Por Wladimir Pomar (*)
Celso Furtado
O coincidente centenário de Celso Furtado e de Florestan Fernandes está dando ensejo a um interessante debate sobre “desenvolvimento”, que Furtado via como um mito a ser desfeito através de um processo profundo de “transformações sociais e econômicas”, um “processo revolucionário”, capaz de encaminhar as “transformações estruturais necessárias à constituição da nação brasileira”. Ou seja, Furtado não concordava com a suposição de um desenvolvimento comportando contradições, inclusive antagônicas.
Ele, corretamente, combatia a “concentração da renda”, o “anacronismo da estrutura agrária”, e a “ausência de reformas no aparelho estatal”, defendendo a reorganização agrária, reformas na máquina administrativa estatal, no sistema fiscal e na estrutura bancária, assim como o disciplinamento do capital estrangeiro e sua subordinação ao desenvolvimento econômico e social nacional. Tudo de modo a superar a “cultura escravocrata”, que se opunha a qualquer tentativa de política econômica e social autônoma.
No entanto, tinha dificuldade em classificar a substituição do anacronismo agrário que, desde 1888, combinava a “cultura escravocrata” com o sistema latifundiário vigente de agregação, meação, ou arrendamento, mais aparentado à cultura feudal, por um sistema agrícola capitalista altamente mecanizado, financiado pela ditadura militar. Financiamento estatal que, ao invés de distribuir terras e fomentar a agricultura dos antigos agregados, para continuarem plantando e produzindo, os expulsou dos latifúndios, obrigando-os a migrar e a se transformarem em trabalhadores assalariados dos investimentos industriais estrangeiros no sul do país, promotores do “milagre econômico” ditatorial.
Ou seja, o “anacronismo da estrutura agrária” foi substituído, pela ditadura militar, durante os anos 1960 e boa parte dos anos 1970, numa estrutura agrária que hoje se considera a “verdadeira indústria” do Brasil. Podemos até classificar tal “desenvolvimento” como contrário aos interesses da maioria dos antigos camponeses, mas não podemos negar que representou um “desenvolvimento” no sentido capitalista e, pior, num sentido capitalista que pode se tornar um profundo retrocesso histórico.
Na atualidade, tal agricultura contribui cada vez mais para transformar o Brasil num simples produtor de matérias primas agrícolas, de acordo com os planos de tipo colonial de inúmeros pensadores neoliberais nativos. Além disso, para piorar, ao invés de recuperar as terras cansadas, pós-safras, por meio da reposição de nutrientes nos solos, esse grande capitalismo latifundiário simplesmente substituí as terras cansadas por novas, derrubando florestas e causando desmatamentos colossais, com consequências climáticas danosas.
Furtado também se enganava ao supor que a lógica básica de desenvolvimento do capitalismo dos países centrais residia no estímulo tecnológico decorrente da escassez de mão-de-obra. É verdade que também reconhecia que, no pós-guerra, tais países haviam adotado políticas de recuperação industrial, e de pleno emprego e salários mais altos. Logo depois, porém, voltaram a incentivar a inovação técnica e o desemprego tecnológico, rebaixando as taxas salariais para aumentar as taxas de lucro, embora a taxa média sofresse os crescentes impactos de queda pela elevação da produtividade.
Além disso, não se pode excluir do sistema capitalista, como indutora desses “desenvolvimentos” tecnológicos, a concorrência no mercado. Ela também induz os produtores de mercadorias a elevarem a produtividade e, portanto, a rebaixarem preços, para concretizarem seus lucros, sendo uma das principais impulsionadoras do desenvolvimento tecnológico capitalista, e uma das principais indutoras das contradições internas do capital.
Portanto, o desenvolvimento científico e tecnológico do processo produtivo de mercadorias carrega uma contradição insolúvel para o capitalismo. Por um lado, ele demonstra sua capacidade de, teórica e praticamente, poder suprir todas as necessidades dos membros das sociedades humanas. Por outro, na prática, ao elevar constantemente o desemprego tecnológico, reduz a capacidade dos membros da sociedade suprirem suas demandas, criando uma imensa e insolúvel contradição para si mesmo.
É verdade que os capitalistas descobriram a possibilidade de continuar enriquecendo através das bolsas de valores e da lucratividade fictícia do dinheiro. Porém, a prática de quase dois séculos de jogatina financeira tem demonstrado que essa é uma estrada de crises cada vez mais devastadoras. O que obriga os seres humanos a buscarem saídas civilizatórias através de mudanças profundas no sistema de propriedade privada, mesmo onde tal sistema ainda não tenha se realizado plenamente.
Tudo isso faz parte do desenvolvimento contraditório do sistema capitalista. E é como tal que o desenvolvimento precisa ser visto em sua oportunidade de superação de seus polos contraditórios. O Brasil ainda não alcançou o estágio de forças produtivas desenvolvidas e de forças de trabalho sendo descartadas pelo desenvolvimento tecnológico. Na prática, a burguesia brasileira e seus representantes políticos encastelados no Estado, tendem a realizar um desenvolvimento regressivo, com crescente fechamento e/ou transferência de indústrias, e com a transformação da agricultura e da mineração em supostas “verdadeiras indústrias do país”. Ou seja, tentam retornar ao período colonial, mas supridos de máquinas modernas pelos polos industriais do capitalismo global.
Se o Brasil quiser escapar dessa sina neocolonialista, seu povo terá que considerar seriamente a necessidade de retomar o desenvolvimento de sua indústria e de sua infraestrutura produtiva e social, combinado com o desenvolvimento social e politicamente democrático, como as sociedades socialistas são capazes de promover. Isto é, tendo um Estado politicamente democrático, suprido de inúmeras empresas estatais, que concorram entre si e com as empresas privadas, num mercado orientado no sentido do desenvolvimento científico e tecnológico e, também, socialmente justo.
Apesar de todos os esforços negativistas de sua burguesia, subordinada a interesses estrangeiros, no Brasil ainda perduram diversos instrumentos estatais, conquistados através de lutas populares de âmbito nacional, desde os anos 1950. Exemplo disso são os bancos públicos e as empresas estatais ainda não privatizados, que podem funcionar como promotores do desenvolvimento e da adoção de um planejamento econômico que, como supunha Furtado, estimule a atividade empresarial estatal e privada, reoriente os investimentos, acelere a acumulação interna de capital, assim como reduza a geração dos riscos e crises comuns ao sistema capitalista.
Furtado, por outro lado, considerava que as indústrias metalúrgicas, de refino de combustíveis líquidos, e de fabricação de equipamentos, fundamentais para qualquer processo intensivo de industrialização e de ampliação do mercado interno, já estariam firmemente implantadas no país, podendo servir de base aos processos de planejamento econômico. Porém, após as intensas políticas neoliberais de privatização e de desmonte, dos anos 1980 para cá, apesar da recuperação dos anos 2002 a 2013, seria conveniente verificar com maior atenção estatística qual a realidade realmente presente no parque industrial brasileiro.
O mesmo pode ser dito da agricultura capitalista dominante e de seus custos ambientais e sociais, em geral não computados no exame de sua rentabilidade. Em outras palavras, a grande agricultura capitalista precisa passar por uma reavaliação séria. Por um lado, a renda da terra precisa ser corretamente cobrada pelo Estado, e a manutenção de sua produtividade através de processos científicos de fertilização precisa ser verificada constantemente. Por outro lado, milhões de pobres destituídos de terras ou com pouca terra, precisam ser beneficiados por uma reforma agrária que, como supunha Furtado, reorganize a economia agrária em bases sociais amplas, contribua decisivamente para elevar os investimentos produtivos nas regiões mais atrasadas, e dê maior equilíbrio ao desenvolvimento econômico e social do Brasil.
Em outras palavras, o desenvolvimento precisa era encarado como um processo contraditório, que traz em sua natureza tanto traços ou aspectos negativos, quanto traços ou aspectos positivos, através dos quais tende a superar suas negatividades e a criar outras mais elevadas.
(*) Wladimir Pomar é jornalista e escritor político