Por Valter Pomar (*)
O IHU publicou, no dia 22 de agosto, uma entrevista com Liszt Vieira acerca da Venezuela.
A entrevista publicada pode ser lida aqui: O enigma venezuelano: frente a uma democracia autoritária e uma direita com inclinações fascistas, o resultado das eleições é uma incógnita. Entrevista especial com Liszt Vieira – Instituto Humanitas Unisinos – IHU
A entrevista foi concedida e publicada antes que fosse divulgada a decisão da Sala Electoral del Tribunal Supremo de Justicia da Venezuela, confirmando a vitória de Maduro.
Mesmo assim ou por isso mesmo, vale a pena ler.
Liszt alerta que a Venezuela é um caso de” grande complexidade política”, que ele propõe abordar sobre três ângulos: o “exclusivamente eleitoral”, o “político geral interno” e o “geopolítico”.
Do ponto de vista eleitoral, Liszt diz ter “dúvidas”: “não sei se algum dia saberemos se houve ou não fraude”.
Detalhe curioso: Liszt afirma que “a democracia brasileira foi muito mais autoritária do que a venezuelana”, afinal “prenderam o Lula sem prova nenhuma para impedir que ele fosse candidato”.
Ou seja: as eleições de 2018 foram fraudadas antes mesmo de começarem. Apesar disso, quase ninguém fala disto.
Já no caso da Venezuela, parece existir uma maneira de dirimir certas “dúvidas”: se a fraude for confirmada e a oposição for declarada vencedora.
No fundo, certas pessoas têm certeza de que houve fraude. Algumas transformam acusação em prova. Outras adotam uma espécie de agnosticismo: na ausência de provas, professam a dúvida eterna.
Mesmo inadvertidamente, isso na prática ajuda a oposição de extrema-direita.
Sigamos.
Do meu ponto de vista, a parte mais relevante da entrevista de Liszt é sua crítica ao “autoritarismo militar do Chávez”, que por outro lado ele reconhece ter atendido às necessidades materiais da maioria do povo da Venezuela.
Outro detalhe curioso: Lizst não diz uma palavra sobre as mudanças políticas ocorridas nos governos chavistas, por exemplo a ampliação das liberdades democráticas e a reforma no sistema eleitoral.
Compreensível não falar disso: torna mais fácil introduzir a tese da “democracia autoritária”.
Segundo Liszt, a Venezuela seria “um regime militar até hoje, tem uma fachada civil com o Maduro, mas é um regime militar, pois são eles que estão no poder” (…) é um regime militar porque os militares estão no poder com uma fachada civil e eles montaram um governo autoritário. Eu não chamo de ditadura porque o governo foi eleito e ninguém provou que havia fraude, mas não é uma democracia clássica. Eu chamo de democracia autoritária, que é um título que dou ao governo da Venezuela”.
Embora ache o termo bonito pacas, não sei direito o que seria uma “democracia clássica”.
E não conheço nenhuma autoproclamada democracia, em que as forças armadas não joguem papel relevante.
Aliás, um governo de esquerda não sobreviveria muito tempo sem uma forte retaguarda militar, especialmente numa região como a América Latina e Caribe, tão perto dos EUA e tão longe do paraíso.
Certamente há maneiras e maneiras de articular as forças armadas com o conjunto do aparelho de Estado. Na maneira chinesa, o Partido manda nas forças armadas. Na maneira gringa, governos eleitos em processos extremamente controlados – pela grana, pela mídia e por uma legislação restritiva – interagem subalternamente com o “Estado profundo”.
Estas e todas as outras maneiras possíveis sempre serão relativamente democráticas e, claro, podem receber diversos nomes.
Liszt, por exemplo, chama a maneira venezuelana de “democracia autoritária”.
Mesmo inadvertidamente, isso na prática reforça a “narrativa” dos gringos, segundo a qual a batalha mundial estaria se dando entre democracia e autoritarismo.
Sigamos.
Lizst afirma que “houve também uma gestão muito incompetente e precária do governo da Venezuela. Os militares nunca foram muito competentes em matéria de administração pública e gestão econômica – essa é uma regra quase geral”.
Esclareço que nunca fui e sigo não sendo chavista. Entre outros motivos, porque atuo no Brasil, não na Venezuela. Por óbvio, não concordo com os que tecem juras de amor ao chavismo, nem acho que eles tenham feito tudo certo no terreno econômico.
Agora, onde é mesmo que existiu ou existe uma gestão “competente” em “matéria de administração pública e gestão econômica”? Quantos destes casos exemplares estão aqui em nosso continente? E quantos são encabeçados pela esquerda? Ademais, competente para quem mesmo?
A verdade é que é raro encontrar governos “competentes”, ao menos quando o critério é servir ao povo. E mais difícil ainda, quando se atua em condições extremamente difíceis, como é o caso da Venezuela.
Sigamos.
Lizst desanca Guaidó e o golpismo da direita. Mas, ao mesmo tempo, afirma que “o problema é que a Venezuela ficou com fama de ser um governo de esquerda, porque os militares não abriram mão do petróleo para negociar com empresas americanas. Mas o governo da Venezuela é um governo de esquerda? Eles têm uma política econômica neoliberal e um autoritarismo bastante repressivo. É preciso levar em conta que não é um governo de esquerda, apenas os militares não quiseram entregar o petróleo para os americanos”.
Vamos por partes: a Venezuela tem um governo de esquerda? Ou é só fama? Fama que causaria problemas para pessoas que supostamente são verdadeiramente de esquerda?
Os mais entusiasmados (contra ou a favor) não se perguntam a respeito. Mas deveriam. Afinal, vivemos em tempos em que um Trump acusa uma Kamala de ser “radical de esquerda”. Mas no passado também era assim: a socialista revolucionária Fanni Kaplan, que atirou em Lênin em 1918, acusava o velho russo de ser um “traidor da revolução”. E atire a primeira pedra quem nunca foi acusado de praticar uma política econômica neoliberal, de ser autoritário ou de reprimir contrários.
Feitas estas ressalvas, nessa questão sigo o exemplo de Brizola: olho para o que fazem nossos inimigos. O imperialismo e a extrema-direita querem derrubar o governo da Venezuela. Isto não faz do governo Maduro o melhor governo do mundo, não o converte num exemplo de manual, nem faz o povo venezuelano tomar banho em leites de rio e mel.
Mas faz dele a esquerda realmente existente na Venezuela. Isto é um “problema” para outras esquerdas, em outras partes do mundo? Em alguns casos sim, noutros casos mais ou menos. Mas a não ser que alguém defenda adotar um modelo único de esquerda, é bom se acostumar com a diversidade e com a absoluta falta de perfeição.
Mas o problema principal (para a esquerda) surgiria se Maduro fosse derrotado. Como Liszt mesmo diz, “um governo de extrema-direita na Venezuela seria um fortíssimo ponto de apoio para impulsionar o avanço da extrema-direita em todo o mundo. Além disso, em termos de soberania nacional, de segurança nacional, a Venezuela é vizinha do Brasil e um ponto de entrada para a Amazônia”.
Termino, citando algo que Liszt diz mais para o final de sua entrevista: “não tem por que um país intervir em um país vizinho por achar que houve fraude na eleição. Não pode haver uma intervenção na Venezuela porque o Tribunal Eleitoral de lá decidiu que o fulano ganhou ou perdeu. Esse é um problema interno da Venezuela, de soberania nacional deles e que os outros têm que respeitar. Se quiser, podem romper relações diplomáticas, mas não opinar, enquanto governo oficial ou presidente da República, dizendo que a eleição foi honesta ou fraudada neste ou naquele país vizinho. Isso não tem sentido”.
Em resumo: o assunto eu não sei, mas o ponto de vista de Liszt é mesmo complexo. Entretanto, não é certo que tudo seja incerto. Afinal, feitas as contas, a melhor opção – até mesmo para quem tem dúvida – é reconhecer o resultado proclamado pela justiça venezuelana.
(*) Valter Pomar é professor e membro do diretório nacional do PT