Por Valter Pomar (*)
Rudá Ricci
Não sei se é verdade, mas dizem por aí que Brecht recomendava, a quem encontrasse uma ideia circulando na praça, perguntar a ela: a quem serve vossa senhoria?
Lembrei disso, ao ler o texto de Rudá Ricci acerca da “esquerda que não é esquerda”, corolário da teoria segundo a qual a esquerda brasileira se dividiria em dois blocos: “institucional” e “social”.
A rigor, além de perguntar a quem serve, vale perguntar a esta ideia, também, se “não te conheço de algum lugar?”
Afinal, como o próprio Rudá em certa medida sugere, esta dicotomia social/institucional é um remake da dicotomia social/política que esteve presente no debate entre marxistas e anarquistas, entre economicistas e iskristas, entre a esquerda e a direita da socialdemocracia alemã, entre comunistas e socialdemocratas etc.
Os economicistas russos, por exemplo, também acreditavam que a disputa que travavam seria “mais aguda” porque enfrentavam “diretamente a ordem social”. Acontece que a vida já mostrou, inúmeras vezes, que o questionamento da “ordem social” só é completo quando se politiza. E a politização inclui, em maior ou menor medida, alguma relação com ou participação no Estado do inimigo, ou seja, envolve a chamada “institucionalidade”.
Portanto, este tema das duas esquerdas não é um assunto do século XXI, não é uma jabuticaba brasileira, nem tampouco um desdobramento do “lulismo” (termo que alguns intelectuais tratam como se fosse o “mordomo” da história recente do Brasil, ao qual se atribui a responsabilidade por qualquer suposto mistério que não conseguem explicar de outro jeito).
A ideia de que existiria uma “divisão de trabalho” dentro da esquerda é, portanto, bem velha. O engraçado – sempre há algum motivo para achar graça de algo trágico – é ver essa ideia reaparecer, hoje, sob a forma de uma crítica aparentemente radical ao status quo vigente no Brasil: de um lado estaria a esquerda social, supostamente mais radical; de outro lado a esquerda “institucional”, que seria mais acomodada e que, progressivamente, estaria deixando de ser de esquerda.
Evidente que há uma “estratégia institucional” e também evidente que há uma esquerda que usa os “limites da institucionalidade burguesa” como explicação para tudo o que fazem e o que deixam de fazer. Mas a dicotomia proposta (esquerda social versus esquerda institucional) não é propriamente uma descrição da realidade, mas sim uma caricatura.
Em primeiro lugar, porque parte da esquerda “social” é igualmente acomodada (prefiro não citar nomes, mas peço que lembrem da atuação de certos “fóruns da sociedade civil”, sem falar de uma entidade que assinou, ontem, um acordo com o governo federal).
Em segundo lugar, porque outra parte da “esquerda social” tem muita retórica, mas pouco “social”.
Em terceiro lugar, porque falta história e política nessa descrição, sem as quais não dá para entender como é que se opera a metamorfose que transforma líderes da esquerda “social” em expoentes da esquerda “institucional”. Metamorfose que atinge não apenas petistas, mas também os que vieram antes e depois (vide, por exemplo, a trajetória de certos expoentes comunistas e psolistas).
Por último, mas mais importante, aceitar esta dicotomia conduz, no limite, a renunciar a qualquer possibilidade de vitória por parte da classe trabalhadora. Afinal, se por algum mistério de Fátima, toda “esquerda social” que amplia o “poder político da sua base social” termina deixando de ser de esquerda, nossa história nunca acabará bem.
Num país como o Brasil, na situação história aberta desde 1989, não há como abrir mão das “conquistas eleitorais”. Tampouco há como explorar estas conquistas institucionais, sem que tenhamos força social organizada fora das instituições. E não há como ter vitória, sem combinar os dois movimentos, “dentro” e “fora”, em torno de uma linha política comum. Evidente, se a situação histórica mudar, isto também muda. Mas por enquanto, este é um de nossos desafios estratégicos.
Entretanto, nada disso será possível ou necessário, se acharmos que a “esquerda social” é – por definição e sempre – moral ou politicamente superior à esquerda “institucional”.
Aliás, a certeza desta suposta superioridade é, por paradoxal que possa parecer, um dos motivos que explica a atitude lamentável de algumas pessoas oriundas da luta social e que ocupam espaços no aparelho de Estado.
Tampouco será possível construir uma estratégia que combine os movimentos, se acharmos que estamos diante de um fenômeno irreversível, cristalizado, da “formação de um segmento social ou político autóctone, autorreferente, que não se vincula mais à base social nenhuma, nem fora, nem à base partidária”, uma “elite autolegitimada pela conquista eleitoral, como provedora de uma sabedoria política”.
Embora seja bizarra a ideia de uma burocracia “autorreferente”, este tipo de descrição é atraente, pois faz referência a fenômenos realmente existentes. Mas a descrição tem uma falha fundamental: esquece que existe luta de classes, que existe uma pequena burguesia, que existe uma classe dominante burguesa, que existe uma direita neoliberal e uma extrema-direita neoliberal, que não vivemos na Europa imperialista, que estamos num momento de crise sistêmica. Portanto, esquece que não existe espaço estrutural, no Brasil de 2024, para uma esquerda profundamente integrada ao sistema, como ocorreu com a socialdemocracia europeia entre o pós Segunda Guerra e a ascensão do neoliberalismo. Se existisse, aliás, não teria havido o golpe de 2016 e o que veio depois.
Verdade seja dita, os primeiros que se esquecem disto, os primeiros que acreditam que têm um lugar na mesa da casa grande, são alguns militantes de esquerda que ocupam espaços na institucionalidade. Há até quem trate sua cooptação individual como se fosse uma mudança estrutural para o conjunto da classe trabalhadora.
Mas o antídoto para esta postura não é decretar como fatal, como mortal, toda participação institucional. Entre outros motivos, porque o fatalismo não é de esquerda: é apenas expressão de impotência.
(*) Valter Pomar é professor e membro do diretório nacional do PT
SEGUE O TEXTO COMENTADO
A esquerda que não é esquerda
POR Rudá Ricci
Recentemente, alguns intelectuais sugerem a divisão da esquerda brasileira em dois blocos: a esquerda institucional e a esquerda social. Esta é a proposição de Carlos Vainer, da UFRJ.
A divisão teria ocorrido mais nitidamente neste século XXI e, possivelmente, tem relação com o advento do lulismo como fiel da estrutura e dinâmica de poder nesta primeira quadra do século.
A esquerda social seria aquela vinculada e orientada por movimentos sociais, sindicatos e organismos ou fóruns da sociedade civil. Seus membros podem estar filiados a um partido, mas privilegiam pautas e planos de ação de suas organizações sociais.
Por sua vez, seu foco é a luta social, a ampliação dos direitos coletivos e o aumento do poder político da sua base social. A disputa política que travam é mais aguda porque enfrentam diretamente a ordem social, embora raramente se posicionem como organizações revolucionárias.
Já a esquerda institucional é aquela que privilegia o campo institucional e sua pauta gravita ao redor de conquistas eleitorais.
Assim, se a esquerda social se orienta por práticas de confronto e conquista de direitos, a esquerda institucional se pauta pelo calendário eleitoral e acordos para manutenção dos seus mandatos.
Na esquerda social, as alianças são mais estratégicas, podendo ocorrer alguma aliança tática como, por exemplo, acordos com parlamentares para emplacarem um projeto de lei.
Já na esquerda institucional, as alianças são sempre muito amplas, muitas vezes descaracterizando até mesmo a identidade de esquerda justamente porque procuram criar bases para a governabilidade de seus mandatos, evitando ao máximo solavancos e surpresas.
Ocorre que, nos últimos anos, a esquerda institucional se encontra mais e mais nas cordas. O que a obriga a ceder mais. O cenário mais desfavorável ocorre porque agora a maior oposição à suas pretensões não vêm de uma direita dócil, mas de uma extrema-direita mobilizadora e popular. As ruas, portanto, passaram a ser campo de disputa, assim como corações e mentes da base popular.
Há, portanto, uma esquerda que vai se desgarrando de sua identidade original e se tornando cada vez mais moldada pelas amplas alianças e acordos que minam as agendas e pautas originais.
Esta discussão não é nova no campo da esquerda. Lênin, em seu artigo “Mais vale pouco e bom”, de 2 de março de 1923 (ele faleceu em janeiro de 1924) já citava os erros na estruturação do aparelho de Estado. Sem dar nome aos bois, sugere que “no que se refere ao problema do aparelho estatal, devemos concluir da experiência anterior que seria melhor ir mais devagar” e conclui “é preciso, enfim, que tudo isso mude”.
Talvez, o texto mais cirúrgico de crítica às mudanças de projeto e conceito que a máquina soviética gerou é o livro de Charles Bettelheim, “A Luta de Classes na URSS”.
Enfim, há farta literatura de esquerda a respeito desses atalhos da esquerda institucionalizada que vai se afastando da sua origem até se perder num mar revolto.
E é aqui que gostaria de lançar uma reflexão: esta esquerda institucionalizada continua esquerda? A pergunta não é meramente retórica. A questão é se o centro de decisão desse segmento não seria nem mesmo o partido, mas a própria lógica da burocracia estatal e a base de amplos acordos.
Se esta hipótese tem sentido, estaríamos presenciando a formação de um segmento social ou político autóctone, autorreferente, que não se vincula mais à base social nenhuma, nem fora, nem à base partidária.
Ora, tal orientação ensimesmada criaria uma série de laços de lealdade de caráter grupal que se esforçaria para interditar divergências ou debate público de projetos e teses.
Não sei se o leitor desta provocação percebeu, mas minha sugestão é que tal esquerda institucional estaria criando uma elite autolegitimada pela conquista eleitoral, como provedora de uma sabedoria política.
Na tradição da literatura de esquerda, teria certo paralelo com o conceito de “aristocracia operária”, aquele segmento de operários altamente qualificados que recebem salários acima da média geral da classe trabalhador e que gerava uma identidade política e social muito peculiar, menos afeta à transformação política e social. O termo foi criado por Engels em um artigo publicado nas revistas Commonweal da Inglaterra e Die Neue Zeit da Alemanha no ano de 1885 e, décadas depois, Lênin, o retomou para analisar a consequência política que seria a separação deste segmento das grandes massas do proletariado.
Minha impressão é que estamos vivenciando no país a cristalização deste segmento social e político próprio que é a esquerda institucional que vai se distanciando tanto da sua origem que nem mesmo se sabe se ainda é esquerda. (FIM)