Por Valter Pomar (*)
Mais de 35 mil brasileiros e brasileiras já morreram, em grande medida por responsabilidade direta do que faz e do que deixa de fazer o governo Bolsonaro.
Nos próximos dias, semanas e meses, a situação tende a se agravar, uma vez que prevaleça a política do mesmo governo Bolsonaro, a saber: acabar com o isolamento.
A política de “imunização de rebanho” trará como efeito colateral a morte (melhor seria dizer, assassinato) de um número ainda maior, havendo quem fale em centenas de milhares de vítimas!
Se sobre o número há dúvidas, não há dúvidas sobre o motivo do crime (lucro) e sobre o perfil das vítimas (trabalhadores, moradores de periferias, negros e negras, mulheres, trabalhadores em idade de se aposentar e aposentados).
É um genocídio de raça, de gênero, de classe, geracional e com territorialidade definida.
A crise sanitária aprofundou o que já vinha de antes: uma brutal crise social, econômica, ambiental, psicossocial e política.
Cresceu muito e vai crescer mais ainda o número de pessoas sem teto, sem fonte de renda, passando fome e todo tipo de dificuldade.
Inclusive porque a queda na atividade econômica, mais os efeitos da EC95 e da política pró-finanças do governo Bolsonaro, faz com que mesmo os governos estaduais e municipais que pretendam desenvolver políticas sociais, tenham menos recursos para minorar os efeitos da catástrofe em marcha.
Cresceu muito e vai crescer mais ainda a recessão-depressão econômica. Não de todos, pois há setores da economia lucrando muito, como é o caso de certos exportadores, dos capitalistas do agronegócio e da mineração, dos especuladores.
Ademais, os capitalistas que não estão quebrando, é porque geralmente escolheram esfolar a pele da classe trabalhadora, submetida a condições de trabalho ainda piores, mesmo que às vezes elas venham disfarçadas na embalagem supostamente romântica do home office.
Cresceu muito e vai crescer mais ainda, também, a guerra de posição dos mineradores e fazendeiros contra a legislação e as áreas de proteção ambiental e indígena. Afinal, como disse certo canalha, numa assembleia de canalhas, é preciso aproveitar que as atenções estão voltadas para os funerais para “passar a boiada”.
Cresceu muito e vai crescer mais ainda, o sofrimento mental de dezenas de milhões de brasileiros. O medo da doença, do desemprego, da fome, da morte; o discurso e a prática da violência, o fundamentalismo, o racismo, a homofobia, a misoginia, o feminicídio.
O estresse individual, aumentado por toda a situação e pela pressão dos “novos” métodos e ambientes de trabalho, amplia o estresse social e aponta para explosões de fúria individuais e coletivas.
Cresceu muito e vai crescer mais ainda a crise política. Não começou agora, mas se aprofundou, devido às contradições causadas (no seio do povo e no seio das elites) pela pandemia e pelo conjunto da obra do governo cavernícola.
É nesse contexto que se travam, na esquerda, vários debates importantes, entre os quais o acerca das frentes e outro acerca das mobilizações. São dois debates diferentes, mas intimamente vinculados. A questão de fundo é: por quais caminhos poderemos nos livrar do cavernícola?
Alguns seguem acreditando que isto possa ocorrer apenas em 2022, embora fique cada dia mais claro que nada garante que chegaremos inteiros nesse futuro tão distante. Assim como nada garante que, caso consigamos chegar em 2022, Bolsonaro não crie as condições para um segundo mandato.
Alguns seguem acreditando que só é possível se livrar de Bolsonaro, em aliança com uma parte dos que entregaram a presidência ao cavernícola.
Para os que defendem este ponto de vista, dependeríamos, portanto, de parte dos que ajudaram a derrubar Dilma em 2016; dos que aplaudiram a condenação, prisão e interdição de Lula em 2018; dos que apoiaram ou lavaram as mãos no segundo turno das eleições presidenciais; dos que reclamam de Bolsonaro mas defendem Guedes; dos que mandam a PM matar pobres e negros, mas reclamam da truculência do clã.
Como disse alguém, precisamos que 5 milhões deles mudem de posição. Além da lógica estritamente eleitoral, além da suposição de que os 5 milhões seriam atraídos do lado de lá por obra e graça de aliados mequetrefes, o citado raciocínio esquece dos mais de 20 milhões que não votaram, grande parte dos quais trabalhadores e trabalhadoras que se decepcionaram com a esquerda e que deveriam ser nossa prioridade reconquistar.
Estes que pensam em 2022 e/ou que acreditam que dependemos de aliados na centro-direita protagonizaram, nos últimos dias, o manifesto Juntos, aquele que parece, mas não é.
Recomendamos a quem duvidar, que busque, no citado manifesto, a palavra Bolsonaro ou impeachment. Não se achará. Mas se achará apelos em favor da lei e da ordem.
Qual a alternativa a isto? Uma delas é a que está detalhada na declaração “Só a luta impedirá a catástrofe”: uma frente de esquerda, que de imediato lute pelo fim do governo Bolsonaro-Mourão-Guedes, devolvendo-se ao povo a decisão sobre quem deve dirigir o país.
Mas esta frente de esquerda será apenas um pedaço de papel, se ela não for acompanhada de mobilização real da classe trabalhadora, se as ruas não forem ocupadas pelas forças democráticas, populares e socialistas.
Entretanto, como fazer isso, em tempos de pandemia? Como pode a esquerda chamar o povo às ruas, quando somos exatamente nós que temos defendido a quarentena? Este é o segundo debate destes dias.
Neste debate, a direita já se posicionou claramente. Segundo ninguém mais, ninguém menos do que o General Mourão, os manifestantes seriam “delinquentes”, “ligados estão ao extremismo internacional”, “baderneiros” que devem ser “conduzidos debaixo de vara às barras da Lei”. E quem aplaude as manifestações estão pretendendo “incendiar as ruas do País, como em 2013” ou “ensanguentá-las, como aconteceu em outros países”.
Ou seja, os que defendem quebrar o isolamento social, não admitem que ele seja quebrado para lutar contra eles.
Assustado e preocupado com isso e com muito mais, o sociólogo Luiz Eduardo Soares (entre outros) resolveu fazer um “apelo”: “Se vocês forem às ruas, por mais organizados que estejam, não conseguirão impedir que provocadores façam o que Bolsonaro espera desde a posse. Se vocês forem às ruas, e eu adoraria que fossem e eu estaria junto com vocês, em condições normais, não só vão ajudar a propagar o vírus em nossos grupos, como vão oferecer a oportunidade que os fascistas aguardam, ansiosamente, e que têm sistematicamente estimulado”.
Ou seja: quem for as ruas, mesmo com as melhores intenções, estaria propagando o vírus e oferecendo o pretexto para um golpe.
Qual a alternativa que Luis Eduardo Soares nos propõe? Segundo ele próprio, só “faz sentido ir para o confronto se a correlação de forças permitir, ou poderemos sofrer uma derrota histórica, um banho de sangue e um golpe”.
É fato que há riscos: à saúde dos manifestantes, riscos de infiltração e provocação, riscos de repressão imediata e criminalização posterior. Sem falar no risco político, apontado por muitos, a saber: a esquerda que defende a quarentena, poderia estaria legitimando indiretamente a posição de Bolsonaro, que defende exatamente quebrar o isolamento.
Porém, o que temos feito até agora está sendo suficiente? Estamos conseguindo deter a escala de mortes devido ao Covid19? Estamos conseguindo manter as políticas de isolamento? Estamos conseguindo defender os direitos sociais e políticos da classe trabalhadora? Estamos conseguindo avançar na luta para derrubar o governo Bolsonaro? Estamos conseguindo reduzir a escalada autoritária e as ameaças golpistas? É possível fazer isso ou parte disso, sem reocupar as ruas?
A resposta para todas estas questões é negativa. A situação geral não está melhorando. Portanto, é preciso mudar a tática. É preciso combinar a resistência que já estamos fazendo, com uma ampliação de nossa presença nas ruas. O que inclui não apenas manifestações, mas atividades de vários tipos, inclusive de diálogo organizado e solidário com os setores da população que estão sendo as principais vítimas da pandemia.
Não se trata, é verdade, de uma decisão fácil. Envolve legítimas decisões pessoais, envolve considerar as diferenças que há dentro da classe trabalhadora, envolve considerar as diferenças territoriais e as respectivas políticas municipais e estaduais, envolve saber se há setores de massa dispostos a enfrentar o desafio e os riscos, envolver decidir o que deve ou não deve ser feito em atividades exclusivamente de vanguarda. Etc.
Mas mesmo sendo uma discussão complexa e difícil, é preciso travar esta discussão com absoluta urgência, pois – repetimos – a tática atual não é mais suficiente. E, ao que tudo indica, será atropelada pelas circunstâncias.
Além de não ser suficiente, é uma tática que não leva em devida conta um detalhe fundamental: para uma parte importante da classe trabalhadora, o isolamento simplesmente não existe. Seja por morarem em condições precárias, seja por terem que se locomover em transportes cheios e por longas distâncias, seja por terem que trabalhar todo santo dia, seja porque os governos não dão apoio nenhum e ainda estimulam a quebra do isolamento, seja pelos motivos que forem, para uma parte da classe trabalhadora não há isolamento.
E especialmente para os que estão nesta situação, vale a pergunta: trabalhar pode, lutar não?
Por fim: os Estados Unidos hoje, para não falar do Chile e de outros países, demonstram que a caldeira pode explodir, nos lugares, nas horas e pelos motivos mais diversos. Aqui no Brasil pode ocorrer o mesmo. Melhor que nos preparemos para isso. Pois o outro lado já avisou estar preparado.
(*) Valter Pomar é professor da UFABC e membro do Diretório Nacional do PT