A deturpação do conceito de socialismo

Por Lucas Rafael Chianello (*)

Horas depois de Bernie Sanders anunciar sua desistência da candidatura a presidente dos EUA pelo Partido Democrata, o histórico e respeitável camarada Joaquim Ernesto Palhares, editor-chefe da Carta Maior, publicou um editorial intitulado “A Alternativa é o Socialismo”.

Porém, após prestar contas sobre o recrutamento de contribuintes para a Carta Maior, anunciar a criação da seção Arqueólogo do Futuro e a elaboração de uma nova aparência da página, data maxima venia, como dizemos em direito (o inconveniente autor deste texto é um advogado), o camarada Joaquim Ernesto Palhares nada mais fez que uma análise de conjuntura sobre a desistência de Bernie Sanders à Casa Branca, sem de fato discorrer sobre a atualidade da luta pelo socialismo.

O senador por Vermont, que se auto intitula um “socialista democrático”, nada mais é que um social-democrata na mais pura acepção clássica do termo, de modo que ao defender suas plataformas governamentais sempre se refere ao bem-estar social dos países escandinavos, capitalistas, como modelo, por exemplo, de educação e saúde pública, enquanto não perde a oportunidade de criticar uma suposta ausência de liberdades nos regimes socialistas propriamente ditos “apesar dos avanços sociais obtidos” por essas experiências.

Com o perdão da palavra, é muito triste a “estadunidencização” do conceito de socialismo pelo camarada Joaquim Ernesto Palhares, algo que negativamente se incorpora cada vez mais no discurso de significativa parcela da esquerda brasileira e faz com que partidos de esquerda brasileiros se tornem cada vez mais “franksteins” do Partido Democrata ao invés de modelos de organizações socialistas do século XXI.

O mesmo Partido Democrata que estava na presidência dos Estados Unidos nos golpes de 1964, contra João Goulart, e de 2016, contra Dilma Rousseff; o mesmo partido de Sanders e da deputada de origem latina Alexandria Ocasio-Cortez (citada por Palhares como futuro promissor), que defenderam a entrada de “ajuda humanitária” na Venezuela numa tentativa de golpe do autoproclamado Guaidó.

O fato da receita sobre a crise de 1929 ter sido o chamado New Deal, baseado na premissa keynesiana de intervenção estatal na economia, faz com que muitas pessoas naturalizem o padrão estadunidense de que a mínima intervenção regulatória seja socialismo e comunismo, quando na verdade as grandes revoluções socialistas do século XX (Rússia/União Soviética, China, Coreia do Norte, Vietnã e Cuba) aplicaram políticas econômicas distintas do New Deal.

A “estadunidencização” do conceito de socialismo, por exemplo, leva muitas pessoas a crer que o socialismo moderno defende a taxação das grandes fortunas, quando na verdade implantar o socialismo significa, em qualquer tempo da história, promover uma sociedade onde não haja grandes fortunas.

A “estadunidencização” do conceito de socialismo, para se chorar a morte da campanha presidencial de Bernie Sanders, leva a crer que todos podem ter as mesmas chances de estudarem numa universidade se houver financiamento da dívida estudantil, bem como dos mais pobres frequentarem um médico caso haja a oferta pública do serviço, quando na verdade uma sociedade socialista preza pelo fim da concorrência pública e privada entre a educação e a medicina e haja apenas o monopólio público desses serviços para que se impeça a exclusão social.

O título do editorial escrito pelo camarada Joaquim Ernesto Palhares é fato consumado.

Porém, em suma, o socialismo é a conquista do poder político pela classe trabalhadora mediante a socialização dos meios de produção e com isso o monopólio estatal da oferta de serviços essenciais (saúde, educação, alimentação, vestuário, transporte, habitação, saneamento básico, etc).

Reconhecemos, até, que diante de tudo o que a política imperialista estadunidense já nos apresentou em termos de bipartidarismo republicano e democrata, Bernie Sanders é um curiosíssimo ponto fora da curva, a ponto de seus próprios correligionários democratas o taxarem de radical enquanto é pública e notoriamente boicotado pela própria direção do partido nas primárias presidenciais.

O que apenas ocorre é que há um abismo intransponível entre as proposições de Bernie Sanders e o socialismo.

Se praticarmos a “estadunidencização” do socialismo, “vamos para o vinagre”, como dizia o comunista João Saldanha.

(*) Lucas Rafael Chianello é advogado e jornalista filiado ao PT, organizado na tendência da Articulação de Esquerda

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Segue o artigo de Joaquim Ernesto Palhares, para exercício do contraditório:

Caros leitores,

Devido à gravidade dos fatos e, certamente, ao compromisso de Carta Maior em garantir análises de qualidade e informações de vários cantos do mundo, comunicamos que nossa audiência continua crescendo, e que também aumentou o número de leitores-parceiros do nosso site.

O nosso Twittão Maior alcançou o número recorde de 5.7 milhões de impressões nos últimos 28 dias, com 178 mil seguidores.

Duzentos e vinte leitores e leitoras atenderam ao nosso pedido de doação, nos últimos 40 dias às quais agradecemos. Somos agora 1.397 mantenedores de Carta Maior, tendo como meta, e ponto de equilíbrio, alcançarmos 3.000 parceiros-doadores, o que representaria menos de 1% da nossa audiência que, nos últimos trinta dias, chegou a 390 mil visitantes únicos.

Sabemos que o momento não é o mais indicado, mas é com muita tranquilidade que fazemos esse pedido (saiba como ser parceiro-doador), cientes da importante tarefa que temos neste momento, afinal, o coronavírus nos impõe o isolamento social, o que nos leva a um período de reflexão sobre nossas vidas e, também sobre nosso país e o mundo.

Preocupados com a situação atual que não nos permite nenhum vislumbre de saídas concretas em médio prazo, vamos propor aos nossos intelectuais um exercício de imaginação sobre o amanhã, enviando cartas para os leitores de 2030, no especial O Arqueólogo do Futuro que em breve estará no ar, quem sabe já com o novo layout da página, mais moderno, mais dinâmico e com as editorias melhor distribuídas. Tudo para facilitar a sua leitura, principalmente, sem anúncios que emporcalham as páginas.

Tempo chegará em que poderemos olhar para os dias atuais e, quem sabe, vê-los como o início de um outro mundo possível, mas para isso teremos de enxergar, aprender a mostrar e aí sim enfrentar os desafios que se colocam.

E eles são muitos como evidenciou a campanha de Bernie Sanders pela indicação do Partido Democrata na disputa pela Presidência da República norte-americana. Acreditem, não foi somente uma campanha por votos dos militantes e simpatizantes democratas, em busca de delegados na convenção que poderia levar Bernie à condição de disputar com Trump os destinos do mundo.

Como todos sabem, na última quarta-feira, dia 8 de abril de 2020, o senador dos Estados Unidos pelo estado de Vermont, praticou seu último ato político nas primárias para a eleição de 3 de novembro deste ano, renunciando à disputa e abrindo espaço para que seu colega de partido, o senador Joe Biden, possa enfrentar o atual presidente, sem as agruras de um confronto interno que historicamente deixa sequelas naquele país, vide o que ocorreu com Hillary Clinton, em 2016, que depois de uma disputadíssima primária com Sanders, deixou sangue na arena e foi derrotada por Trump.

Ficou claro que o “socialismo democrático americano”, que tanto nos causa inveja, ainda assusta o eleitorado médio norte-americano que conferiu quatro vitórias importantes a Joe Biden, mudando o destino do mundo.

Apesar disso, duas das principais bandeiras de Sanders – saúde gratuita, de qualidade e universal, à semelhança do nosso SUS; e renegociação da dívida estudantil com oferta de crédito educativo – foram abraçadas, de modo muito tímido, pelo milionário com quem Bernie disputava, até esta semana, a indicação pelo Partido Democrata à presidência dos Estados Unidos.

A saúde não será mais para todos e a dívida passará por uma renegociação. Se Trump vencer será muito pior, apesar do acordo feito por ocasião da votação do investimento de 2 trilhões de dólares na economia, ter renegociado a dívida estudantil.

O que salta aos olhos é o gesto e a percepção correta de Sanders neste momento. Renunciando à indicação, ele permite a Biden sete meses sem disputas internas, para se dedicar de corpo inteiro à campanha contra Trump, que vem transformando o coronavírus em plataforma política.

Dia sim e no outro também, Trump, o presidente que até então somente se comunicava via twitter, permanece uma hora na televisão, dentro da casa de cada americano que se encontra em pânico frente os altos índices de contaminação e morte no país.

Após minimizar a pandemia, Trump agora trata o coronavírus como inimigo de guerra, fazendo escola inclusive aqui no Brasil (PEC10), vende seu show, enquanto Biden permanece em casa. Ele ainda traz para sua campanha o ódio contra a Venezuela, pretendendo usar suas cinco bases militares instaladas na Colômbia para uma futura guerra na América do Sul, uma espécie de um novo Vietnã (leia mais) além da luta sem tréguas contra outro inimigo – como veremos a seguir -, que é considerado pela direita americana, como o real e eminente risco de mudança.

Bernie demonstrou grandeza nesta semana, como lhe é característico. Desde o início do movimento Occupy Wall Street, em 2011, ele vem sendo o principal responsável por trazer a palavra SOCIALISMO de volta ao debate político, de onde nunca deveria ter saído.

O futuro, porém, poderá não ser Bernie; mas Alexandria Ocasio-Cortez, deputada pelo estado de Nova York, e uma das políticas mais promissoras dos Estados Unidos, que promete muito barulho, inclusive, pelas lutas que representa: é mulher, é latina, é jovem, é socialista.

É hora de pensarmos o futuro.

Vários intelectuais estão sendo convidados para participar do nosso próximo projeto, O Arqueólogo do Futuro, e aproveitamos a oportunidade para, publicamente, agradecer a contribuição de todos que construíram e estão construindo o Especial A Pandemia do Capitalismo que já reúne mais de 160 artigos de especialistas brasileiros e internacionais.

Este é o nosso trabalho, manter o sonho mas sem ingenuidades; informar sobre o hoje, a partir do olhar de quem sabe; e neste momento tão difícil, cuidar do equilíbrio emocional dos nossos companheiros leitores, daí a editoria Nem Freud Explica, trabalhando as angústias que dizem respeito a todos nós. E, também, oferecemos a melhor seleção de filmes online reunidos no especial Cinema em Casa em tempos de coronavírus que conta com cinco edições e mais de 60 filmes a espera de vocês.

Por fim, convidamos todos a lerem dois excertos das entrevistas de Noam Chomsky e Naomi Klein concedidas à jornalista Amy Goodman, no Democracy Now!

Noam Chomsky – Democracy Now! Confira aqui a íntegra da entrevista em inglês e aqui o trecho com legendas em português

Amy Goodman: Na quarta-feira, pouco antes de Bernie Sanders anunciar, mas já parecia que ele estava prestes a sair da corrida presidencial, perguntei ao linguista e autor Noam Chomsky sobre sua avaliação da campanha de Bernie Sanders nesta época da pandemia de coronavírus

Noam Chomsky: Se Trump for reeleito, será um desastre indescritível. Isso significa que as políticas dos últimos quatro anos, que foram extremamente destrutivas para a população americana e para o mundo, continuarão e provavelmente serão aceleradas. O que isso vai significar para a saúde já é ruim o suficiente. Acabei de mencionar os números da Lancet. Vai piorar. O que isso significa para o meio ambiente ou a ameaça da guerra nuclear, sobre a qual ninguém está falando, mas é extremamente sério, é indescritível.

Suponha que Biden seja eleito. Eu anteciparia que seria essencialmente uma continuação de Obama – nada de muito grande, mas pelo menos não totalmente destrutivo, e oportunidades para um público organizado de mudar o que está sendo feito, impor pressões.

É fácil dizer agora que a campanha de Sanders falhou. Eu acho que é um erro. Eu acho que foi um sucesso extraordinário, mudou completamente a arena do debate e discussão. Questões impensáveis há alguns anos agora estão no meio das atenções.

O pior crime que ele cometeu, aos olhos do establishment, não é a política que ele está propondo; é o fato de ele ter conseguido inspirar movimentos populares, que já vinham se desenvolvendo – Occupy, Black Lives Matter, muitos outros – e transformá-los em um movimento ativista, que não aparece apenas a cada dois anos para pressionar um líder e depois vá para casa, mas aplica pressão constante, ativismo constante e assim por diante. Isso poderia afetar uma administração de Biden.

Amy Goodman: Esse é o ativista, intelectual público, linguista de renome mundial, Noam Chomsky.

Naomi Klein – Democracy Now! Confira aqui a íntegra da entrevista (em inglês) e aqui o trecho com legendas em português

Amy Goodman: Bernie Sanders suspendeu sua campanha. Até recentemente, você dizia que ele deveria continuar, especialmente durante esta pandemia, a concorrer à presidência. Você poderia falar como viu a declaração que ele fez e a decisão dele?

Naomi Klein: Bem, acho que a principal coisa que quero dizer nesta manhã, Amy, é que gostaria de expressar minha enorme gratidão a Bernie Sanders, a toda a sua família, às muitas pessoas que trabalharam para a campanha, tão incansavelmente, e que abriram a janela do que era possível politicamente neste país. Foi uma campanha incrivelmente difícil.

Confio que Bernie esteja tomando a decisão certa neste momento como líder da campanha e também como senador dos EUA. Eu sei que ele pretende lutar pelas pessoas, como sempre fez, neste momento crítico.

Então, sabe, sinto muita gratidão pelo senador Sanders. Mais do que qualquer outra coisa, acho que o que a campanha fez foi nos ajudar a nos encontrar. E por “nós”, quero dizer aquele enorme “NÓS” da campanha “Eu não. NÓS.”

Ele fez isso não apenas nesta campanha, mas em 2016, quando realmente quebrou o feitiço da era Reagan, aquele feitiço que dura quatro décadas, que disse às pessoas que acreditavam que esse sistema está canalizando tanta riqueza para cima e espalhando insegurança, precariedade, pobreza e poluição para todos os demais – todos que olhávamos para esse sistema e achávamos que havia algo profundamente errado com ele, o que a era neoliberal disse, a todos nós, foi que nós éramos os loucos, que éramos uma minoria minúscula de pessoas marginalizadas, e que devíamos apenas aceitar.

Lembramos, mais uma vez, do nosso apelo por doação (confira aqui as opções).

E, por favor, não saiam de casa.

Essa crise é muito grave e, no Brasil, está apenas no começo.

Sigamos juntos,

Joaquim Palhares

Diretor de Carta Maior

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