é óbvio, para quem a revolução (e, em alguns casos, o socialismo) não faziam mais parte do horizonte estratégico. Para gente assim, não cabia mais diferenciar “luta pelo governo” e “luta pelo poder”; para eles, ganhar uma eleição seria igual a ganhar o poder. Na prática, a confusão entre governo e poder contribuía para nem ao menos se pensar em tocar nos demais instrumentos de poder controlados pela classe dominante. Não admira que muitos dos que confundiam governo e poder, também acreditavam que golpes seriam coisa do passado: imaginavam que se não mexêssemos com os poderes fáticos, a classe dominante não se sentiria pressionada e, portanto, faria “as pazes com a democracia”. Esta crença equivocada acerca dos supostos compromissos democráticos da classe dominante latino-americana e caribenha foi abalada por tudo o que ocorreu depois de 2008; mas ainda assim, uma parte da esquerda regional saiu do recente ciclo de golpes ainda mais recuada do que antes.
O revisitar da experiência da UP tampouco fazia sentido para quem acreditava e/ou acredita que os governos progressistas e de esquerda eram e/ou são, na verdade, uma aclimatação da experiência socialdemocrata europeia ou uma “customização” da experiência populista latino-americana e caribenha. Para quem pensava ou pensa desta maneira, os governos progressistas e de esquerda não passam de experiências mais ou menos funcionais ao esquema de dominação imperialista e capitalista, governos mais ou menos reformistas que logo seriam ultrapassados pelos acontecimentos, após o que a luta de classe voltaria a condições que exigiriam – da parte da esquerda – a adoção de algum dos paradigmas revolucionários clássicos.
Esta crença equivocada acerca da tolerância da classe dominante frente a governos social-liberais ou social-democratas foi, também, abalada por tudo o que ocorreu depois de 2008; mesmo assim, há setores da ultra-esquerda que não aprenderam nada com a história recente e, hoje, organizam sua política em torno do combate aos governos progressistas e de esquerda.
Portanto, seja para o esquerdismo, seja para a esquerda “melhorista”, a experiência da Unidade Popular chilena não era e segue não sendo vista como tendo muito o que nos ensinar, do ângulo estratégico, salvo do ponto de vista negativo.
Aliás, é curioso constatar essas e outras semelhanças entre melhoristas e esquerdistas. Ambos foram surpreendidos pelo golpismo, uns porque achavam que a classe dominante não faria golpe contra governos que supostamente faziam o que a classe dominante desejava; outros porque achavam que a classe dominante não golpearia quem havia renunciado a fazer mudanças estruturais radicais e imediatas.
Já para aqueles setores que continuam tendo o socialismo como objetivo estratégico e que, portanto, querem que a classe trabalhadora tenha o poder necessário para construir o socialismo, o “caso” da Unidade Popular entre 1970 e 1973 segue sendo estrategicamente atual.
Evidentemente, não se trata de copiar uma estratégia adotada em outro país e em outra situação, seja porque a cópia constituiria em si mesma um erro, seja porque a “via chilena para o socialismo” não teve êxito em nenhum lugar. Do que se trata é perceber – ao elaborarmos uma estratégia adequada a situação brasileira – que será preciso responder às questões postas pela “via chilena”. E uma das questões é: como converter a parcela de poder obtida num processo eleitoral, não apenas em melhorias concretas para a vida do povo, mas também em transformações estruturais, inclusive no poder, condição indispensável para iniciar uma transição socialista?
Ao longo dos anos, a tendência petista Articulação de Esquerda vem buscando responder a esta questão, tanto no plano prático quanto no plano teórico. A seguir resumimos algumas de nossas respostas, desenvolvidas por extenso em outras de nossas resoluções.
Em primeiro lugar é preciso construir um sólido apoio nas classes trabalhadoras, o que inclui articular sob um comando estratégico único a maior parte das organizações políticas e sociais. A combinação entre luta institucional e eleitoral, ação parlamentar e de governos, luta social e atuação partidária, só é virtuosa quando articulada politicamente.
Em segundo lugar, é preciso ganhar o apoio dos setores médios, dividir as classes dominantes e isolar o inimigo principal. Impedindo que ocorra o contrário: que a classe dominante isole a esquerda, ganhe o apoio dos setores médios e divida as classes trabalhadoras.
Em terceiro lugar, é preciso combinar disputa política com disputa cultural. A construção do poder necessário para iniciar uma transição socialista é indissociável da construção de outra hegemonia ideológica, cultural.
O que remete, em quarto lugar, para a necessidade de ganhar apoio e/ou incidir de forma expressiva nos organismos estatais e nos organismos aparentemente privados que executam funções públicas, como é o caso das igrejas, das escolas, da indústria cultural e dos meios de comunicação.
Em quinto lugar, é preciso conquistar uma maioria eleitoral que seja suficiente para ter hegemonia de esquerda nos organismos executivos e legislativos fundamentais. É insuficiente ter a presidência da República, mas sem maioria no Congresso, nem nos governos subnacionais fundamentais.
Em sexto lugar, é preciso impedir a sabotagem e a subversão provenientes dos organismos de Estado não eletivos, principalmente a alta burocracia, o judiciário e as forças armadas. Trata-se de democratizar o acesso, estabelecer controle social, mudar as doutrinas vigentes e, fundamentalmente, garantir o respeito a legalidade que advém da soberania popular. Motivo pelo qual é tão decisiva a realização de processos constituintes nos países engajados em transformações estruturais.
Em sétimo lugar, é preciso construir uma rede de solidariedade e proteção internacional, que reduza a ingerência externa que as metrópoles capitalistas centrais fazem sobre processos socialistas nacionais. Daí, por exemplo, uma das razões pelas quais adquire centralidade a integração regional latino-americana e caribenha.
Em oitavo lugar, é preciso implementar um programa de transformações que parta dos problemas reais enfrentados pela sociedade e que construa soluções que atendam às necessidades das camadas populares, respeitando os níveis de consciência e a correlação de forças em cada momento, mas sempre tendo em perspectiva que cada passo gera novas necessidades, novos conflitos e novas reações, cabendo à direção política do processo se antecipar.
No caso chileno, o programa de transformação seguiu por dois eixos fundamentais: o poder popular e a área de propriedade social. O que nos remete para uma nona questão, que é a necessidade de – como um dos primeiros passos de um longo processo – converter uma economia dominada pelo capitalismo privado, em uma economia hegemonizada pelo Estado, sob condução de um governo de esquerda.
Finalmente, décimo tema, é preciso manter a iniciativa tática, especialmente nos momentos de impasse estratégico. O ano de 1973, no Chile, foi um desses momentos. A classe dominante havia decidido ir para o golpe. E o governo Allende perdeu progressivamente a iniciativa, passando a uma postura cada vez mais defensiva, confundindo a defesa da legalidade, com a passividade legalista frente à subversão de direita.
O legalismo corresponde a uma visão estática acerca da consciência popular. A legalidade é sempre uma mediação entre o texto estrito da lei (que expressa a correlação de forças passada) e a legitimidade (que expressa a correlação de forças presente). A burguesia sabe disto muito bem e não deixa de invocar o suposto apoio popular, quando lhe interessa desrespeitar a lei, sempre que a lei favorece a esquerda.
A história poderia ter sido diferente se, por exemplo frente ao Tancazo, o presidente Allende tivesse acatado as propostas do General Prats, no sentido de afastar os comandantes golpistas. Também por isso, é um erro dizer que o golpe no Chile teria sido, inevitavelmente, vitorioso. O mesmo vale para o Brasil: o golpe de 2016 poderia ter sido derrotado, se tivesse sido outra a política adotada pelo nosso Partido e pelo nosso governo.
A estratégia do PT
Na segunda metade dos anos 1980, o Partido dos Trabalhadores elaborou e tentou implementar uma estratégia política que fazia referência explícita à experiência chilena de 1970-1973. Entre 1990 e 2002, a experiência da Unidade Popular perdeu influência nas formulações petistas, mas seguiu presente. Entre 2003 e 2016, os governos petistas enfrentaram várias situações que teriam sido melhor equacionadas, se algumas lições do Chile tivessem sido levadas em consideração.
Em 2016, um golpe de Estado derrubou o governo brasileiro, então encabeçado pela presidenta Dilma Rousseff, do PT. Veio então um governo golpista, sob o qual foram realizadas as eleições presidenciais de 2018, nas quais se impediu a participação do então ex-presidente Lula. Lula assistiu da cadeia a vitória e a posse de um cavernícola. Mas, pouco tempo depois, Lula foi libertado, reconquistou o direito de disputar as eleições e venceu – por dois milhões de votos de diferença – as eleições presidenciais de 2022.
O atual governo Lula (2023-2026) experimenta dilemas estratégicos semelhantes aos presentes em seus dois primeiros governos (2003-2006, 2007-2010), mas hoje as condições são piores do que no passado. Algo parecido ocorre com os demais governos encabeçados por partidos nacional-populares, de esquerda e progressistas na América Latina e Caribe.
Guardadas as devidas proporções, a mudança de cenário e, em particular, a mudança de ânimo de alguns dos protagonistas às vezes faz lembrar o que ocorreu quando o Partido Socialista voltou à presidência do Chile, com Ricardo Lagos (2000-2006): o mundo era outro, o Chile era outro, o Partido Socialista era outro, os problemas eram maiores e menores os meios para resolvê-los. Mas, acima de tudo, era diferente a estratégia predominante na esquerda chilena. E diferente num sentido muito profundo: em 2000, para amplos setores da esquerda chilena, o “horizonte”, o objetivo final deixara de ser o socialismo e passara a ser, não a socialdemocracia europeia ou o desenvolvimentismo latino-americano dos anos 1950-1970, mas sim o social-liberalismo, ou seja, a tentativa de fazer coexistir certos compromissos democráticos e sociais, com políticas econômicas neoliberais e a submissão à hegemonia estadounidense.
Na época, talvez muitos não tenham se dado conta disso. Assim como, hoje, muitos setores da esquerda latino-americana e caribenha pensam sinceramente que não mudaram de lado, que estão apenas fazendo concessões devido à correlação de forças etc. Tal metamorfose atinge, como é fartamente demonstrado pelo governo Boric, inclusive setores que há tão pouco tempo eram vistos como alternativas idôneas à velha esquerda.
Tudo isto ocorre, paradoxalmente, mas não surpreendentemente, num ambiente em que o cenário mundial é de crises e guerras, o que noutros tempos desembocou em rupturas e revoluções. E depois de 40 anos de neoliberalismo, que provocaram mudanças profundas nas classes trabalhadoras, mudanças que colocam novos desafios teóricos e práticos para as forças políticas e sociais que seguem comprometidas com a derrota do capitalismo e do imperialismo.
O papel do PT e da AE
Levando em conta o conjunto da situação, cabe concluir que, assim como nossa poesia deve ser extraída do futuro, a estratégia da esquerda brasileira também está por ser construída. E, se quisermos construir vitórias no tempo de nossas vidas, esta construção passa por nosso Partido, pelo Partido dos Trabalhadores.
A maioria da classe trabalhadora com consciência de classe, especialmente mulheres, jovens, negros e negras, se identifica com o PT. Desde os anos 1980 até hoje, as vitórias da classe trabalhadora brasileira dependeram, em grande medida, das opções feitas pelo PT. Assim como pesa sobre nós parte importante da responsabilidade pelas derrotas.
Hoje, nosso Partido – ao mesmo tempo que tem imensos méritos – vem apresentando imensas debilidades. A principal destas debilidades não é organizativa, nem de comunicação; a principal debilidade é política: nosso Partido até agora não construiu uma linha política e uma maneira de funcionar adequadas aos tempos de guerra em que vivemos. E isto acontece em grande medida porque não se pode construir uma linha adequada do ponto de vista estratégico, quando se abre mão do principal objetivo estratégico, o socialismo. Embora a palavra socialismo continue constando das resoluções, para amplos setores do Partido isso é apenas uma menção ritual, pois estes setores abriram mão de discutir como articular a tática com a estratégia, como articular a luta imediata com a luta pelo socialismo.
Essa articulação entre tática e estratégia é indispensável, se queremos sair vitoriosos desta guerra que é travada, contra a maioria do povo brasileiro, pelos defensores do imperialismo, do capitalismo, do modelo primário exportador, do neofascismo, do patriarcado, do racismo, do fundamentalismo, pelos defensores de todo tipo de preconceito, opressão e exploração. Guerra que custou a vida de centenas de milhares de pessoas, como é o caso dos indígenas vítimas de genocídio; e, também dos brasileiros e brasileiras que poderiam estar entre nós, se o governo de extrema direita não tivesse sido aliado da Covid.
Neste contexto, de um Partido que ainda não construiu uma estratégia à altura de seu próprio papel histórico, qual é o papel da tendência petista Articulação de Esquerda?
A resposta é: contribuir, no limite de nossas forças, para que nosso Partido – associado a CUT, ao MST, ao movimento sindical rural de trabalhadores rurais e agricultores familiares, a CMP, ao MNLM, a UNE, a Ubes, as Frentes e a todas as demais organizações do nosso povo –, para que a classe trabalhadora esteja à altura dos imensos desafios postos pela atual situação nacional, continental e mundial. Desafios que exigem, sob a liderança e iniciativa do PT, a formação de uma ampla frente de esquerda, reunindo as forças democráticas, populares e socialistas.
Os desafios históricos e estratégicos postos diante de nossa classe exigem, de nosso Partido, um intenso trabalho organizativo, com destaque para nosso enraizamento na classe trabalhadora e para a mudança de métodos de funcionamento. E para isso, a retificação que exigimos que seja feita no PT, também deve ser feita entre nós. As minorias e as maiorias de nosso Partido padecem de deformações gravíssimas e não somos alheios a isto.
Destacamos, como parte desta retificação, em primeiro lugar, dar prioridade total para contribuir na organização da classe, nos locais de trabalho, de moradia, de estudo, nos espaços de cultura e lazer. Para este esforço convocamos cada militante de nossa tendência. Não basta criticar o que os outros não fazem, é preciso fazer aquilo que achamos que precisa ser feito.
Em segundo lugar, contribuir para construir o Partido dos Trabalhadores e das trabalhadoras, como partido de massas e radicalmente democrático. Novamente, reafirmamos: não basta criticar os que têm maioria nesta ou naquela instância, é preciso fazer por nossa própria conta o que pode e deve ser feito.
Em terceiro lugar, lutar contra as políticas equivocadas que existem no interior do chamado campo democrático-popular, com destaque para os setores social-liberais infiltrados na esquerda, defensores das privatizações, das terceirizações, do capital financeiro e do agronegócio. Neste terreno, é preciso lembrar que as concessões feitas ao neoliberalismo só produzem mais neoliberalismo.
Em quarto e fundamental lugar, trabalhar para que o PT continue lutando, aqui e agora, em favor de soluções efetivamente socialistas e revolucionárias para os grandes problemas do nosso país, de nosso continente e do mundo. Nos tempos perigosos e desafiantes em que vivemos, não cabe dúvida: o futuro depende de a classe trabalhadora lutar com todas as suas forças pela soberania, pela democracia, pelo desenvolvimento e pelo socialismo. A única alternativa à crise sistêmica do capitalismo é o socialismo.
Brasília, 31 de julho de 2023