Por Josiane Santana Ribeiro (*)
“Aqueles que pretendem ser os construtores do futuro têm de agir dentro de determinadas condições concretas”. (ROSSI, p.30, 1981).
No Brasil, em maio de 2021 uma criança Yanomami morreu por desnutrição. Em 2022, acompanhamos no noticiário brasileiro a história do menino Miguel, de 11 anos, que ligou para a polícia pedindo ajuda após ver a mãe chorar por não ter nada para dar de comer aos filhos. Infelizmente, atualmente essas situações não são casos isolados no Brasil. E elas me lembram do livro “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos.
No livro, a descrição do romance é tocante desde o primeiro momento. Nesta ficção regionalista elaborada na década de 30 o autor descreve como a desigualdade social latente é capaz de castigar uma família pela fome. A obra de Graciliano inicia com o relato da família do sertanejo Fabiano que caminhava em busca de condições de viver: “Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos”. O filho mais novo, identificado como Pirralho, após o dia inteiro não conseguia mais caminhar e no chão “encolhia-se com os joelhos encostados ao estômago, frio como um defunto”. No dia anterior haviam comido apenas o papagaio, que morreu por fome.
Seria apenas uma excelente obra de ficção, mas infelizmente apresenta uma temática contextual de desigualdade social, afinal, mesmo após 90 anos da obra milhões sofrem no Brasil, em 2022, por fome e insegurança alimentar.
Se somos um conjunto de uma espécie, a espécie humana, o que pode explicar alguns humanos terem riqueza suficiente para, como lazer, dar 45 voltas em um foguete ao redor da Terra e três crianças em casa sofrerem por fome? E uma criança morrer por desnutrição?
A distribuição da riqueza do mundo é totalmente desigual. Gosto muito da imagem do livro “Se…Uma nova maneira de enxergar grandes conceitos”, de David J. Smith, que transforma a porcentagem da riqueza do mundo em 100 moedas e a distribui pela quantidade de habitantes do mundo:
“Se toda a riqueza do mundo – cerca de 223 trilhões (223.000.000.000.000) de dólares – fosse representada por uma pilha de cem moedas…
- Quarenta moedas ficariam com o 1% mais rico da população.
- 9% das pessoas teriam 45 moedas.
- 40% teriam catorze moedas.
- Os 50% mais pobres – metade da população do mundo – dividiram apenas uma moeda.” (SMITH, 2016, p.30 e 31)
Em resumo, 1% da população do mundo tem mais riqueza que a metade da população do mundo. O nome disso é desigualdade social!
Segundo dados da Rede Pennsan com apoio da Oxfam Brasil, mais da metade da população do Brasil está em insegurança alimentar, ou seja, 125 milhões de brasileiros não têm comida garantida em quantidade e qualidade. E 33 milhões passam fome. Impressionante o quanto esses dados são coincidentes com a imagem de Smith em que mais da metade da população da Terra divide uma moeda.
O Brasil, em 2014, havia saído do Mapa da Fome das Nações Unidas. Entretanto, desde 2018 retornou ao Mapa da Fome. Isso significa que mais de 2,5% da sua população passa fome. No Brasil essa porcentagem está em 4,1% em 2022.
Recentemente ouvi o Podcast “O Assunto” sobre “O desmonte do combate à fome”. Nele é possível perceber que para garantir o direito Constitucional à alimentação é preciso organizar órgãos, programas e políticas de combate à fome e ter atenção e centralidade do tema no orçamento da União. Entretanto, desde 2016 há um ataque às políticas de combate à fome. E mesmo com a situação de fome alarmante o atual presidente vetou, agora em agosto, o reajuste no Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE.
É comum ouvirmos explicações que esses dados são referentes à pandemia, entretanto, o mesmo país que aumenta a sua quantidade de famintos, aumenta sua quantidade de bilionários: segundo a Forbes, em 2021 o Brasil ganhou 40 novos bilionários.
Esses dados não são apenas números em si, eles simbolizam a vida e a realidade de milhões de pessoas que sofrem com a falta desesperadora do alimento. Isso por mais que muitas pessoas queiram negar, chama-se desigualdade social ou “luta de classes”. O que é possível fazer para mudar essa realidade, que infelizmente não existe somente nos romances ou dados, mas é sentida por muitos humanos?
Na sociedade capitalista atribui-se para redução das desigualdades a responsabilidade individual do ser humano com o seu mérito, ou seja, só o seu esforço individual seria capaz de resolver a equação de desigualdade. Será?
Entretanto, a depender da classe social, uma criança não utiliza-se apenas dos seus méritos para os estudos ou investimentos. Ela tem garantia de alimentação, moradia, estudo e condições financeiras de acesso ao lazer e cultura garantidas por muito tempo por sua família. Em muitos casos quando adulta, recebe herança e realiza investimentos. Por outro lado, há crianças sem terem o que comer. Como podemos falar em mérito como se essas duas crianças, de classes sociais distintas, estivessem em condições de oportunidades iguais?
A solução para mudar a situação apresentada, vem de maneira fácil por muitos: o estudo para mobilidade social. Mas será o mérito do estudo capaz de realizar justiça social ou apenas exceções à regra?
No capítulo “A escola conservadora: as desigualdades frentes à escola e à cultura”, do livro Escritos de Educação, de Bourdieu, ele evidencia a falácia do discurso de igualdade de condições quando há o privilégio cultural de alguns e a eliminação de crianças desfavorecidas nos sistemas de ensino: “Bourdieu apresenta que, na França, um jovem de camada dominante tem oitenta vezes mais chances de entrar numa Universidade que o filho de um assalariado agrícola e quarenta vezes mais que o filho de um operário, e suas chances são, ainda, duas vezes superiores àquelas de um jovem de classe média (p.41).”
Para Bourdieu a escola e sociedade continuará favorecendo os favorecidos e desfavorecendo os desfavorecidos se ignorar que:
“No âmbito dos conteúdos do ensino que transmite, dos métodos e das técnicas de transmissão e dos critérios de avaliação, as desigualdades culturais entre as crianças das diferentes classes sociais. Em outras palavras, tratando todos os educandos, por mais desiguais que sejam eles de fato, como iguais em direitos e deveres, o sistema escolar é levado a dar sua sanção às desigualdades iniciais diante da cultura (p.53).”.
No prefácio de “A Educação para Além do Capital”, escrito por Emir Sader, deixa claro que a educação pode contribuir para a emancipação humana ou, por outro lado, contribuir para legitimar e induzir como natural o sistema do capital:
“A educação, que poderia ser uma alavanca essencial para a mudança, tornou-se um instrumento daqueles estigmas da sociedade capitalista: nos “fornecer os conhecimentos e o pessoal necessário à maquinaria produtiva em expansão do sistema capitalista, mas também gerar e transmitir um quadro de valores que legitima os interesses dominantes”. Em outras palavras, tornou-se uma peça do processo de acumulação do capital e de estabelecimento de um consenso que torna possível a reprodução do injusto sistema de classes. Em lugar de instrumento de emancipação humana, agora é mecanismo de perpetuação e reprodução desse sistema. (p.15). “
Sendo assim, infelizmente não se pode defender “mérito” se temos condições gigantescas de desigualdade social. Em nossa sociedade, há uma concentração de riqueza imensa nas mãos dos bilionários, sendo que milhões de pessoas estão em situação de fome pelo mundo.
Como seres humanos podem defender um sistema em que uma criança morre por fome? Muitas vezes a fuga com visões idealizadas de condições para transformação social só age como anestesia para a consciência, negando a realidade. A defesa da meritocracia é um alento à consciência de quem nega a sua responsabilidade na luta por justiça social. Enquanto isso, vale lembrar do poema de Solano Trindade: “Tem gente com fome!“
(*) Josiane Santana Ribeiro é professora, mestre em educação e militante petista no Distrito Federal