Por Gino Genaro (*)
Centro Espacial de Alcântara, no Maranhão • Reprodução/Facebook/INNOSPACE
Há décadas assistimos às autoridades (políticas, militares, científicas), reverberadas pela grande mídia, tecerem loas às inúmeras vantagens da base de lançamento de foguetes de Alcântara, no Maranhão, por anos denominada Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) e, mais recentemente, rebatizada com o pomposo nome de Centro Espacial de Alcântara (CEA). Segundo essas autoridades, as enormes vantagens em relação a outros centros de lançamento de foguetes ao redor do globo, fariam do CLA um dos melhores locais –senão o melhor– para se lançar foguetes na face da Terra. Um amplo conjunto de argumentos utilizados na defesa desta tese pode ser encontrado no artigo “Hora de recuperar a Base de Alcântara“, do economista Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva, cuja íntegra pode ser encontrada AQUI.
Uma análise mais apurada, técnica e, sobretudo, desapaixonada do tema, no entanto, demonstra que há muita desinformação e mitos em torno desta tese. Antes de adentrar no tema específico da Base de Alcântara o autor inicia seu artigo argumentando que “Desde a Constituinte de 1988, por conta de um militarismo fracassado, o Brasil vem adotando uma posição pacifista que perde o sentido na exata medida em que o país ganha relevância internacional” e que “a pequenez imperante na política brasileira (…) nos fez afastar da confecção da bomba atômica, da mesma forma que nos induziu a assinar acordos deletérios como MTCR (Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis) em 1995, limitando o desenvolvimento de foguetes com capacidade de cargas úteis acima de 500kg para mais de 300 km“, e que isso “afeta diretamente o VLS (Veículo Lançador de Satélites, razão de ser da Base de Alcântara)“.
Não vejo como erro o Brasil ter se firmado ao longo de sua história como um país pacífico, defensor da paz, da soberania e da autodeterminação dos povos, contra as guerras e a proliferação de armas de destruição em massa. A decisão de um país de desenvolver e construir uma bomba atômica capaz de ser utilizada em um confronto bélico é tema complexo que mereceria uma análise muito mais aprofundada. Desde as duas primeiras explosões nucleares ocorridas no mundo já se vão 80 anos e, até o momento, ainda se conta nos dedos das mãos os poucos países que investiram recursos bilionários nesta empreitada. Boa parte desses países enveredou por este caminho em um momento muito específico da conjuntura, ao fim da II Guerra Mundial, com as grandes potências que participaram do conflito se movimentando na disputa pelo espólio tecnológico da guerra, em busca de um melhor posicionamento no tabuleiro da geopolítica planetária. Passado este período, foram poucas as nações que ainda resolveram investir em armas nucleares, como China, Índia, Paquistão e Coreia do Norte, todos com problemas históricos de fronteira e risco à sua soberania ou própria existência. Isso explica a opção de o Brasil não ter embarcado nesta onda, preferindo ao invés disso, canalizar seus parcos recursos e esforços para outras áreas, assumindo uma posição contrária à proliferação dessas armas, inclusive como signatário do MTCR, acordo informal entre países com o objetivo de limitar a proliferação de mísseis e tecnologias associadas que possam transportar armas de destruição em massa.
A adesão ao MTCR, em si, não pode servir de desculpa para que o Brasil não tenha conseguido desenvolver, depois de quase meio século, um foguete capaz de colocar um satélite em órbita da Terra, seja com o VLS, seja com outros foguetes menores, como o VLM (Veículo Lançador de Microssatélites). O MTCR não impõe óbice a que os países signatários sigam investindo em suas próprias tecnologias de mísseis e foguetes, sem qualquer limitação de altitude ou de massa da carga útil. O que o acordo não permite é que eventuais países interessados recebam essas tecnologias dos demais países que já as detêm.
Neste sentido, o fato de o Brasil ter abdicado do seu programa VLS sem concluí-lo guarda pouca ou nenhuma relação com o fato de o país ser signatário do MTCR, fato que, aliás, pode até ter contribuído para o Programa Espacial Brasileiro (PEB), já que a adesão ao MTCR foi o que possibilitou a que o país passasse a ter acesso à importação de componentes eletrônicos e mesmo subsistemas complexos, como os de navegação e controle, tecnologia que ainda hoje o país não detém. Portanto, o VLS sofreu mais por ter tido seu início antes de o Brasil aderir ao MTCR, enfrentando embargos e isolamento tecnológico, do que o VLM, que já foi planejado dentro do regime, permitindo cooperação internacional e alinhamento com normas de não-proliferação.
Em seguida o autor critica o fato de o Brasil ter celebrado com os EUA o chamado Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST), em 2019, para viabilizar o uso comercial da Base de Alcântara. Novamente, neste aspecto, a adesão a acordos de salvaguarda tecnológica guarda muitas semelhanças em relação à adesão ao MTCR. Esses acordos nada mais são do que cláusulas de entendimento entre países que se relacionam tecnologicamente, no sentido de que cada parte tenha o direito de, não apenas proteger sua própria tecnologia, mas garantir que não tentará absorver, sem consentimento, as tecnologias da outra parte envolvida.
Por mais que as cláusulas do AST celebrado entre Brasil e EUA possam colocar em risco a soberania do país sobre parte do seu território, o que se deve questionar, antes de tudo, são as razões que levaram o país a assinar tal acordo, no caso, a intenção de transformar a base de Alcântara em um centro comercial de lançamento de foguetes de outras nações, como por exemplo ocorre na base de Kourou, na Guiana Francesa, que além de servir de base de lançamento dos foguetes da Agência Espacial Europeia (ESA) serviu, antes da guerra Rússia-Ucrânia, para lançamentos do foguete russo Soyuz. A Rússia somente concordou em operar seu foguete a partir de Kourou porque tinha a garantia de que nenhuma tecnologia nele embarcada seria absorvida pelos europeus durante as campanhas de lançamento. Neste sentido, o Brasil possui outros AST celebrados com outros países, como Ucrânia (quando se pretendia lançar o foguete Cyclone 4 a partir de Alcântara) e China, por conta da cooperação no programa CBERS (Satélite Sino-Brasileiro de Recursos Terrestres).
Portanto, a celebração de AST entre países é algo natural. No caso do AST com os EUA, o problema está justamente no motivador, a saber, a ideia de que se possa transformar a Base de Alcântara em um lucrativo centro de lançamento comercial operacional para foguetes estrangeiros. Não há centro de lançamento de foguetes ao redor do mundo que seja lucrativo. Para alcançar o objetivo de ao menos ter um centro de lançamento operacional, o país terá de investir centenas de milhões de dólares em infraestrutura (estradas, torres de lançamento, reservatórios de propelentes, porto, etc.), além de se sujeitar a regras ultrarrestritas de acesso a partes da base nos períodos em que a mesma estiver sendo utilizada por esses países. Ao final das contas, a persistir essa antiga ideia, o Brasil precisará subsidiar a operação do centro o que, indiretamente, significa subsidiar o desenvolvimento de programas espaciais estrangeiros. Até o presente, os proponentes da ideia não apresentaram um plano mínimo de negócios que permita concluir pela viabilidade econômica da empreitada.
O autor comenta que “Até Musk quer lançar satélites a partir de lá [Alcântara], pois é de longe o melhor sítio para atividades espaciais“, argumentando que, pelo fato de a base estar localizada próxima à linha do Equador, em grande parte voltada para o mar e em região de temperaturas amenas, a economia de combustível, de energia para sistema anticongelamento e as amplas possibilidades de inclinação de órbita tornariam o lugar “alvo de extrema cobiça“.
Aqui cabem algumas considerações acerca das tão propaladas vantagens da Base de Alcântara em relação a outras bases de lançamento ao redor do mundo. Em primeiro lugar, cabe destacar que nem sempre a economia que se tem em massa de combustível durante o lançamento de um foguete a partir de regiões de baixa latitude (próximas à linha do Equador) é fator determinante para uma missão. Isso porque, além do consumo de combustível, há outros fatores tão ou mais relevantes para o lançamento, como a infraestrutura da base, que exige galpões climatizados com dimensões suficientes para abrigar cargas úteis e integrar foguetes de mais de 100 metros de comprimento, pontes rolantes de alta sensibilidade para operar cargas de dezenas de toneladas, tanques enormes capazes de armazenar propelentes sob alta pressão e baixíssimas temperaturas, torres de lançamento móveis, sistemas de rastreio sofisticados, além de um forte aparato de segurança que possibilite a circulação de centenas de técnicos por estas áreas sem expô-los a um nível de risco acima do aceitável.
Além disso, a depender do tipo de missão e de órbita, a vantagem de o local de lançamento estar próximo ao Equador se converte em uma desvantagem, como no caso das órbitas sol-síncronas, como a dos satélites CBERS que o Brasil desenvolve com a China, onde, pelo fato de o ângulo de inclinação ser maior que 90º (órbita retrógrada), o foguete é lançado na direção Oeste, portanto, contrário ao sentido de rotação da Terra. Neste caso, somente após vencer a velocidade de rotação da Terra para Leste é que se começará a computar o ganho de velocidade orbital. Atualmente, nem mesmo a inclinação da órbita tem sido mais limitação, independente das possibilidades de lançamento ofertadas pela base, já que os modernos foguetes possuem potência e combustível suficientes para ajustar, em voo, a inclinação da órbita desejada. Finalmente, para quem acompanha minimamente a geopolítica planetária, Musk não é um parceiro confiável.
Isso, aliás, explica o porquê de os EUA sempre terem lançado seus foguetes, em particular as missões mais complexas e tripuladas, a partir de seu próprio território, apesar de poderem alugar qualquer outra base mais vantajosa em outros locais do planeta, incluindo Kourou, muito próxima ao CLA.
Tudo isso para reforçar que 1) sim, o Brasil precisa avaliar bem as vantagens e desvantagens de estabelecer AST com os diferentes países; 2) a decisão do país em aderir a tratados de não-proliferação de armas de destruição em massa mais ajuda do que atrapalha o desenvolvimento de seu programa espacial; 3) o esforço e o nível de investimento exigidos para se converter Alcântara em uma base comercial de lançamento não apenas não se sustenta do ponto de vista econômico, como desvia recursos e esforços das atividades estratégicas do Programa Espacial Brasileiro; 4) sim, a Base de Alcântara apresenta vantagens importantes em relação a outros locais de lançamento, mas nada que impeça ou dificulte as grandes potências espaciais de operar de seus próprios territórios ou de qualquer outro lugar da Terra, e, finalmente, 5) o fato de o Brasil estar “patinando” em seu programa espacial por décadas tem mais a ver com os erros e desmandos de seus governos do que com qualquer boicote ou retaliação de outros países.
(*) Gino Genaro é doutor em Engenharia Mecânica, tecnologista sênior do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e militante do Partido dos Trabalhadores em São José dos Campos-SP.
Uma resposta
Excelente artigo, que aponta para realidades que muitos teimam enxergar.