SUS, “realismo capitalista” e o risco de um sistema público para pobres

Por Roberto Mardem Soares Farias (*)

A Portaria GM/MS nº 9.760, de 26 de dezembro de 2025 expõe um dilema que vai muito além do ato normativo em si. Ela toca num ponto mais profundo: o modo como estamos aceitando, quase como algo “natural”, a construção de um sistema de saúde dual no Brasil – um SUS para os pobres e um crescente setor privado (incluindo filantrópicas e OSs) para quem pode pagar, subsidiado de múltiplas maneiras pelo próprio fundo público. Esse tema é tratado no texto denominado “Portaria da Morte No Natal do Ministro da Saúde para o SUS “, com o qual tenho bastante concordância, embora ache um exagero o título “Portaria da Morte”.

De antemão informo que este texto é mais baseado em achismos e emoções, particularmente num certo sentimento ambíguo: o de achar que construímos a melhor política pública do Brasil e ao mesmo tempo uma grande frustração de ser usuário do SUS (não tenho plano) e de sempre que preciso dele (ou a minha família), sair com a sensação muito ruim e me perguntando por que não fiz o meu seguro de saúde. Inúmeras vezes tive que pagar por atendimento privado por não conseguir o melhor ou no tempo hábil no SUS. E, baseado em achismo e emoções, como continuo socialista (um quase anarquista, se isso existe), concluindo que é impossível construir o SUS do meu sonho numa estrutura capitalista.

Acredito que o Programa Agora Tem Especialistas, instituído pela Lei nº 15.233/2025, nasce como resposta a um problema grave e real: o não acesso à atenção especializada, agravado pela pandemia de COVID-19 e pela política genocida e destruidora do governo Bolsonaro. Mas considero importante frisar que este problema é antigo e não uma urgência. Se piorou com a pandemia e com o governo do ogro, já existia antes e o SUS não deu conta de resolvê-lo. Fingir que essas filas, esperas e sofrimentos não existem é igualmente inaceitável. Então, como criticar sem cair numa negação da realidade concreta? E como apoiar iniciativas de correção de rumos sem naturalizar o caminho da privatização e da dualidade? É nessa ambiguidade que tento me equilibrar

  1. Problema real x correção estrutural da desigualdade

O ponto de partida é reconhecer duas verdades simultâneas:

  1. Há um problema real de acesso à atenção especializada. Milhões de pessoas esperam por consultas, exames e cirurgias. Isso foi agravado ( e é…):
    • pela austeridade crônica e o subfinanciamento histórico do SUS;
    • pela pandemia de COVID e o colapso de serviços;
    • pelos anos Bolsonaro, que fragilizaram ainda mais a rede pública, os vínculos de trabalho e a capacidade de gestão do SUS.
    • E um outro problema estrutural que pouco aparece nas avaliações das dificuldades: a insuficiência da atenção primária em todo o Brasil (insuficiência de equipes, insuficiência de pessoal, e – importante colocar o dedo na ferida – uma grande porção de trabalhadores que não se comprometem de fato com a saúde das pessoas sob cuidado – parte dos problemas da atenção poderia ser resolvida com mais empatia e vínculo real – tema para outro “artigo”). Continuo acreditando que a APS é ordenadora da rede – sem ela suficiente, efetiva e humanizada é muito mais difícil resolver os outros problemas.

2.A forma como essa urgência vem sendo enfrentada – via incentivos crescentes, contratos, convênios e subsídios a entidades privadas, filantrópicas ou “sem fins lucrativos”, muitas vezes em lógica de mercado – reforça um padrão estrutural: o desmonte silencioso da ideia de um sistema público, universal e fortemente estatal, substituído por uma teia complexa de prestadores privados ancorados no fundo público.

A portaria 9.760/2025, ao destinar recursos vultosos a entidades filantrópicas e ao Teto MAC, se insere nessa lógica. Ela responde a um problema real (a fila, a dor, a morte evitável), mas o faz reforçando o caminho que alimenta o sistema dual: de um lado, o SUS cada vez mais “comprador de serviços”; de outro, a capilaridade política e econômica do setor privado saindo fortalecida.

O artigo que chama isso de “portaria da morte” erra, a meu ver no título e numa perspectiva que não deixa o benefício da dúvida sobre as “boas intenções” – sem ironia – do Ministério da Saúde e do Governo Lula.  Porém, a meu ver, ele acerta num ponto decisivo: se mantido esse rumo, o destino é um SUS estruturalmente apartado – um SUS, ainda que absorvendo as melhores tecnologias médicas e de saúde, para pobres, subfinanciado, que convive com um setor privado robusto, sustentado, em boa medida, com recursos do próprio SUS – vide os inúmeros estudos que demonstram essas transferências, diretas e indiretas.

E está por ser demonstrado que essa forma de resolver o problema das especialidades irá de fato funcionar – como estou no campo do achismo, acho que não. Aqui em Campinas, por exemplo, sei que DOIS especialistas foram contratados por conta do programa – ou seja, NADA. É isso – corremos o risco de nadar e morrer na praia.

  1. O “realismo capitalista” e o “realismo sanitário”

A leitura do Mark Fisher sobre o “realismo capitalista” ajuda a entender por que esse caminho parece tão “natural” para muitos, até mesmo entre progressistas (e muitas vezes me sinto assim…). Fisher mostra como o capitalismo se consolidou não apenas como sistema econômico, mas como horizonte de realidade: parece mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. Está tão entranhado no coração e mente da maioria das pessoas, o que faz parecer qualquer alternativa apenas como utopia.

Nas políticas de saúde, algo semelhante se construiu: um “realismo sanitário”. Ele se expressa em frases como:

  • “Não há como o Estado dar conta de tudo.”
  • “O importante é atender; não importa se é público ou privado.”
  • “O SUS é ótimo, mas precisa do setor privado para funcionar.”

Esse “realismo sanitário” funciona como a versão setorial da ideia de que “não há alternativa”. A população progressista de classe média, mesmo defendendo o SUS em tese, naturaliza que “o melhor” é complementar com plano privado, com filantrópicos, com OSs. Critica “abusos”, mas raramente questiona a arquitetura de fundo: o uso sistemático do recurso público para sustentar um arranjo híbrido que, na prática, esvazia a ambição de um SUS verdadeiramente universal, robusto e de uso preferencial por todos.

O efeito psicológico é perverso:

  • A classe média progressista defende o SUS, mas se organiza para fugir dele na prática – sobretudo na atenção especializada e hospitalar.
  • Os pobres defendem o SUS porque “ruim com ele, pior sem”; não porque lhes é dado enxergar, experimentar ou desejar um SUS de alta qualidade, que também seja usado pela classe média.
  • A transformação de curto prazo vira sempre “puxadinho” emergencial, e qualquer crítica estrutural é taxada de “irrealista”, “radical demais” ou “incompatível com as restrições fiscais”.

É aqui que a frase comentada por Stephanie Borges, a partir de Fisher, cai como uma luva para o SUS:

“A premissa de que não há alternativas para viver em sociedade ou maneiras diferentes de conduzir a economia fora do capitalismo é uma estratégia para limitar as nossas opções.”

No campo da saúde, a premissa de que “não há alternativa” a um SUS subfinanciado, combinado a um setor privado complementar (e cada vez mais estrutural) funciona para limitar o imaginário político. Faz com que mesmo quadros progressistas passem a ver como “natural” e “inevitável” a dualidade: um SUS competente, mas de difícil acesso, e um setor privado, cada vez mais estruturado com incentivos estatais, como a porta de saída para quem pode.

  1. um SUS competente… para quem?

O SUS não é mais, como no início se dizia, “um SUS pobre para pobres”. Ele é, hoje, um sistema:

  • competente em muitas áreas (imunização, transplantes, regulação sanitária, vigilância epidemiológica, algumas redes especializadas);
  • tecnicamente referenciado internacionalmente;
  • com trabalhadores e trabalhadoras altamente qualificados, embora em grande parte – particularmente dos médicos – tomando o SUS apenas como “bico”.

O problema central, portanto, não é apenas “qualidade técnica”, mas “acesso e equidade”. A pergunta que precisamos radicalizar é:

Queremos um SUS que a classe média deseje usar, ou aceitamos um SUS que a classe média defenda em discursos, mas continue evitando na prática?

Porque enquanto a resposta concreta – medida em comportamento real – for a segunda, estaremos, na prática, consolidando um SUS para pobres. Não um SUS “ruim”, mas um SUS:

  • com filas enormes;
  • com acesso fragmentado;
  • com oferta insuficiente de atenção especializada;
  • com setor privado capturando as camadas mais rentáveis da atenção (diagnóstico de alta tecnologia, procedimentos especializados, internações complexas) com financiamento direto ou indireto do Estado.

Portarias como a 9.760/2025 podem ser lidas como:

  • resposta emergencial legítima a uma fila intolerável;
  • e, ao mesmo tempo, mecanismo de reforço desse padrão, ao canalizarem recursos para prestadores privados/filantrópicos, sem alterar o desequilíbrio estrutural da rede pública própria.

Fico mais com a segunda alternativa.

  1. Arcabouço fiscal, pisos e o bloqueio da imaginação

Outro ponto central das minhas premissas é o efeito combinado:

  • do arcabouço fiscal;
  • da ameaça aos pisos mínimos de saúde e educação;
  • do histórico de EC 95 (teto de gastos) e de outras regras de austeridade.

Essas normas não são neutras. Elas produzem um ambiente em que qualquer proposta de financiamento robusto para o SUS é carimbada como “impossível”, “fiscalmente irresponsável”, “anti-realista”. Assim como no “realismo capitalista”, o realismo fiscal se soma ao realismo sanitário para criar um cercado mental: dentro dele, só cabem soluções “técnicas” de gestão, “eficiência”, parcerias com o setor privado, “otimização de gastos”, etc. Não sou economista, mas me pergunto: tem que ser assim mesmo? Lendo outros economistas, sociólogos, pesquisadores do SUS (vide o Jairnilson Paim), tendo a achar que não – são saídas que talvez possamos tachar de social-democratas (para sermos bonzinhos e não tachá-las de neoliberais), mas longe do campo socialista.

Nesse ambiente, a classe média progressista que até defende mais recursos para o SUS, na prática:

  • acomoda-se à ideia de que não haverá virada estrutural de financiamento;
  • deposita suas esperanças em iniciativas pontuais de “melhoria da gestão”, “mais especialistas”, “mutirões”, “parcerias”;
  • aceita, quase sem perceber, que o limite da política é esse: remendar o SUS para que ele seja menos ruim para os pobres, sem nunca o tornar um projeto de bem-estar universal, no “coração e mente” de todos.

Isso produz o conformismo que me incomoda – e que, me pergunto: é um problema apenas psicológico ou, a rigor, não é só psicológico, mas profundamente político?

  1. Entre a luta fratricida e a crítica necessária: como situar a portaria

Ao olhar para a Portaria 9.760/2025 e o Programa Agora Tem Especialistas, há pelo menos dois níveis de análise:

    1. Nível da urgência concreta
      • As filas são reais.
      • A população sofre e morre por falta de acesso à atenção especializada.
      • É legítimo e necessário que o Ministério da Saúde tome medidas agilizadas, com recursos significativos, para ampliar oferta.
    2. Nível da estratégia de fortalecimento do sistema público de Saúde
      • A portaria está inscrita num projeto de transição para um SUS mais público, universal e de uso também pela classe média?
      • Ou está ajustando/aperfeiçoando a engrenagem do sistema dual, tornando-o mais gerenciável, mais eficiente, mas mantendo o núcleo: público subfinanciado + privado fortalecido?

A luta fraticida surge quando o debate fica preso no primeiro nível (urgência) e no plano moral (acusação ou defesa), sem conseguir articular a crítica estratégica do segundo nível. Por outro lado, ignorar a urgência concreta e tratar a portaria como se fosse apenas expressão de “má-fé” é igualmente problemático. Prefiro achá-la equivocada – e aí talvez esteja considerando que um governo nosso não possa estar agindo de má fé.

A crítica consequente precisa fazer as duas coisas ao mesmo tempo:

  • reconhecer a urgência do acesso e o mérito de tentar enfrentá-la;
  • denunciar o risco de que, ao fazê-lo com determinadas ferramentas (filantrópicos, compras de serviços, subsídios), o governo reforce o padrão de sistema dual.
  1. Como pensar alternativas: além do “não há outra opção”

Se aceitarmos que “não há alternativa”, o SUS estará condenado a ser esse sistema “competente, mas em falta” – eficiente no que faz, mas sempre aquém das necessidades, sempre remendando, sempre dependendo do setor privado.

Para romper com isso, é preciso recolocar no centro da agenda algumas linhas de disputa:

    1. Financiamento e regras fiscais
      • Reconstruir a luta pela revogação ou profunda revisão do arcabouço fiscal no que diz respeito à saúde e educação.
      • Defender pisos robustos e dinâmicos para o SUS, vinculados à capacidade real da economia, e não a tetos artificiais.
      • Vincular a crítica ao “realismo fiscal” à defesa de um projeto de bem-estar que inclua educação, renda, redução das iniquidades, entre outras – ou não haverá SUS que dê conta.
    2. Prioridade à rede pública estatal própria
      • Condicionar políticas emergenciais (como Agora Tem Especialistas) a uma estratégia explícita de fortalecimento da rede pública: investimento em hospitais públicos, concursos, carreiras do SUS, ampliação da capacidade instalada estatal.
      • Revisar o papel e os limites das filantrópicas e prestadores conveniados, estabelecendo metas de redução progressiva da dependência em áreas onde for possível.
    3. SUS desejável também para a classe média
      • Trabalhar com a ideia de que o SUS só será politicamente protegido se for efetivamente usado e desejado também pela classe média.
      • Isso inclui:
        • encurtar filas em áreas simbólicas (oncologia, cardiologia, oftalmologia, traumato-ortopedia, saúde mental);
        • garantir qualidade percebida (acolhimento, resolutividade, infraestrutura);
        • construir experiências concretas onde utilizar o SUS não seja “sacrifício”, mas escolha racional mesmo para quem poderia pagar plano.
    4. Desmontar o “realismo sanitário” no discurso público
      • Produzir narrativa que confronte a ideia de que “o SUS nunca poderá ser suficiente” e de que “sempre precisaremos do setor privado para complementar” – mostrando que essa não é uma lei natural, e sim uma escolha política.
      • Articular o SUS com outras agendas de proteção social (renda, moradia, trabalho) para que ele seja visto como parte de um projeto civilizatório, não como política compensatória.
  1. Meu lugar nesse debate: a perplexidade como ponto de partida, não de chegada

Muitas vezes me sinto “perdido” porque, intuitivamente, percebo o paradoxo:

  • De um lado, defender medidas que aliviem o sofrimento imediato da população –aprovar convênios com duplas portas, uma Saúde Mental, em Campinas, durante mais de 30 anos desenvolvida pelo Cândido Ferreira, e, nisso, programas como o Agora Tem Especialistas parecem “inevitáveis”.
  • De outro, não aceitar que a única alternativa seja ajustar o SUS para ser um sistema público de difícil acesso, enquanto o setor privado cresce à sua sombra.

O desafio talvez seja formular, nos espaços de militância (como o setorial de saúde do partido, os coletivos de discussão, os conselhos de saúde), algumas perguntas incômodas, porém necessárias:

  • Como transformar programas emergenciais em degraus de fortalecimento da rede pública, e não em amarras adicionais ao setor privado?
  • Que reformas de financiamento e de governança precisamos recolocar na pauta para que um SUS universal e robusto volte a ser imaginável?
  • Que alianças sociais precisamos construir para que a classe média progressista não apenas “defenda” o SUS, mas pressione por um SUS que ela mesma queira usar?
  • Como, antes de mais nada (ou ao mesmo tempo?) fortalecer a atenção primária e impedir a sua privatização, o que já vem ocorrendo com força em vários municípios?

A tarefa é muito difícil: sustentar simultaneamente a defesa do SUS real (com suas urgências) e a recusa em aceitar que “não há alternativa” a esse arranjo que, passo a passo, o condena a ser um sistema competente, mas para pobres.

(*) Roberto Mardem Soares Farias é médico pediatra e sanitarista, mestre em Saúde Pública, aposentado da Secretaria Municipal de Saúde de Campinas, onde exerceu vários cargos de direção. Atualmente Coordenador da Secretaria Executiva do Conselho Municipal de Saúde

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