Por Wladimir Pomar*
A condenação de Lula pelo TRF-4 suscita indignações e protestos, nem sempre acompanhados de uma análise mais fina do que está ocorrendo. É verdade que tal condenação está alinhada à transformação dos sistemas judiciário e policial brasileiros em linha de frente da ofensiva reacionária e proto-fascista que assola o país. No entanto, talvez seja um erro considerar tais setores hegemônicos no aparato de Estado e na sociedade.
Tal erro é agravado quando se supõe que a grande mídia comparte tal hegemonia. Ou que tais setores transformaram Lula em inimigo somente quando foram derrotados por ele. Na verdade, a hegemonia econômica, social, ideológica e política da sociedade brasileira há muito é exercida pela grande burguesia, grande capital, através de mil e um instrumentos, incluindo laços negociais, domínio do aparato de Estado, da mídia e de outros meios de difusão ideológica e de repressão social, assim como de links nem sempre visíveis.
Um dos exemplos ideológicos dessa hegemonia consiste em aparentá-la às da casa-grande e da senzala escravistas, sem relacioná-la ao capitalismo subordinado, dependente e desnacionalizado brasileiro, um grande capital que inclui frações estrangeiras poderosas. É esse grande capital que tem constituído o principal obstáculo à concretização das aspirações de soberania nacional, desenvolvimento industrial, redução das desigualdades sociais e consolidação dos direitos democráticos no Brasil.
Para comprovar tal assertiva basta relembrar a história brasileira, pelo menos de 1950 para cá, ou desde a primeira vitória presidencial de Lula, em 2002. Sem jamais ter deixado de considerar Lula e o PT como inimigos figadais, o grande capital sempre operou, mesmo quando aparentando amizade e simpatia, no sentido de destruir o governo de maioria petista, seja através das ofertas corruptoras e das sabotagens encobertas, seja de forma aberta contra as políticas sociais e a ampliação dos direitos democráticos.
Por outro lado, incapaz de vencer o PT (em 2006 e 2010 com Serra, e em 2014 com Aécio), vendo-se na contingência de enfrentar Lula novamente em 2018, e ansioso para reimplantar plena e radicalmente a política neoliberal no Brasil, o grande capital decidiu agir mais uma vez revolucionariamente. Isto é, planejou e levou à cabo um conjunto de ações cujo objetivo central consiste em inviabilizar a continuidade de governos petistas, mesmo que tais governos aceitem coalizões e não tenham objetivos socialistas.
Tais operações têm sido levadas a cabo tanto pelo sistema judicial-policial, cujo poder foi reforçado sem quaisquer travas ou exigências democráticas durante os governos petistas, quanto pelo sistema parlamentar. Na prática, os governos petistas deram continuidade à suposta aliança positiva com o grande capital, crendo que os sistemas judicial-policial e parlamentar seriam politicamente neutros no combate à corrupção e na obediência aos preceitos democráticos. Esqueceram que a corrupção é moeda corrente do grande capital e de seus representantes políticos, e que a maioria parlamentar já é hegemonizada pela fração agrária desse capital, a mais reacionária.
A suposta neutralidade do sistema judicial-policial dedicou-se, inicialmente, a comer pelas bordas dirigentes petistas que consideravam poder angariar fundos empresariais, de acordo com a lei, sem cair nas armadilhas do caixa 2 e do domínio do fato. O sucesso das operações judiciais de 2005 permitiu elaborar o plano de transformação de Lula em alvo principal de “atos de corrupção descobertos pela mídia”, passando a ser considerado “chefe único de organização criminosa”, conforme o promotor Dalagnol.
Só mais adiante, diante da necessidade de dar credibilidade e legalidade a tais ações, esse sistema se viu obrigado a cortar na própria carne, processando e julgando corruptores e corruptos de alguns dos esquemas do grande capital. O que não impediu o sistema parlamentar de perpetrar o golpe do impeachment contra Dilma. Isto evidenciou que o objetivo dessas operações ia muito além do pretenso combate à corrupção. Isto é, destruir o PT (e Lula), marginalizar a esquerda e impedir qualquer resistência séria contra a reimplantação do programa neoliberal radical de maior subordinação, dependência e desnacionalização do Brasil.
Para enfrentar tais planos, será preciso reconhecer que o núcleo da estratégia seguida pelo PT a partir da disputa presidencial de 1994 foi errado. Até então o PT não só lutara para dar fim à ditadura, como se insurgira contra o pacto de classes da Constituição de 1988. Sua recusa em assinar essa Carta se baseou no fato de que tal pacto de classes só formalmente reconhecia os direitos democráticos. Não acertara as contas com a ditadura militar e com os torturadores, não rompera com a subordinação e a dependência em relação ao grande capital internacional, e não democratizara (mesmo em termos concorrenciais capitalistas) os setores monopolizados (a exemplo das comunicações, da agricultura e de vários ramos industriais).
Apesar disso, muitos dirigentes do PT continuaram supondo que o grande capital não considerava Lula e o PT inimigos, mas aliados. Para piorar, deduziram que esse capital e a maior parte de seus representantes políticos, incluindo os incrustados no aparato estatal, como promotores e juízes, não tinham interesse em barrar a experiência de governo democrático e popular.
A partir daí, a visão sobre uma hipotética aliança com o grande capital funcionou como uma cascata interna. Sem sequer explicitar que estava rompendo com suas posições anteriores frente ao pacto imposto pela grande burguesia e aceito pelo estamento militar, a direção do PT modificou sua estratégia, adaptando-a ao pacto de classes da Constituição de 1988. Enrolou a bandeira de luta pelo socialismo e aceitou alianças de todo tipo com o lado de lá, em particular na disputa presidencial de 2002.
Nessa ocasião, incapaz de resolver a crise gerada pela década de subordinação ao Consenso de Washington, o grande capital decidiu “aliar-se” ao PT para eleger Lula. Isto, lógico, desde que o PT se comprometesse a resolver tal crise e não modificasse as bases da economia capitalista subordinada, dependente e desnacionalizada. Compromisso que foi ratificado formalmente na famosa Carta aos Brasileiros e cumprido sob fiscalização de um membro destacado do grande capital à frente do Banco Central.
As ilusões na aliança com o grande capital foram reforçadas por uma economia internacional que permitia altos saldos comerciais às exportações brasileiras e possibilitava a efetivação de programas sociais de combate à miséria e à pobreza, sem realizar qualquer reforma estrutural, mesmo apenas democratizante. Essa situação abrandou ainda mais a aversão à burguesia como classe, assim como a seus métodos de exploração e de tráfico na política. Ao mesmo tempo, levou o PT a dar prioridade às atividades institucionais, abandonar o trabalho social e organizativo dessa base, liquidar sua atividade de formação ideológica e política, e operar uma estratégia de desenvolvimento que, tendo o grande capital como motor, na prática impedia a transformação do país numa nação industrial, tecnológica e cientificamente soberana e socialmente menos desigual.
Essas ilusões no grande capital explicam porque muitos dirigentes petistas foram incapazes de avaliar em profundidade os acontecimentos de 2005, o primeiro ensaio para liquidar a nascente experiência de governos democráticos e populares eleitos tendo por base as regras constitucionais da democracia brasileira restrita. E também explicam porque eles ainda não entenderam que o estado de direito republicano do Brasil foi instituído para julgar docemente os representantes da burguesia (vide a vida dos “delatores” nababos) e revolucionariamente os representantes populares.
Por não entenderem essa dinâmica, muitas lideranças petistas não adotaram qualquer medida de crítica rigorosa aos que cometiam o erro de considerar o grande capital “aliado”, de tratá-lo como tal, e de praticar procedimentos idênticos, a exemplo de Palocci e alguns outros. Não tomaram medidas para investigar as evidências sobre esses atropelos das normas partidárias, não impediram que continuassem sendo praticados, nem julgaram necessário mudar a política de conciliação de classes e de aliança com o capital.
A rigor, sequer levaram em conta a crescente radicalização direitista e reacionária nas eleições de 2010 e 2014, quando as “marolas” da crise capitalista global passaram a abalar mais seriamente a economia brasileira e a ameaçar negativamente as taxas de lucro. O que tornou fundamental, para o grande capital, adotar “ajustes fiscais” que lhe permitissem expropriar os recursos estatais gastos com programas sociais, direitos trabalhistas, obrigações previdenciárias e outros atendimentos a reivindicações democráticas e populares, caracterizadas como populismo de esquerda.
Diante disso, desastrosamente, contra a opinião de parte considerável do PT e contra tudo com que se comprometera na campanha eleitoral de 2014, mas numa tentativa extrema de manter o acordo (ou o pacto de classes de 1988), o governo Dilma chegou a tentar o ajuste fiscal exigido. Porém, a essa altura o grande capital já decidira descartar qualquer possibilidade de reformas que dessem algum cunho popular à democracia formal de 1988. O que, é lógico, incluiu cassar o governo Dilma, impedir Lula de se candidatar e excluir o PT da lista de partidos políticos permitidos.
Pouco importa para o grande capital que o PT e grandes contingentes sociais considerem que a própria Constituição de 1988 está sendo rompida ao verem o sistema judicial-policial realizar conduções coercitivas sem antes convocar os depoentes, fazer prisões preventivas sem data de conclusão, e utilizar o suposto “domínio do fato” e a “convicção” como “provas”. Seus representantes estão se lixando para os argumentos de que a rede de proteção social, a ética e a liberdade de imprensa são conquistas democráticas daquele pacto de classe. Mesmo porque foram conquistas vagas que não romperam com o monopólio real que sustenta a iníqua desigualdade social, a nojenta corrupção generalizada e uma imprensa de alguns poucos magnatas.
O que obriga as classes populares a não só defenderem as medidas democráticas inscritas formalmente naquele Constituição, mas a exigirem e a lutarem por uma nova Assembleia Constituinte, que realmente assegure a extensão dos direitos democráticos às camadas populares e liquide com os monopólios em todos os aspectos da vida brasileira. O que vai depender de uma intensa e grandiosa mobilização social, muito maior e intensa do que a que já ocorre para defender Lula. Mas isso é assunto para o próximo comentário.
* Wladimir Pomar é escritor e analista político