Por Alice Daflon (*)
Fui assistir ao filme “Ainda estou aqui”, de Walter Salles, com a magnífica Fernanda Torres, logo que entrou em cartaz nos cinemas do Brasil inteiro. Interessadíssima na película, ganhadora do Oscar, corri para ver o filme tão comentado pela imprensa e por amigos. No Rio, assisti no cinema São Luiz, na rua do Catete, escolhido pela ótima tela. Já o som, não se pode dizer o mesmo. Sou deficiente auditiva; uso prótese convencional retro auricular na orelha esquerda e fiz implante coclear à direita. Para escutar, preciso associar o som que me chega, que é precário e distorcido, à leitura labial. Essa geringonça tecnológica, por outro lado, me serve perfeitamente para o celular, pois o conecto com ambas as próteses através do recurso bluetooth, que elimina qualquer barreira entre o som do celular e as minhas próteses.
Mas até mesmo esse recurso tem suas limitações, posto que a acústica da sala de gravação, seja de live ou de vídeo, interfere diretamente na qualidade do som, que depende do tamanho da sala, da altura do teto, e até do material usado na construção, pois a densidade, a estrutura e os poros do material influenciam a transmissão do som. Dessa forma, o mesmo tribuno, orador ou apresentador pode ser bem entendido por pessoas com surdez ou não, a depender da acústica do local onde foi feita a gravação. O mesmo acontece nos eventos presenciais. Preciso estar sempre na turma do gargarejo para fazer a leitura labial, mas se a acústica não ajuda, já era!
No meu caso, minha surdez é progressiva e em torno de cada dois a quatro anos eu preciso fazer um upgrade na tecnologia disponível, a qual, diga-se, é bem cara, sendo certo que os aparelhos oferecidos pelo SUS não servem para muitos surdos que necessitam de tecnologias mais avançadas. E estou num desses momentos em que preciso de um upgrade.
Mas porque conto tudo isso? Primeiramente, sou grata por ter nascido no século XX, pois, se houvesse nascido em séculos anteriores, teria que usar aquele chifre de boi para tentar ouvir alguma coisa. Viva a tecnologia! E sou grata por não ter perdido o nervo auditivo, sem o qual as próteses seriam inúteis. Meu problema situa-se na orelha média e na cóclea.
Sou cercada de afetos e amigos do peito que já se acostumaram com a minha surdez e tem a boa vontade de falar articuladamente, alto, devagar e olhando para mim. Mas se a pessoa tem má dicção, usa um bigode comprido que dificulta a leitura labial, fala baixo, tem lábios muito finos… fica difícil entender. Não há boa vontade que resolva.
No teatro, acontece a mesma coisa, com honrosas exceções. As salas do shopping da Gávea, por exemplo, são perfeitas para os surdos: som surround, nítido, de ótimas qualidade e com volume ideal. A última peça que assisti lá foi “Não me entrego não”. Que felicidade ouvir o grande Othon Bastos num monólogo meio diálogo com a sua memória. Fiquei mega feliz de entender as falas desse espetáculo magnífico que é ver Othon Bastos em cena, com uma dicção perfeita, ânimo de menino, um jovem, na verdade, apesar dos seus mais de noventa anos, passeando por sua história com o auxílio da sua memória, repassando toda a sua trajetória teatral e cinematográfica, com textos de filmes como Deus e o Diabo na Terra do Sol, do saudoso Glauber Rocha, onde representou o cangaceiro Corisco, e São Bernardo, do grande Léon Hirszman, tempos de grandiosa cinematografia brasileira, sem prejuízo de outros grandes filmes e cineastas brasileiros contemporâneos, posteriores e atuais. Um viva ao cinema brasileiro! Na peça, Othon citou ainda passagens de peças memoráveis como “Um grito parado no ar” em parceria com Gianfrancesco Guarnieri, outro gigante, em plena ditadura empresarial-militar. Eu fiquei muito feliz de entender a peça!
O teatro Claro, na Siqueira Campos, o Teatro Casagrande, no Leblon, e o Teatro Rival, na Cinelândia, também são muitos bons de acústica. Assisti grandes musicais, peças e shows nesses teatros, que também são inclusivos. Já o Teatro Poeira não é inclusivo, pois os atores falam no gogó, sem microfone e nada de alto-falantes. Fui assistir Lady Tempestade, monólogo dirigido por Yara de Novaes, com a excelente atriz Andréa Beltrão e sai nos primeiros 10 minutos, pois não entendia absolutamente nada do que ela falava. Poucos dias depois, fui à reinauguração da cinemateca do MAM para assistir ao filme Salomé, filme brasileiro dirigido por André Antônio. Era dia de festa e muita alegria entre os presentes. Afinal, minha geração curtiu muito a cinemateca do MAM na década de 70, onde assistimos grandes filmes tanto no sentido artístico, como nos sentidos estético e político. Pensei: não posso perder a reinauguração da cinemateca do MAM! Mas que decepção! Som de péssima qualidade, absolutamente incompreensível, não só por mim, como também por idosos que estavam presentes no grande evento. Filmes brasileiros nunca mais!, pensei. Eu queria ver Vitória, de Andrucha Waddington, com a gigante Fernanda Montenegro, mas lembrei das experiências frustrantes e desisti. Fico esperando e torcendo para que passem nos streamings, onde há a opção de legenda.
Saí decepcionada da reinauguração da cinemateca do MAM e nesse dia me veio a ideia de que eu preciso ser uma surda militante e não só uma militante surda. Por isso, aqui estou a contar um pouco da minha história com o objetivo de sensibilizar e reivindicar maior acessibilidade para pessoas surdas nas salas de cinema e teatro. Bato palmas para o Teatro Municipal, em cujas óperas há legendas projetadas acima do palco que facilitam muito o entendimento do enredo da peça. Por outro lado, cito algumas salas de shows musicais que considero acusticamente muito ruins. São enormes e a acústica é péssima até para quem não é surdo.
A propósito, cito o Vivo Rio, onde assisti alguns shows, como Chico Buarque, Simone, Pat Metheny e, mais recentemente, ao Show de Verão da Mangueira. Neste, curti a festa e o ambiente alegre, mas por vezes não conseguia sequer identificar a música que estava tocando. Meu companheiro percebia meu olhar indagador e cantava para mim e eu acompanhava junto com ele. E qual não foi a minha surpresa ao descobrir que a melhor acústica era a do banheiro feminino do lado esquerdo de quem entra! Fiquei lá um tempo curtindo Chico Buarque muito mais do que no lugar que adquirimos bem em frente ao palco. Coisas que só surdos percebem… eu até ri da situação. Agora, indo direto ao ponto, os operadores da cultura e do direito, mormente os deputados federais e estaduais, que, na casa do povo, propõem projetos de leis, precisam atentar para a acessibilidade dos surdos aos eventos culturais. Considero isso um direito humano. Um direito fundamental. Como se vê, quando se trata de acessibilidade para surdos ela não pode se limitar ao fornecimento do intérprete de libras e sinais em alguns eventos.
Muito importante para os surdos totais, a Língua Brasileira de Sinais não supre a necessidade dos surdos protetizados. É simplesmente absurdo que filmes brasileiros não tenham legendas em português. É simplesmente absurdo que casas de show tenham péssima acústica. E é simplesmente absurdo que espaços para a apresentação de peças teatrais não adotem microfone. Bato palmas para os cinemas que adotam rampas e lugares para cadeirantes, bem como cadeiras para obesos, mas parece que os surdos são os grandes esquecidos, talvez porque nossa deficiência seja invisível aos olhos dos desavisados. Temos aparência saudável, e o somos, de fato, apenas precisamos de políticas de inclusão.
É pensando em todos os deficientes auditivos do país que venho reivindicar seja proposta e aprovada uma lei que obrigue a adoção de legendas em português em todos os filmes brasileiros e em todas as salas de exibição, bem como uso obrigatório de microfone nas salas de teatro. E é necessário que a concessão de alvará para casas de show passe por uma avaliação da acústica local, de preferência por uma pessoa deficiente auditiva.
Limito-me a minha experiência, de pessoa com surdez grave, passível, porém de melhora com o uso de próteses, mas o filme brasileiro legendado também supriria, acredito, a necessidade do surdo total. Afinal, assim como eu, há muitos surdos que adoram cinema e adoram teatro e adoram música e adoram shows, só precisamos ser incluídos integralmente nesses eventos culturais.
P.S.: Fui alertada por uma companheira de que uso a linguagem errada para me referir aos surdos, mas eu prefiro e adoto uma linguagem direta, por isso não adoto termos como “pessoa portadora de deficiência auditiva” ou “minoria linguística”.
(*) Alice Daflon é médica e advogada, servidora pública aposentada, membra da Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia.
Respostas de 7
Grande Alice, parabéns pelo lindo e necessário protesto!
Importantes demais suas considerações acerca da questão da deficiência auditiva e inclusão, principalmente pelo seu lugar de fala! Seguimos juntas na luta contra a desigualdade nos diversos aspectos!
Importante depoimento, não apenas para os que são surdos como também e, indiscutivelmente, para os que não o são.
Querida companheira e cunhada Alice, seu depoimento trouxe à tona as dificuldades por que passa um deficiente auditivo e eu, como deficiente visual, compreendo e vivo uma série de restrições em virtude de minha deficiência
Quero aproveitar a oportunidade para enaltecer a figura de seu marido, Silas, e de minha esposa e companheira, Consuelo, que têm tido um papel fundamental nessa nossa cruzada como deficientes auditivo e visual.
Vamos em frente!
Há algum tempo acompanho essa sua luta, Alice, para ultrapassar os terríveis limites da surdez. Sou solidária e divido a mesma questão, com um familiar. Não é apenas deixar de ouvir o que se quer, mas a vulnerabilidade de entender errado, ser mal interpretado, ficar exposto é até mesmo ser julgado por isso. É uma batalha necessária. E você, não estará só.
Texto sincero, necessário e de relevância indiscutível!
Parabéns por este importante depoimento cara irmã companheira Alice Daflon !!!
Compartilho da sua reinvindicação !