Por Pedro Alem Santinho (*)
O Projeto de Lei nº 4614/2024 representa um grave retrocesso na garantia do Benefício de Prestação Continuada (BPC), uma das políticas públicas essenciais para amparar pessoas com deficiência e idosos em situação de extrema vulnerabilidade. Ninguém que realmente tenha acesso ao conteúdo do projeto e que tenha alguma preocupação com as desigualdades sociais que assolam nosso pais pode aceitar esse projeto, e mais, afirmo que essa proposta não apenas dificulta o acesso ao benefício, mas também ignora a realidade das famílias brasileiras mais pobres, apenas poderia ter sido redigido por tecnocratas que passeiam sobre o pais dos alto de seus lugares, de classe e renda.
A mudança mais preocupante está na redefinição do grupo familiar no art. 20, § 1º, da Lei nº 8.742/1993. Antes, somente irmãos, filhos e enteados solteiros eram incluídos no cálculo da renda familiar per capita, postos que os casados, mesmo que em residencial comum viviam e viem em cohabitacao, mas constituem outro núcleo familiar, como qualquer um que andou pelas periferias deste pais sabem muito bem. Agora, qualquer irmão, filho ou enteado, independentemente do estado civil, será considerado, desde que morem sob o mesmo teto. Isso significa que famílias que abrigam parentes em dificuldades, como filhos divorciados ou irmãos viúvos, podem ter sua renda artificialmente infladas por aqueles que se dizem buscar fraudes e marajás, deixando os mais vulneráveis sem acesso ao BPC. Além disso, o novo § 1º-A prevê a inclusão no grupo familiar de parentes que nem sequer moram com o requerente, mas contribuem financeiramente de alguma maneira. Em vez de proteger essas famílias, essa mudança as penaliza por solidariedade, aumentando as chances de exclusão do beneficio, e fazendo o ato de solidariedade virar um perigo e mesmo um ataque a um direito que mesmo o Supremo já afirmou sobre a necessidade da renda basica de cidadania.
Outra mudança brutalmente prejudicial diz respeito ao conceito de pessoa com deficiência. O art. 20, § 2º, traz novamente a exigência de incapacidade para o trabalho ou para viver de forma independente, uma visão ultrapassada e reducionista, há muito superada pelo estatudo da pessoa definiciente e pelos tratados internacionais.. Essa perspectiva, que contraria o modelo social da deficiência, ignora as barreiras enfrentadas por essas pessoas na sociedade e transfere a responsabilidade pela exclusão para o indivíduo, em vez de atuar sobre as barreiras estruturais. Além disso, a obrigatoriedade de inclusão do CID no requerimento reforça uma abordagem biomédica que já foi amplamente criticada, ao contrário da abordagem social e completa da vida e da saúde, incluindo todos os determinantes socias da saude no conceito e na analise, um retrocesso.
O cálculo da renda familiar também sofreu mudanças que só poderia ter sido pensadas por quem nao sabe nada sobre as dificuldades e as desigualdades sociais de nosso pais. O novo § 3º-A veda qualquer dedução de despesas não previstas em lei, ignorando os altos custos de medicamentos, terapias e cuidados especiais que muitas famílias enfrentam cotidaimente. Temos ainda o § 3º-B que determina que bens ou direitos acima do limite de isenção do Imposto de Renda sejam considerados para verificar a miserabilidade. Isso inclui pequenos terrenos ou propriedades rurais que, embora não gerem renda, podem levar a excluisão das famílias do benefício.
E parece que tudo vai piorando. Outra mudança grave está na revogação do parágrafo único do art. 34 do Estatuto do Idoso, que até então excluía o valor de um BPC recebido por outro membro da família ao se calcular a renda para concessão de um novo benefício. Essa revogação atinge diretamente famílias com múltiplos idosos ou pessoas com deficiência, criando situações onde apenas um benefício será possível, independentemente da necessidade do grupo familiar.
Como se não bastasse, o art. 21-B, incluído pela nova proposta, reduz de 48 para 24 meses o prazo para que beneficiários regularizem ou atualizem seus dados no CadÚnico. Essa mudança desconsidera as dificuldades de deslocamento, acesso à internet e outras barreiras que essas pessoas enfrentam, especialmente em regiões mais isoladas do país. Em vez de ampliar o alcance do benefício, essa alteração cria uma nova armadilha burocrática.
Além disso, a inclusão de benefícios previdenciários de até um salário-mínimo no cálculo da renda familiar, prevista no § 14 do art. 20, é uma afronta à justiça social. Muitos idosos e pessoas com deficiência dependem exclusivamente de seus benefícios para sobreviver, e considerá-los no cálculo impede que outros membros da mesma família em situação de vulnerabilidade tenham acesso ao BPC.
Essa proposta, ao invés de melhorar o acesso e proteger os direitos dos mais pobres, adota uma lógica de exclusão, ampliando barreiras burocráticas e desumanizando o sistema. Como militante e advogado previdenciário, afirmo que o PL 4614/2024 não só ataca o direito à assistência social como desrespeita a dignidade das pessoas mais vulneráveis, ampliando o abismo social e transformando uma política pública fundamental em um instrumento de exclusão. É urgente que resistamos a esse retrocesso, mobilizando a sociedade para garantir que o BPC continue sendo um direito e não um privilégio inacessível.
(*) Pedro Alem Santinho é advogado Trabalhista e Previdencialista