Por Licio Lobo (*)
O processo da privatização da Sabesp é um retrato sem retoques do governo Tarcísio de Freitas, herdeiro e fiel representante do bolsonarismo em São Paulo.
Ali, num único enredo, se entrelaçam o compromisso com o grande capital financeiro, a truculência da Polícia Militar vocacionada para reprimir os movimentos sociais e o olímpico desprezo ao meio ambiente e à economia popular.
Este coquetel indigesto teve seu último lance com o leilão realizado em meados de julho para “escolher” a chamada “acionista de referência” da empresa, que, em tese, será capaz de intervir na orientação dos negócios sociais e efetivamente participar na tomada de decisões estratégicas e administrativas da companhia.
O tal leilão, realizado com pompa e circunstância, teve como empresa vencedora a Equatorial, empresa pertencente ao Banco Opportunity e à gestora de fundos Black Rock, dos Estados Unidos, a única a apresentar uma proposta, o que é estranho no caso de uma empresa lucrativa como a Sabesp, “ofertada” no mercado de ações por um preço 44% abaixo do seu valor real.
O estranhamento se explicaria, em parte, pela “insegurança jurídica” que ainda paira sobre o processo. Mas estes possíveis percalços e barreiras não diminuíram o “apetite” da Equatorial, que, tendo sido fundada em 1999, atuando no setor de energia, começou a atuar no ramo do saneamento apenas em 2022, após obter a concessão do serviço no estado do Amapá.
Para coroar o estranhamento, há indícios de “ligações perigosas” entre a Sabesp e a Equatorial. Por exemplo, a presidente do Conselho de Administração da Sabesp, Karla Bertocco, integrou o Conselho de Administração da Equatorial Energia até dezembro de 2023.
Os controladores da Equatorial são velhos conhecidos das “privatarias tucanas” associados aos pesos-pesados do capital financeiro mundial. O Banco Opportunity é pertencente ao banqueiro Daniel Dantas, presente nos processos das privatizações das estatais desde a década de 1990, quando teceu relações políticas com figuras como Antônio Carlos Magalhães e próceres do tucanato. A Black Rock é o maior fundo financeiro do mundo, que controla cada vez mais setores de infraestrutura e megaempreendimentos, sendo regido obviamente pelos interesses da rentabilidade dos capitais e de costas para os interesses concretos das populações.
No caso da Sabesp, são inequívocos os interesses da população de São Paulo em manter a empresa sob controle do estado e fortalecer seu caráter público.
Hoje, a Sabesp é responsável por um terço dos investimentos em saneamento que são feitos no Brasil todo ano, atendendo 375 municípios do estado, com destaque para a capital.
Destes municípios atendidos pela empresa, a imensa maioria, 310, já tem o que se chama de 300%: 100% de abastecimento de água, 100% do esgoto coletado e 100% de tratamento do esgoto coletado. No total, 30 milhões de paulistas, 70% da população do estado, está coberta pela Sabesp.
A Sabesp continua sendo uma empresa de excelência, com quadros técnicos capacitados e grande capacidade de investimento, tudo isto não obstante os estragos que a lógica de mercado causou à empresa nos últimos anos, com aumento das terceirizações e demissão de funcionários.
Na lógica privada, as tendências regressivas inevitavelmente irão predominar e o lucro passará a ser o objetivo principal da empresa, com o pagamento de dividendos aos acionistas e risco de atrasos e diminuição dos investimentos e perda de qualidade na manutenção do sistema, como ficou evidente recentemente no caso da energia elétrica, com a atuação desastrosa da Enel privatizada.
É preciso ressaltar, também, que o setor público de saneamento adota práticas de subsídios cruzados que equilibram as receitas com a ampliação de serviços à população, com regiões de maior rentabilidade garantindo o investimento em áreas menos rentáveis, como as zonas rurais e assentamentos precários nas periferias das grandes cidades, ao mesmo tempo, garantindo tarifa social para a população de baixa renda.
Mas, definitivamente, estes não são os interesses dos aliados do governo Tarcísio, que teceu fortes compromissos com os tubarões do capital financeiro, um dos pilares da sua sustentação, ao lado de uma PM cada vez mais violenta e dominada por oficiais ligados à extrema-direita e um parlamento comprado pela fisiologia e compromissado também com o grande capital.
Todos estes atores estiveram presentes no vergonhoso processo de votação da privatização da Sabesp na Assembleia Legislativa de São Paulo no final de 2023, apenas 50 dias depois do envio do Executivo, sob protesto e com a galeria esvaziada pela Polícia Militar com extrema truculência.
O projeto da privatização foi votado com vários ataques à democracia por parte do governador, a começar pela sua negativa em propiciar um amplo debate desta questão estratégica pela sociedade, atropelando até mesmo o rito parlamentar tradicional, evitando o debate nas comissões legislativas regulares.
O governador se negou, também, a acatar a proposta de realizar um plebiscito entre a população paulista para decidir sobre esta questão estratégica.
Aprovado de forma atropelada e sem debate com a sociedade, o projeto é passível de questionamento judicial, porque burla dispositivos da Constituição do Estado de São Paulo, que obriga que projetos com a finalidade de desestatização sejam aprovados através de uma emenda constitucional.
Além da inconstitucionalidade, há vários aspectos do processo a contestar. Já são mais de 50 ações na Justiça questionando a privatização, mas é evidente que o controle que o governo do estado mantém também sobre o judiciário paulista só poderá ser quebrado com uma forte mobilização popular.
Nas eleições municipais de 2024, a privatização da Sabesp será um tema em debate, principalmente na capital, em que o prefeito Ricardo Nunes fez um acordo espúrio para autorizar que o município faça a concessão para uma empresa privatizada, projeto aprovado pela maioria dos vereadores na base do fisiologismo e sob ataque aos movimentos que protestavam.
Cabe aos partidos de esquerda e aos movimentos sociais de São Paulo retomarem a luta contra a privatização da Sabesp no contexto de uma plataforma de lutas global, um desafio ainda pendente para a esquerda.
(*) Licio Lobo é militante do PT.