Por Lúcia Rodrigues
Texto publicado originalmente em Holofote Notícias
Quem planta ventos, colhe tempestades. O velho provébio poderia se encaixar como uma luva para o momento vivido pelo STF.
Não fosse pela tormenta vir das bandas daqueles que nunca sofreram com intempéries da instância máxima do judiciário brasileiro.
O Supremo vive o drama de ser apunhalado por aqueles a quem, até recentemente, sempre protegeu.
Em 2010, a Corte rejeitou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental impetrada pela OAB, a Ordem dos Advogados do Brasil, que pedia a revisão da Lei de Anistia por entender que a legislação não pode proteger os torturadores que agiram durante a ditadura militar.
Por sete votos a dois, a ação foi derrotada escorada no esdrúxulo argumento que considera crimes conexos o ato de torturar e o de se opor à ditadura.
Com a decisão, a maioria dos ministros da Suprema Corte impediu que torturadores pudessem ser punidos pelos crimes cometidos nos Anos de Chumbo.
Dos ministros que participaram do julgamento há mais de uma década, quatro ainda integram a Corte atual.
Ricardo Lewandowski votou a favor da revisão da Lei de Anistia, Gilmar Mendes e Cármen Lúcia, contra. Dias Toffoli se declarou impedido de votar, por ser advogado-geral da União quando a OAB impetrou a ação.
Lewandowski foi acompanhado apenas pelo então ministro Ayres Britto. Os demais, o presidente do STF, Cezar Peluso, Ellen Gracie, Marco Aurélio Mello e Celso de Mello seguiram o voto do ministro relator, Eros Grau, e barraram a punição aos torturadores.
Mais recentemente, em 2016, Gilmar Mendes também suspenderia a nomeação do ex-presidente Lula, para o cargo de ministro da Casa Civil, determinada pela então presidente Dilma Rousseff.
Em 2019, o STF ainda arquivaria por unanimidade o pedido de Lula, para que fosse reconhecida a validade de sua nomeação para o cargo na Casa Civil.
Antes disso, em abril de 2018, Lula seria mandado para a cadeia, onde permaneceu por 580 dias, ao ter rejeitado o pedido de habeas corpus, pelo plenário do STF, por seis votos a cinco, que decidiu ao arrepio da lei que não seria necessário esperar o trânsito em julgado para a efetivação da prisão.
Alexandre de Moraes, Carmen Lúcia, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Rosa Weber e Edson Fachin, que era relator do processo, votaram a favor da prisão após a condenação em segunda instância. Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio Mello e Celso de Mello, contra.
Importante destacar que esse julgamento ocorreu um dia após o famoso tuíte do então comandante do Exército, general Eduardo Villas Boas, em que este afirmava que o Exército repudiava a impunidade e que estava atento às suas missões institucionais.
Em resposta à mensagem de Villas Boas na rede social, o então comandante militar do Sul, general Geraldo Antonio Miotto, que viria a morrer de covid durante a pandemia, afirmava: “Comandante! Estamos juntos na mesma trincheira! Pensamos da mesma forma! Brasil acima de tudo! Aço!”
Em agosto do mesmo ano, Dias Toffoli, logo após assumir a presidência do STF, formalizaria o convite ao general Fernando Azevedo e Silva para assessorá-lo no Tribunal.
Sem perfil para o cargo, o fardado que havia sido chefe do Estado Maior da força terreste e viria a se tornar ministro da Defesa de Bolsonaro, foi indicação de Villas Boas para tomar assento na corte de justiça.
Mas Toffoli diria que sua escolha se baseara em critérios técnicos e que o general reunia qualidades para assumir o posto.
À época, Azevedo e Silva estava empenhado na campanha de Jair Bolsonaro à Presidência da República e o Exército já dava mostras de querer tutelar o Supremo Tribunal Federal.
Três anos depois, em agosto do ano passado, seria a vez de Luís Eduardo Barroso, à frente do Tribunal Superior Eleitoral, trazer mais fardados para o ambiente da justiça.
Foi dele que partiu o convite para que o então ministro da Defesa Walter Braga Netto indicasse representante para integrar a Comissão Externa de Transparência que a corte eleitoral iria criar.
O desfecho dessa decisão todo mundo conhece. Os militares se sentiram empoderados para imiscuirem-se nos assuntos do processo eleitoral, ao ponto de hoje o general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, ministro da Defesa, ser a principal voz estridente da caserna contra as urnas eletrônicas.
Mais uma ingratidão dos fardados, que sempre contaram com as vistas grossas de um judiciário complacente diante dos crimes cometidos pelo regime ditatorial.
Até hoje o STF não moveu um dedo para que fosse cumprida a sentença, de 2010, da Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, a Organização dos Estados Americanos, que determinou que o Estado brasileiro puna os militares envolvidos nas mortes e nos desaparecimentos de 70 guerrrilheiros do Araguaia nos anos 1970.
Nada foi feito também para atender à determinação do órgão internacional sobre a localização dos restos mortais desses ativistas de esquerda executados pelas forças de repressão da ditadura militar.
O Supremo teve o mesmo comportamento em relação à sentença de 2018, da mesma corte internacional de direitos humanos, sobre a morte sob tortura do jornalista Vladimir Herzog nas dependências do DOI-Codi paulista. Pela decisão, o Brasil deve identificar e punir os verdugos que mataram Vlado.
Mas não são só as omissões que maculam o passado do STF. Há uma nódoa ainda maior em sua história.
Durante o Estado Novo, coube à Corte Suprema o indeferimento do habeas corpus que impediria que a dirigente comunista Olga Benário fosse deportada grávida, para ser morta pelos nazistas em um campo de concentração da Alemanha de Hitler.