Por Francisco Junior (*)
Brasília, 05/07/2023 O presidente Luiz Inácio Lula da Silva participa da 17ª Conferência Nacional de Saúde. Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil
O chamado “Controle Social” do SUS, à frente o Conselho Nacional de Saúde em parceria com o Ministério da Saúde, Conselhos Estaduais e Municipais de Saúde, movimentos sociais, gestores, prestadores de serviço e trabalhadores em saúde de todo o país realizaram mais uma Conferência Nacional de Saúde, aí incluídas as etapas estaduais e municipais bem como as Conferências Livres reunindo setores específicos da sociedade.
Após a pandemia e a tragédia que foi o governo genocida, sem perder de vista a transição realizada por Temer pós golpe contra Dilma, em que os princípios daquele projeto que se prenunciava foram colocados em prática – particularmente através da Emenda Constitucional 95 e da Reforma Trabalhista, as quais inciaram o processo de destruição do país que viria a seguir -, chegava o momento de iniciarmos a volta à normalidade também na participação da comunidade, que deve determinar os destinos do SUS.
Durante esse período realizamos a 16ª Conferência Nacional de Saúde, reprovamos o Plano Nacional de Saúde e Relatórios de Gestão apresentados pelo Ministério da Saúde e mantivemos uma rotina de dura resistência aos sucessivos ataques que eram promovidos e praticados pelo governo.
Foi com toda essa demanda política e social reprimida e acumulada que a 17ª Conferência Nacional de Saúde foi pensada e construída.
Já faz um bom tempo que o que convencionamos chamar de “Controle Social” do SUS enfrenta muitos problemas. Os Conselhos de Saúde, em sua grande maioria meros colegiados cartoriais, perderam seu protagonismo e deixaram de atuar diretamente naquilo que é definido na legislação como suas prerrogativas, que deveriam ser indiscutíveis, inquestionáveis e inegociáveis.
Com pouca renovação, aparelhados por gestores ou grupos organizados, débil e insuficiente formação teórica e política e inaceitável submissão aos ditames dos gestores, têm – respeitadas as exceções -, direta ou indiretamente, realizado pouco naquilo que diz respeito à defesa dos princípios do SUS através da luta contra a sua privatização, o aprofundamento da precarização da contratação e remuneração da sua força de trabalho, o seu desfinanciamento e a histórica prioridade para a consolidação de um inviável e insustentável modelo de atenção altamente especializado, privatista, elitista, mercantilista, excludente e corporativista.
A realização da 17ª Conferência Nacional de Saúde no governo Lula, após uma vitória eleitoral histórica numa disputa profundamente desigual contra uma candidatura alicerçada num governo fisiologista, corrupto e autoritário, foi a possibilidade de começar a reconstruir o SUS e, através dele, o Estado brasileiro.
Sob o tema Garantir Direitos, Defender o SUS, a Vida e a Democracia – amanhã Será Outro dia, e com quatro Eixos Temáticos, I – O Brasil que temos, o Brasil que queremos; II – O papel do Controle Social e dos Movimentos Sociais; III – Garantir Direitos e Defender o SUS, a Vida e a Democracia; IV – Amanhã será outro dia para todos, todas e todes, mais de 5 mil delegados e convidados realizaram um momento marcado por forte disputa política envolvendo o Ministério da Saúde, ameaçado por forças conservadoras que reivindicam seu comando, e projetos que, debatidos no Congresso nacional, como o Novo Arcabouço Fiscal e a Reforma Tributária, têm relação direta com sua organização e subsistência.
As propostas apresentadas no Relatório a serem discutidas e deliberadas nos Grupos de Trabalho e na Plenária Final, deixavam claro que a disputa ideológica travada nos últimos anos no país com as forças mais obscurantistas, também estava presente na Conferência, com temas que refletiam claramente as lutas identitárias e de costumes. Representantes da corrente mais conservadora e reacionária hoje assumida no país, se distribuíam pelos grupos de trabalho, se manifestando na medida em que as propostas eram apresentadas.
De outro lado, ficou patente também uma participação rica e variada que caracterizava a diversidade que compõe o povo brasileiro em suas múltiplas e autênticas representações, povos originários, afro-religiosos, pessoas com deficiência, travestis e transgêneros, reveladoras do conhecimento e consciência da importância do SUS para cada um daqueles segmentos que em sua maioria sofrem o processo de exclusão e de preconceito na sociedade.
Não houve oportunidade de realizar debates conceituais de forma mais aprofundada, é verdade, o que aumenta a nossa responsabilidade naquilo que diz respeito a dar consequência não somente ao que foi aprovado no final do evento, mas principalmente no que se refere aos temas estruturantes que necessitam de um encaminhamento definitivo, sob pena de perdermos talvez a última oportunidade que o SUS tem de efetivamente ser colocado nos trilhos de afirmação da proposta histórica da reforma sanitária.
A reiterada defesa de um financiamento adequado e necessário, do SUS livre do perdulário, contraproducente e insustentável processo de privatização, da força de trabalho valorizada, de uma atenção básica estruturada e resolutiva e de um controle social forte, foram o reflexo de uma militância atenta às históricas dificuldades do Sistema, dificuldades que têm se aprofundado ano após ano em consequência de ações e políticas que retroalimentam esse seu processo de desconstrução conceitual.
Temos historicamente uma enorme dificuldade no pós conferência. Realizamos qualificados debates, aprovamos propostas fundamentais, no entretanto tudo acaba ficando apenas como uma mera “carta de intenções” com pouquíssima ou quase nenhuma repercussão nos municípios e estados da Federação. Definitivamente precisamos de um mecanismo de acompanhamento que nos possibilite uma intervenção direta com a finalidade de fazer valer aquilo que foi aprovado e deliberado, transformando os relatórios das respectivas conferências na grande referência a ser seguida pelos conselhos de saúde e pelos movimentos sociais nas três esferas de governo.
Os desafios estão colocados. Para além do “Mais Médicos”, que diga-se, cumpriu e cumpre um papel importante, mas insuficiente enquanto limitado ao ato médico e aprofunda o equivocado modelo médico centrado, o SUS precisa de um “Mais (profissionais de) Saúde”, disponibilizando outros profissionais de forma regionalizada e hierarquizada, possibilitando dessa forma a estruturação da Atenção Básica organizada e resolutiva.
O Farmácia Popular repercutiu significativamente no perfil epidemiológico e na diminuição das internações por agravamento de doenças crônico degenerativas, mas estruturado na lógica da mercantilização pura e simples e sem a atenção e assistência profissional que a política exige, tem, com isso, um custo proibitivo e importantes impactos clínicos e sanitários negativos que necessitam ser equacionados e resolvidos.
Numa mudança que precisa ser imediata, o Programa deve contemplar a rede de estabelecimentos farmacêuticos que compõem a atenção básica nos municípios, com farmacêuticos e profissionais que garantam a assistência farmacêutica plena e qualificada.
As comunidades terapêuticas na saúde mental, as organizações sociais, OSCIPs, fundações de direito privado, serviços sociais autônomos, EBSERH, os ditos “parceiros privados” e congêneres, que se proliferam como metástases de um câncer em todo o país, atentam contra o Sistema, a gerência da sua Rede, sua gestão, a população usuária e os seus(do SUS) princípios. Um amplo e articulado movimento em todo o país deve ser viabilizado com a finalidade de extingui-los política e/ou legalmente.
Todos os serviços da Rede SUS nas três esferas de governo devem ter sua gerência exercida de forma direta, contratualizada diretamente com a respectiva gestão e devem prover de plena autonomia administrativa e financeira com gerentes e gestores definidos nos próprios quadros a partir de critérios previa e legalmente estabelecidos.
A rede privada contratada nos três níveis de atenção e na própria gerência da Rede Pública, que consome a maior parte dos recursos do orçamento do SUS e inviabiliza sua universalidade e integralidade no atendimento, deve ser paulatinamente substituída pela rede própria que, para isso, deve ser ampliada e reestruturada.
Todas as formas de precarização na contratação e na remuneração da força de trabalho devem ser abolidas com a criação e implantação da Carreira Única e Interfederativa do SUS pactuada entre os entes federados das três esferas de governo, com salários iguais por categoria em todo o país, concurso público como forma de ingresso e estímulo financeiro e profissional à dedicação exclusiva, fixação em lugares de difícil acesso e qualificação profissional.
A Atenção Básica é o caminho para a mudança de modelo de atenção e consolidação do SUS, por meio das equipes multiprofissionais estabelecidas de forma regionalizada e hierarquizada, consórcios públicos, policlínicas regionais e estruturação das redes de referência e contra referência, também regionalizadas.
Para que isso possa acontecer de fato, é imperioso um incremento no orçamento do SUS e uma nova forma de financiamento que substitua o equivocado pagamento por procedimento realizado, via Tabela SUS – que estimula a mercantilização e a corrupção -, por contratualizações que definam valores de acordo com as reais necessidades sócio epidemiológicas de cada local, cidade, região ou estado. Para isso, a proposta elaborada pela Associação Brasileira de Economia da Saúde – AbrES é um bom ponto de partida.
O chamado Controle Social do SUS precisa ser aperfeiçoado, ampliado, renovado e oxigenado, superar o corporativismo, o carreirismo e o aparelhamento por grupos e segmentos organizados. A defesa dos princípios basilares do SUS em seus conceitos fundamentais, deve ser a referência para além dos governos e das siglas partidárias.
Apesar dos problemas que sempre acontecem e se repetem em todos os eventos de tamanha envergadura, a 17ª Conferência Nacional de Saúde cumpriu seu papel de mobilizar, articular, aglutinar e debater – mesmo sem ter sido da forma mais aprofundada como se faz necessário – o SUS e o país, seus problemas, contradições, gargalos e desafios, e apontar caminhos e soluções para sua superação. Se amanhã vai ser outro dia, vai depender do nosso empenho e da nossa capacidade de articulação e de arguição, fazendo valer, na prática, o que aprovamos.
(*) Francisco Junior é farmacêutico do SUS no Rio Grande do Norte, ex presidente do Conselho Nacional de Saúde e membro do Setorial Nacional de Saúde do Partido dos Trabalhadores