Por Vanda Terra (*)
“Mil nações moldaram minha cara.
Minha voz uso pra dizer o que se cala.
O meu país é o meu lugar de fala”
Elza Soares
Dia desses, remexendo em papéis antigos deparei-me com um comunicado, um convite para uma reunião de organização do “Encontro de Mulheres do ABC “, a ser realizado em 2 de fevereiro de 1985, na sala 2 da igreja matriz, no centro de São Bernardo do Campo. A proposta era de discutir os problemas comuns a todas as mulheres da região, e pensar alternativas para a construção da luta por mudanças.
Passou um revive na minha cabeça e comecei a lembrar de nossas origens, de quem nos antecedeu e do quanto construímos nesses anos todos.
No final dos anos 70, saindo de diversas regiões pobres e periféricas do ABC, nossas vozes se juntavam às vozes das mulheres do Grajaú, da Lapa, Carapicuiba….. para reivindicar o fim de todas as formas de discriminação contra as mulheres, dentre outras pautas…..
Ao som de Joan Baez, a luta no mundo era pela paz e pela liberdade, para derrubar barreiras que tornavam a vida das mulheres tão diferentes das dos homens. O Concílio Vaticano falava em “paternidade responsável “, a pílula trazia o direito de pensar o prazer. No Brasil foi aprovada a lei do divórcio e as mulheres se organizavam no ” movimento feminino pela anistia”
No ABC paulista, a ativista feminista Marcia Dangremom, a primeira mulher de quem ouvi com afinco a defesa às mulheres, gritava na atual praça dos trabalhadores, no Jardim Silvina ” quem ama não mata , não humilha e não maltrata”, pedindo a prisão de Doca Street , assassino de Leila Diniz e de Lindomar Castilho, assassino de Eliane De Grammont. Márcia, a mulher que defendia que crimes em defesa da honra eram “assassinatos de mulheres”, nos convocava a todas para mudar a lei – que só foi alterada em 2021.
Nos anos 80, as mulheres do abc foram às ruas em defesa de comida mais barata , no movimento contra a carestia, em defesa do emprego, do leite gratuito para suas crianças, contra as prisões arbitrárias realizadas contra os/as grevistas do abcdmrr.
Em 1985, foi criado o Comitê de Mulheres, um espaço de debate e organização da luta das mulheres, e com a fundação do PT e da CUT, Terezinha Gomes, Márcia Dangremom, Ana do Carmo, Fatima Araújo, participaram das disputas eleitorais sendo candidatas a vice prefeita e vereadoras na cidade de São Bernardo do Campo – e fizeram nossa pauta em defesa da creche, de salário igual, de luta pelo reconhecimento do trabalho doméstico- ecoar nos quatros cantos da cidade.
Ainda nos anos 80, em 1985, fruto da luta das mulheres, é criada a primeira Delegacia da Mulher – A DEAM (Delegacia de Atendimento Especializado à Mulher ) – que surge em São Paulo e, logo depois, outras unidades começam a ser implantadas em outros estados. Essas unidades especializadas da Polícia Civil realizam, essencialmente, ações de proteção e investigação dos crimes de violência doméstica e violência sexual contra as mulheres. Também criado em 1985, o Conselho Nacional Dos Direitos da Mulher (CNDM) foi muito importante para a defesa da política educacional da creche e da pré escola.
Em 1988, ocorre o primeiro encontro nacional de mulheres negras, com participação estimada em torno de 450 negras, para promover debates e seminários em vários estados brasileiros, a fim de conscientizar a população e trazer à tona questões do feminismo negro.
O ano de 1988 foi um marco por promulgar a Constituição, que garante a mãe trabalhadora o direito à creche e isso intensificou e amparou a luta das mulheres por creche, além de ser um ano marcado pela mobilização que ficou conhecida como Lobby do Batom, cuja pauta era a igualdade formal de direitos entre mulheres e homens na Constituição Federal do Brasil. #NãoTiraOBatomVermelho.
Os anos 90, ricos em acúmulo de debates trazem a importância dos órgãos de proteção às mulheres, e temos as primeiras secretarias de mulheres, nas cidades de Diadema e Santo André, proporcionando atendimento digno às mulheres vítimas de violência, incluindo o atendimento psicológico e jurídico. A frente desses debates- incluindo os direitos das trabalhadoras- saudosas companheiras como Luci Paulino, Beth Lobo e inúmeras trabalhadoras das fábricas do abcdmrr, além de conquistas como a “semana da mamografia e do papa nicolau”.
Os anos 2000 acrescentam a esse debate a pauta lgbtqi e a luta das mulheres negras, num debate intenso de que feminismo nos importa, que seja de classe e que paute a mulher trabalhadora.
Votar, ter o direito de receber o mesmo salário que um homem, pelo mesmo trabalho, ter uma carreira, jogar futebol, fazer exame gratuito de câncer do colo do útero, ter cartão de crédito, ser amparada em caso de violência doméstica, poder casar sem ser virgem…… parece brincadeira, mas esses direitos que temos hoje, foram conquistas de mulheres que desde sempre enfrentaram o machismo e o patriarcado.
Enfim, conquistamos o direito ao voto em 1934, mas até 2021 a legítima defesa da honra, era um recurso argumentativo para o assassinato de mulheres. Caminhamos muito, lutamos sem trégua.
Na política, ainda vivemos a baixa representação das mulheres, mas fizemos história, elegendo Maria Luiza Fontenele: primeira prefeita de uma capital brasileira, em Fortaleza. Iolanda Fleming: primeira governadora, no Acre. Luiza Erundina, primeira prefeita da maior cidade do Brasil, São Paulo e elegemos Dilma Rousseff, primeira presidenta do país.
Fruto de nossas lutas, de conferências , de atos, e de anos e anos de Marchas, Das Margaridas, Mundial das Mulheres, Mulheres Negras, em 2006 foi criada a lei Maria da Penha, em 2010 foi eleita Dilma Rousseff, a primeira presidenta do Brasil. Em 2011 a Marcha das Vadias chega ao Brasil. Em 2015 foi aprovada a lei do Feminicidio. A partir de 2018 pessoas trans podem alterar seus nomes, apenas indo ao cartório.
Nossa história não cabe em um texto, mas é muito importante escrever e relembrar nossas histórias de lutas, valorizar nossa caminhada, e conquistas, pois nada foi fácil ou tranquilo. Temos como tarefa cotidiana pensar e refletir nossa história, intensificar nossas bandeiras e reverenciar quem nos antecedeu e não nos esquecermos de nós parabenizar sempre: viva a luta das mulheres!
(*) Vanda Terra é professora, dirigente da executiva estadual do PT -SP, militante da Marcha Mundial das Mulheres e da Frente Regional de Enfrentamento a Violência contra as mulheres do ABCDMRR