A direção nacional da tendência petista Articulação de Esquerda (Dnae) vai se reunir no dia 27 de agosto. Nesta reunião, um dos pontos de pauta é o debate sobre a proposta de resolução intitulada “Segurança Pública versus Terrorismo de Estado”. A proposta original de resolução foi elaborada pelo companheiro Pedro Pomar. O texto abaixo sofreu algumas alterações. A versão final será divulgada no dia ao término da reunião da Dnae. Agradecemos sugestões, comentários, emendas, críticas que nos cheguem até o dia 26 de agosto.
Proposta de resolução sobre “Segurança Pública”, Terrorismo de Estado e Direito à Vida e às Liberdades Democráticas
Quando você for convidado
Pra subir no adro da Fundação Casa de Jorge Amado
Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos
E outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
E são quase todos pretos
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos, quase pretos de tão pobres são tratados
E não importa se olhos do mundo inteiro possam
Estar por um momento voltados para o largo
Onde os escravos eram castigados
[…]
Ninguém é cidadão
Se você for ver a festa do Pelô
E se você não for
Pense no Haiti
Reze pelo Haiti
O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui
[…]
Cento e onze presos indefesos
Mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos
Ou quase brancos, quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres
E todos sabem como se tratam os pretos
[…]
Pense no Haiti
Reze pelo Haiti
O Haiti é aqui.
O Haiti não é aqui
(“Haiti”, de Gilberto Gil e Caetano Veloso)
1.Às vésperas de completar-se o sexagésimo aniversário do golpe militar de março-abril de 1964, é preciso reconhecer que um dos mais persistentes legados da Ditadura Militar é o Terrorismo de Estado, cuja expressão cotidiana é a atuação das Polícias Militares espalhadas pelo país. A Ditadura Militar não inventou o Terrorismo de Estado (que foi inaugurado no Brasil pela dominação portuguesa), mas lhe deu novas feições, especialmente a partir de 1968, com o AI-5 e diversas outras medidas.
2.As Polícias Militares já existiam antes da Ditadura Militar, mas esta as centralizou e as colocou sob a direção do Exército. Além disso, os generais criaram a maior e mais poderosa Polícia Militar do país, quando determinaram a unificação da Força Pública de São Paulo com a Guarda Civil. Nos anos 1970, os generais iniciaram as PMs nas trilhas da repressão política, incorporando-as aos DOI-CODI. Isso ocorreu fortemente no DOI-CODI do II Exército, em São Paulo, onde mais de 50 opositores da Ditadura Militar foram assassinados, conforme revela documento oficial, e cerca de mil foram torturados(as).
3.Encerrada a Ditadura Militar, em 1985, os generais saíram da cena política, ao menos explicitamente, mas deixaram as Polícias Militares como “tropa de ocupação” do país. Assim, ao longo de décadas, as PMs vêm agindo livremente nas favelas e bairros periféricos, impondo o terror cotidianamente, sem prestar satisfação a quase ninguém. As PMs tornaram-se a polícia mais letal do mundo, matando “suspeitos” em escala industrial, em geral a pretexto de contornar a “resistência armada”.
4.Governadores(as) dos estados foram, não raramente, incentivadores e cúmplices desta matança realizada pelas PMs sem que o Exército, seu suposto controlador por meio da Inspetoria Geral das Polícias Militares, fizesse um gesto sequer para interrompê-la. A pena de morte, que não existe na legislação brasileira, foi instituída de facto pelas PMs que ao mesmo tempo julgam os “suspeitos” e executam a sentença informal, à sombra de governos estaduais que quase sempre exortam e chancelam o comportamento policial.
5.No Rio de Janeiro surgiu em 1995, por iniciativa do governador Marcello Alencar (PSDB), a “gratificação faroeste”, concedida aos policiais militares mais eficientes na tarefa de executar “suspeitos” e presumidos “bandidos”. Um dos governadores fluminenses mais identificados com a política de extermínio de supostos marginais foi Sérgio Cabral (PMDB), um ladrão de colarinho branco que mais tarde seria preso por incontáveis atos de corrupção, que ademais levaram o Estado a uma situação falimentar.
6.A Polícia Militar do Rio de Janeiro praticou infindável série de crimes, mas bastam dois deles para definir sua natureza: o fuzilamento da juíza Patricia Acioli em Niterói, em 2011, e o sequestro seguido de tortura (numa “Unidade de Polícia Pacificadora”!), assassinato e desaparecimento do corpo do pedreiro Amarildo, em 2013. Crimes hediondos praticados por ordem de oficiais superiores: o tenente-coronel comandante do 7º Batalhão da PM-RJ (São Gonçalo) e o major comandante da UPP da Rocinha (Rio de Janeiro, capital), respectivamente.
7.Tristemente exemplar o caso de execução da corajosa juíza Patricia Acioli. Ela foi covardemente assassinada porque vinha investigando, e mandando prender, policiais militares milicianos do 7º Batalhão que forjavam “autos de resistência” para justificar os assassinatos que cometiam. E foi assassinada porque não recebeu a devida proteção. Reportagem do G1 realizada dez anos depois revelou que o tenente-coronel que ordenou e participou do fuzilamento de Patricia com 21 tiros continuava recebendo salário de R$ 39 mil, pois o processo de sua expulsão da PM ainda não fora concluído.
8.A reportagem apurou também que entre 2011 e 2021 o 7º Batalhão matou, sozinho, 1.099 pessoas. A letalidade da PM em São Gonçalo aumentou exponencialmente após a execução da juíza. Nesse mesmo período, a PM do Rio de Janeiro perpetrou o chocante total de 9.609 homicídios.
9.Em São Paulo, onde o governador Paulo Maluf, com o beneplácito do Exército, criou a ROTA, já nos anos finais da Ditadura Militar, sucessivos mandatários estimularam a política de “bandido bom é bandido morto”. Ao longo de um quarto de século no qual governos do PSDB se revezaram no comando do Estado, a letalidade policial bateu sucessivos recordes. “Quem não reagiu está vivo”, verbalizou, em certa ocasião, o então governador Geraldo Alckmin ao defender a PM após mais uma chacina.
10.Outras Polícias Militares também se notabilizaram pela prática de atrocidades. Como a do Pará, envolvida na morte de garimpeiros e outras pessoas na Ponte de Marabá, em 1987; no massacre de 19 trabalhadores sem-terra em Eldorado dos Carajás, durante a presidência de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e o governo estadual de Almir Gabriel (PSDB), em 1996; na chacina de nove posseiros e uma posseira, torturados e assassinados na Fazenda Santa Lúcia, em Pau D’Arco, em 2017; e em diversos outros crimes.
11.Ou a PM da Bahia, responsável pela brutal repressão à Marcha do Descobrimento (em 2000) e por inomináveis atrocidades, como o sequestro e assassinato do jovem Davi Fiuza (16 anos), escolhido para ser sacrificado na macabra iniciação, ou “batismo”, de aspirantes a oficial em 2014, e a chacina do Cabula, terrível episódio no qual 12 jovens negros perderam a vida, em 2015. Neste ano de 2023, em apenas quatro dias, entre 28 e 31 de julho, a PM da Bahia assassinou 19 pessoas, entre elas um garoto de 13 anos. Foram sete mortes em Camaçari no dia 28, oito em Itatim no dia 30, e quatro em Salvador no dia 31.
12.O governador Jerônimo Rodrigues (PT), em recente declaração pública, procurou racionalizar essas chacinas. De forma semelhante, quando das execuções do Cabula o então governador Rui Costa (PT) buscou justificá-las por meio de analogia com o futebol: os policiais têm de agir com rapidez, ”como um artilheiro em frente ao gol”.
13.Frente a tanta opressão, frente a tanto sangue derramado, frente a tanta dor de pessoas simples do povo às quais são negados direitos elementares e o próprio direito à vida, como é possível falar-se em “democracia” ou em “estado de direito”? Pois o Terrorismo de Estado é o exercício da violência desmedida pelos detentores do poder político, à revelia de quaisquer limites, sejam eles de ordem jurídica, política ou moral.
14.“Terror é a capacidade que tem o Estado de atuar sobre os corpos dos cidadãos sem ter que reconhecer limites na intensidade das intervenções ou dos danos e sem ter que enfrentar efetivas regulações na determinação dos castigos e proibições. Terror é a capacidade absoluta e arbitrária de um Estado de inventar, criar e aplicar penas e castigos, sem outros limites que não as finalidades que ele próprio definiu”, formulou o sociólogo chileno Tomás Moulian (Chile Actual: anatomia de un mito, 2002).
15.Somente o Terrorismo de Estado, com sua capacidade de igualmente obter silêncio cúmplice de uma expressiva parcela da sociedade, pode explicar o espantoso massacre de setores da classe trabalhadora e das populações periféricas praticado pela Polícia Militar de São Paulo em maio de 2006. Cerca de 500 brasileiros e brasileiras tiveram sua vida apagada, em geral aleatoriamente, por atos de vingança de policiais militares desejosos de retaliar ataques do PCC que haviam resultado no assassinato de mais de 40 soldados da PM.
16.Nesse caso, o Terrorismo de Estado ficou patente, ainda, na conivência do governo estadual e na recusa do Ministério Público (MP-SP) a investigar as centenas de mortes ocorridas em poucos dias, que lotaram os necrotérios. Num curto intervalo de tempo, a PM paulista cometeu uma quantidade tal de assassinatos que suplantou o número oficial de execuções praticadas pela Ditadura Militar ao longo de duas décadas. Quase cinco Carandirus. Mesmo assim, os crimes de maio de 2006 não foram federalizados, e nenhum dos seus responsáveis chegou a ser punido.
17.Embora existam outras forças policiais em atividade no país, como as Polícias Civis, a Polícia Federal e as guardas civis municipais, é a Polícia Militar que, por contar com maiores efetivos e maior poder de fogo (e por sua própria natureza militarizada), acaba ditando e moldando o modelo de “segurança pública” vigente. Que se baseia na vigilância extrema e repressão permanente aos corpos negros, pobres ou desviantes; na proteção do patrimônio e não da população; na “guerra às drogas”, com incursões brutais nas favelas e comunidades; no encarceramento em massa de jovens negros e pobres por meio de prisões preventivas; na repressão aos movimentos sociais, partidos políticos de esquerda e povos indígenas; e na prática de todo tipo de ilegalidades (por exemplo, a PM não pode espionar e não pode ter “inteligência”).
18.Sempre que aconteceu, a participação das Forças Armadas em “operações de garantia da lei e da ordem” (GLO), nome pomposo para o emprego de contingentes do Exército e da Marinha em ações de natureza policial a pedido de governos estaduais, redundou em ações desastrosas e funestas para a população. Episódio emblemático, nesse sentido, foi o assassinato do músico Evaldo Rosa dos Santos e do catador de latas Luciano Macedo, em 2019, no Rio de Janeiro, por uma tropa do Exército. “O Haiti é aqui”, como na canção de Gil e Caetano, porque sabe-se que a participação do Brasil nas tropas da ONU acantonadas naquele país envolveu brutalidades contra a população haitiana e serviu de treinamento para posteriores operações de GLO.
19.Cabe lembrar, aliás, que o assassinato de Marielle e Anderson ocorreu durante uma GLO; e os envolvidos são, em grande número, integrantes ou ex-integrantes da Polícia Militar.
20.Terrorismo praticado pela PM amplia insegurança da população
21.As recentes chacinas ocorridas na Bahia, em São Paulo e no Rio de Janeiro, todas praticadas pelas respectivas Polícias Militares, inserem-se no trágico contexto histórico acima delineado, e o reiteram. Não foram “raio em céu azul”, ao contrário confirmam uma trajetória de Terrorismo de Estado e de quase absoluta impunidade. Os governadores Cláudio Castro (PL), do Rio de Janeiro, e Tarcísio de Freitas (Republicanos), de São Paulo, são bolsonaristas que apostam nos dividendos políticos e eleitorais oferecidos por uma postura “linha dura” em matéria de “segurança pública”.
22.A chamada “Operação Escudo” da PM de São Paulo, em andamento na Baixada Santista enquanto se elaborava esta resolução, produziu pelo menos 18 “mortes violentas intencionais” até o dia 22 de agosto. Todas elas de pessoas pobres assassinadas pela PM. Conforme denúncia da população local, a partir de determinado momento os policiais militares dedicaram-se a derrubar barracos de moradores(as). Apesar de todas os protestos, que partiram da Ouvidoria das Polícias, da Ordem dos Advogados do Brasil, da Comissão Justiça e Paz, da Defensoria Pública, do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania e de diferentes entidades e movimentos sociais, Tarcísio deu continuidade à “operação”.
23.Se por um lado repetem o padrão de extermínio puro e simples que caracteriza a atuação dessas forças policiais, por outro lado essas recentes matanças de populares negros e pobres parecem refletir o inconformismo das PMs frente à conjuntura nacional desfavorável para determinadas lideranças do neofascismo, como o ex-presidente Jair Bolsonaro, ameaçado de prisão, e os altos oficiais do Exército e da PM do Distrito Federal implicados na tentativa de golpe de 8 de janeiro.
24.Igualmente de enorme gravidade é o assassinato da líder quilombola Maria Bernadete Pacífico, executada com 12 tiros na sua própria casa, na região metropolitana de Salvador, no último dia 17 de agosto. Apesar das inúmeras ameaças que vinha sofrendo, a proteção oferecida pela PM a Mãe Bernadete, como ela era conhecida, era “para inglês ver”.
25.Não basta repudiar e denunciar esses crimes repugnantes. Diante deles, torna-se necessidade imperiosa do Partido dos Trabalhadores dar início a um amplo debate interno sobre a questão da chamada “segurança pública” e sobre a questão correlata das Forças Armadas, na ótica de rejeitar toda e qualquer prática que configure o Terrorismo de Estado. O debate interno deve nos preparar para a discussão externa na sociedade.
26.No combate sem tréguas ao bolsonarismo, o tema da segurança pública é central e será ponto de destaque nas eleições municipais de 2024. Neste confronto com os neofascistas, ao formular e defender diretrizes programáticas para essa área, o PT não pode abrir mão das liberdades democráticas e, inversamente, deve opor-se ao Terrorismo de Estado. Ao contrário do que dizem inclusive alguns setores do PT, o terrorismo de Estado não consegue combater o crime, não consegue combater o tráfico, não consegue garantir a segurança da população.
27.Quem realmente deseja enfrentar o crime, em todas as suas modalidades, precisa alterar de alto a baixo o funcionamento das polícias militares. E precisa ser implacável contra o terrorismo de Estado, motivo pelo qual aplaudimos a decisão adotada pelo ministro da Justiça acerca dos policiais rodoviários federais que assassinaram Genivaldo Santos,
28.Como parte do debate acerca da política de segurança, propomos a adoção das seguintes medidas:
29-Divulgar sistematicamente a proposta de desmilitarização das Polícias Militares e das demais polícias, inclusive das guardas civis municipais, algumas das quais vem recebendo armamento pesado, como fuzis, e passando por processo de militarização que é preciso reverter.
31.-Monitorar, por intermédio da Executiva Nacional, as ações levadas a cabo por nossos governos, na área da chamada segurança pública, nos níveis federal, estadual e municipal. Nesse sentido, cabe propor ao governo da Bahia uma reunião, no mais curto prazo, para discutir o modo de atuação da Polícia Militar da Bahia, até por se tratar do Estado que ostenta os maiores índices de letalidade policial do país.
32.Reafirmamos: é necessário punir exemplarmente os envolvidos nos crimes de 8 de janeiro, inclusive os mandantes, os financiadores e os cúmplices fardados, não apenas os policiais, mas também os membros das Forças Armadas. O Brasil precisa de uma política de Defesa democrática deliberada e implementada, não de um ministro de “Defesa dos militares”. O Brasil precisa de Forças Armadas, não desta instituição que aí está, submissa a interesses estrangeiros, dedicada a tutelar o povo e envolvida em todo tipo de malfeito. Anistia, não!
33.Por fim, propomos que o governo federal convoque uma solenidade nacional, nos dias 31 de março e 1 de abril de 2024, para marcar o dia nacional de combate aos golpes, contra as ditaduras militares e contra o terrorismo de Estado.