Por Wladimir Pomar (*)
É muito provável que 2020, ainda mais do que 2019, seja marcado na história brasileira como uma realidade preocupante e, além disso, desafiante. Mesmo porque o governo bolsonarista deve continuar tentando desmontar as poucas conquistas do povo em todos os campos da sociedade brasileira.
No caso da economia brasileira, para que ela realmente melhore, seria imprescindível que o Estado intervisse eficazmente para elevar os investimentos na diversificação e no fortalecimento da produção industrial. Só desse modo as atividades econômicas poderiam crescer e induzir os empresários privados, inclusive estrangeiros, a também investirem, ampliando substancialmente tanto a oferta de postos de trabalho, quanto a produção de riqueza e a ampliação das correntes de comércio.
No entanto, a política econômica comandada pelo Posto Ipiranga não tem em vista a elevação da capacidade produtiva. Deve continuar consistindo em enxugar postos de trabalho, arrochar salários, reduzir as despesas governamentais com os pobres (benefícios diretos, educação, saúde etc), e apresentar saldos positivos irreais nas contas do governo. Portanto, a perspectiva para a maior parte da população, especialmente para os trabalhadores, deve ser ainda pior do que a do final de 2019.
A taxa de desocupação, por mais que seja mascarada pelo esforço de contabilizar como positivos os trabalhadores informais, deve continuar subindo e inflando o número de brasileiros excluídos do mercado de trabalho e/ou subutilizados. Num quadro como esse, a violência urbana e rural tende a ser agravada e se tornar ainda mais letal com a política indiscriminada de segurança pública. E tende, além disso, a servir de pretexto para reduzir os direitos democráticos e consolidar o regime discricionário sonhado pelo bolsonarismo, cujo parâmetro é o AI-5 da finada ditadura militar.
Portanto, para piorar, as reformas econômicas em curso tendem a tornar o 1% da população ainda mais rico, enquanto a maioria pobre e parte da classe média vão ser empurradas para uma pobreza ainda maior. Mesmo porque a subordinação da política externa brasileira às políticas globais norte-americanas também tende a aumentar o déficit do comércio externo com esse país e influir negativamente no quadro econômico brasileiro.
Isso porque a tendência predominante daquela potência é de fechamento comercial e de exclusivismo nas relações com os demais países. O capitalismo estadunidense está em crise estrutural e se torna, cada vez mais, incapaz de praticar políticas eficazes para enfrentar a crescente concorrência internacional nos campos tecnológico e comercial. E encontra dificuldades também crescentes para substituir o desemprego tecnológico por novas políticas de diversificação do uso da força de trabalho humano.
Nessas condições, a atual luta de Trump contra a globalização, movimento implementado pelo próprio capitalismo norte-americano através de suas grandes empresas transnacionais, tem por objetivo fazer com que os Estados Unidos retomem o papel hegemônico que possuíam, explorem ao máximo toda e qualquer nação que aceite tornar-se sua vassala, a exemplo do que pretende Bolsonaro e sua trupe, e recupere sua capacidade produtiva. O problema, neste último caso, é que isso só seria possível se capitalismo estadunidense retornasse ao fordismo dos anos 40, algo extremamente irreal.
De qualquer modo, a sonhada aliança vassala do Brasil com os Estados Unidos tende a se tornar cada vez mais difícil justamente pelos problemas reais enfrentadas pelo imperialismo americano e pelo crescente papel da China na economia mundial. Não por acaso, todas as promessas eleitorais de Bolsonaro contra os chineses acabaram por ser remodelas através do reconhecimento esdrúxulo de que a China comunista é, supostamente, capitalista.
De qualquer modo, mesmo que a China continue comprando parte considerável da produção do agronegócio e investindo na produção industrial brasileira, isso será uma parcela diminuta das necessidades atuais do Brasil. Este, para se reerguer, precisa pelo menos recuperar a capacidade que a indústria brasileira havia alcançado antes que o neoliberalismo de FHC começasse a destrui-la. E isso não faz parte dos planos neoliberais do Posto Ipiranga e da parte majoritária da burguesia nativa.
Além disso, essas interrogações econômicas continuarão povoando as relações entre as diversas correntes burguesas e o bolsonarismo. O que tende a recriar divergências no campo das forças políticas de direita, relacionadas não só com a administração da economia, mas também com a política externa, a educação, a cultura, a liberdade de imprensa e outros itens que influenciam as disputas ideológicas e políticas objetivamente presentes na sociedade brasileira.
Há setores burgueses que viveram a crise do milagre econômico ditatorial, sabem que as condições atuais para qualquer tipo de “milagre” na economia são totalmente diferentes e contrárias às existentes nos anos 1960/70, e temem cair em algo ainda pior do que a crise daquele período. Em vista disso, tais divergências podem continuar desempenhando um papel importante no combate às políticas bolsonaristas, se as correntes ideológicas e políticas de esquerda souberem explorá-las e incentivá-las no espírito de Sun Tsu. Isto é, incentivando as tropas reacionárias a combater entre si, mas jamais supondo-as aliadas.
Além disso, e principalmente, se essas forças da esquerda caminharem para uma unidade estratégica consistente e para unidades táticas diferenciadas. Para isso, a maior parte desse campo político de esquerda também precisará dar menos importância às bizarras trapalhadas bolsonaristas e deixar de lado a suposição de que o fracasso das políticas neoliberais terá o condão de, por si só, derrotar Bolsonaro e companhia em 2022.
Talvez mais importante do que tudo, as forças políticas de esquerda devam considerar como questões chaves a serem resolvidas a avaliação dos erros estratégicos e táticos que as conduziram a desligar-se das grandes camadas populares da população, não considerarem a luta contra a corrupção uma questão estratégica, e desdenharem o socialismo como opção estratégica para realizar o desenvolvimento econômico e social e retirar o Brasil da crise.
Porém nenhuma dessas questões é de simples resolução. Por incrível que pareça, ainda há estúpidos que consideram desnecessário ou puro stalinismo o reconhecimento de erros e sua correção, embora a história esteja cheia, no Brasil e no mundo, de “ismos” que foram enterrados por se negarem a realizar essa operação de reconhecimento e correção dos erros.
Além disso, a reconstrução de laços profundos e permanentes com as grandes camadas populares da população (os trabalhadores, empregados, precarizados e/ou desempregados, e as camadas médias de baixa e média renda) demandam trabalhos constantes de pesquisas, organização e reorganização, e participação ativa em sua vida e em sua luta diária. A luta permanente contra a corrupção demanda tanto a denúncia pública das negociatas da burguesia e de seus representantes políticos, quanto a pressão social sobre o sistema de justiça e a constante verificação e correção internas.
Já a opção socialista como instrumento de desenvolvimento econômico e social exige que o Estado seja reformulado. Primeiro, de modo a se tornar, através de forças produtivas efetivas, um forte concorrente econômico no mercado, um orientador efetivo no processo de desenvolvimento científico e tecnológico das forças produtivas. Segundo, como um agente efetivo na elevação e na redistribuição menos desigual da renda nacional. Terceiro, como impulsionador e facilitador da educação, da saúde, do bem-estar e da cultura da sociedade como um todo.
E, tão importante quanto os itens anteriores, como agente ativo na ampliação dos direitos democráticos, de modo permitir que todo o povo brasileiro participe efetivamente das decisões que dizem respeito à sua atualidade e a seu futuro.
Assim, vistas as perspectivas acima, a realidade brasileira que se descortina para 2020 também é preocupante e desafiante. Por tudo isso, não há como desconsiderar a possibilidade das atuais forças políticas populares e de esquerda do Brasil se verem colocadas diante do mesmo desafio enfrentado um dia pelo imperador romano Júlio César, obrigando-o a reconhecer Alea jacta est!
(*) Wladimir Pomar é escritor e jornalista