Por Fausto Antonio (*)
Epigrafia das memórias de 2017 e das lutas contra as peças racistas Nega Maluca , Negrume e Blackface nos dias atuais. Desse modo, é uma epigrafia das peças racistas ocupando o lugar das pessoas no passado e no presente. As práticas relatadas aqui e o uso dessas peças estarão, com certeza, no carnaval , nos espaços teatrais, lúdicos e festivos do Brasil em 2024.
Personagem Nega Maluca criada por um cidadão de São Francisco do Conde (BA). Segundo site oficial da prefeitura, “o artista de 44 anos de idade e 27 anos de cultura Franciscana sempre inventou personagens, mas pensando em criar um que fosse único e especial no Brasil, fez a Nega Maluca. Durante um dia de carnaval, o autor se deparou com uma coisa preta em seu quarto e teve um ataque de riso”.
A Nega Maluca, peça do racismo, não é uma pessoa
A peça de produção e reprodução do racismo e machismo Nega Maluca é uma criação de brancos e brancas e tem finalidade e precisão na produção e manutenção do racismo. Ela tem a mesma base de construção perversa das peças blackface e negrume. No conjunto, as peças são instrumentos para a afirmação étnica de brancos e brancas. Quanto os brancos (as) utilizam a peça Nega Maluca para destruir o corpo e a imagem negra e associá-la ao ridículo, ao deboche e ao esmagamento físico, simbólico, psicológico e mental, eles (as) não precisam mutilar o próprio corpo, o mental, o psicológico e o espiritual. Trata-se da produção do racismo.
Os brancos usam a peça para atingir negros e negras, eles saem vitoriosos e ilesos do processo; não há automutilação da corporeidade e de individualidades ou coletividades brancas. Diferentemente, na reprodução do racismo, os negros e negras que utilizam o instrumento, artefato ou peça de violência Nega Maluca precisam, antes de tudo, promover a mutilação do próprio corpo, da própria consciência e, numa destruição intestina e coletiva, retalhar até o limite a sua última porção de humanidade e negrura.
Na data de 26/09/17, na Audiência Pública realizada na Câmara Municipal de São Francisco do Conde, Bahia, tivemos contato com a perversidade dessa realidade. O ingresso, na cena do debate, da peça racista e machista mutilando um corpo negro, a sua consciência, a sua emoção, a sua inscrição no riso e na desvalorização da mulher negra possibilitou um duro aprendizado. É deprimente a automutilação promovida pelo uso da intrusa peça racista e machista Nega Maluca. Ela destrói, é a base do racismo, primeiro o corpo e cabeça esvaziados do manifestante e, só depois, ingressa nos corpos e imaginários coletivos negros. Ontem, na Câmara Municipal de São Francisco do Conde, com consciências e corporeidades negras antirracismo e com individualidades fortes, a depressão, num duro e eficaz processo educativo, ficou restrita, na medida em que é deprimente, ao corpo e aniquilamento mental e espiritual apenas do seu manifestante.
Por fim, falo da sua criação por brancos (as) racista para desfazer a visão diletante, manipuladora, reprodutora do racismo/machismo e a-científica que constrói a narrativa e historiografia da originalidade da peça racista e machista; ela não nasceu aqui, na cidade de São Francisco do Conde, Bahia, e não tem um criador de origem negra. A historiografia e o poder público precisam de coragem para admitir o erro grave e que induz/conduz a uma inversão histórica e epistemológica. As historiografias, as disciplinas históricas e as manifestações culturais não são imutáveis, elas são necessariamente renovadas pelas dinâmicas sociais e por uma cadeia/rede de estudos. Nada existe para sempre, nada é imutável no campo cultural; o questionamento da peça racista/machista é também da ordem da cultura.
O mito fundacional da Nega Maluca de São Francisco do Conde
O mito fundacional da Nega Maluca do Conde, respaldado pela historiografia local e poder público, tem como objetivo central a transformação da peça racista numa pessoa; tarefa impossível do ponto de vista histórico. A construção tem base curricular, isto é, material. Não por outra razão o mito fundacional da Nega Maluca de São Francisco do Conde – BA, conforme livro dedicado à aplicação da Lei 10.639/2003, não é algo paradoxal e revoltante apenas, mas uma amostragem material, indesejada e perversa do racismo institucional. Na mesma perspectiva, o Pelourinho é produção do trabalho escravizado e do racismo no Brasil. A Nega Maluca, é válido o paralelo comparativo, é igualmente produção da branquitude, do racismo e da violência contra negros (as). A despeito de ser produção de brancos e sobretudo da branquitude totalitária, a manifestação da Nega Maluca de São Francisco do Conde ,no Recôncavo Baiano, é reproduzida por negros (as). Fica patente, no entanto, que não é, em oposição ao livro produzido pela prefeitura local, criação ou produção negra. Numa síntese, Pelourinho e Nega Maluca, . a serviço de privilégios para brancos, são objetos ou armas racistas produzidas, mobilizadas e utilizadas contra negros.
Naturalização e fossilização da Nega Maluca ou a senda de esquizofrenia brancocêntrica
É necessário dizer, a propósito da Nega Maluca, que uma manifestação cultural nunca aparece só; não é criação de uma única pessoa, jamais funciona isoladamente; não é elaboração exclusiva de uma cidade. Aliás, as manifestações culturais reprodutoras do racismo, como sistema organizado, têm relação com a estrutura social racista hegemônica. O alcance socioespacial chega à totalidade do território brasileiro. A relação é fundamental para a naturalização do racismo e o é também para a construção de mecanismos para a sua superação. São exemplares para a superação das desigualdades raciais os adventos do TEN, do YlêAiyê, doFECONEZU, Festival Comunitário Negro Zumbi, da coletânea Cadernos Negros, do Dia Nacional da Consciência Negra, da Lei 10.639/2003e da UNILAB.
Em outros termos e diferentemente dos artefatos antirracismo exibidos acima, as manifestações culturais podem reforçar, entre outras opressões , as desigualdades raciais, sexuais e de gênero. Como não é algo natural, as manifestações culturais igualmente podem subverter a ordem estabelecida pelas estruturas de poder e, na contramão, libertar e instituir, no imaginário e espaços banais da sociedade brasileira, artefatos e/ou patuás lúdicos de conhecimento e de prazer para superar o racismo, o machismo e o sexismo.
Historicamente no Brasil, os espaços carnavalescos e festivos de rua são palcos de disputa por hegemonia no tocante ao modo de festeja em si e notadamente nos seus conteúdos, significados e sentidos. As manifestações culturais, construções coletivas e portando históricas, não são eternas e imutáveis; elas são questionadas e revisitadas criticamente e, na mesma ordem ou nos exercícios de autorias, os seus conteúdos, significados e sentidos reprodutores do racismo, do machismo e do sexismo, são revistos, modificados, transfigurados e banidos pela ótica antirracismo e de construção de outra sociedade dada, entre outros, pelos acúmulos políticos dos movimentos sociais negros e de mulheres negras.
A introdução aqui apresentada tem a finalidade de ressaltar e negritar a necessidade de visão de conjunto, do todo, na qual a peça Nega Maluca está inserida no contexto de rua, carnavalesco e do sistema de ensino da cidade de São Francisco do Conde, Bahia. Não é possível compreender plenamente a “peça” fora do todo a que pertence. A peça Nega Maluca é uma manifestação do racismo e de reprodução do racismo largamente utilizada no carnaval e manifestações de rua do Brasil. Não é e não se trata de uma manifestação originária de São Francisco do Conde-BA; o racismo, como sistema nacionalmente instituído, não permite originalidade e menos ainda exclusividade. Sendo assim, o artefato ou objeto Nega Maluca integra um sistema cultural de naturalização e de fossilização do racismo à brasileira. As Negas Malucas constitutivas do sistema, na mesma linhagem do negrume e do blackface, são integradas funcionalmente na e pela ordem estabelecida pelas estruturas de poder.
O poder no Brasil é branco, ou seja, racista e firmado pelo totalitarismo do consumo e poder da branquitude como valor absoluto, universalizante. Consumir a Nega Maluca é uma forma acabada de consumo totalitário da branquitude, isto é, do racismo à brasileira. A Nega Maluca, sempre uma peça, é um eco branco, perverso e extremamente violento na mutilação de consciências e de corporeidades negras.
A Nega Maluca, diferentemente do querem algumas vozes franciscanas, não serve para a coesão de negras e negros. Peças racistas fragmentam a coesão social, racial, humana e desmontam a convivência existencial, política e epistemológica indispensável para a superação do racismo, machismo e sexismo.
A manifestação não têm vida própria como querem alguns ou algumas vozes brancas e branqueadas; a peça racista e reprodutora do racismo não pode explicar-se por si mesma e, sobretudo, ocupar espaços no imaginário e nas corporeidades negras sem a NOSSA cumplicidade e, no caso de São Francisco do Conde e de tantas cidades brasileiras, sem o apoio explícito e a legitimação chancelada pelo poder público
Blackface, Negrume e Nega Maluca, não!
As lutas de negros e negras para superar a política de exclusão nos espaços literários, teatrais, carnavalescos, culturais e televisivos têm história e produção para questionar e reverter o esmagamento físico e filosófico. A propósito do acúmulo de lutas e de enfretamento do racismo à brasileira, o Mestre Joel Rufino nos ensinou, numa intervenção oral, que o racismo no Brasil não é coisa para amadores. Ele tem total razão. Não é por outro motivo que as práticas racistas se renovam e outras persistem quase que intocadas e arraigadas nos costumes. É o caso do negrume em alguns maracatus de Fortaleza, da Nega Maluca em São Francisco do Conde, Bahia e do blackface em encenações teatrais brasileiras.
Quero enfatizar que sou contrário à manifestação da Nega Maluca e do blackface. No tocante ao texto e ao movimento favorável ao uso do negrume, tenho igualmente posição contrária; o negrume, a máscara negra, é um meio para esconder as negras e os negros. No Brasil, os corpos negros e o imaginário da negrura são historicamente sequestrados pelos brancos (as); negros e negras não entram em cena. O imaginário racista chega ao máximo; a esquizofrenia identitária de milhões de brasileiros tem amarras fortes com a perspectiva totalitária da branquitude. Os brancos (as) racistas e reprodutores do racismo à brasileira têm um grau exacerbado de cinismo e, sobretudo, de sadismo e de vontade de mutilar o outro ao contrário da anunciada aproximação. Há, a rigor, a instituição de um muro; uma muralha branca construída sobre corpos negros, corpos que o branco (a) pode vestir ou usar num momento de recreação, de lazer e de reafirmação vitoriana da brancura.
Ao tomar o lugar do negro (a) e/ou reduzi-lo ao caricato, o (a) branco (a) assume a narrativa e se reafirma também nos espaços banais como sujeito “universal”, que pode falar do outro a partir de um universal modelado pelo racismo. Como o corpo é também história, no blackface, na Nega Maluca e no negrume, o negro (a) não pode dizer eu sou eu, pois o corpo perde suas inscrições de luta, de prazer, de amor, de ancestralidade e, sem referências do eu sou eu, é aquilo que o imaginário e o poder branco determinam. No negrume, o (a) branco (a) tem um corpo, um simulacro de um não sujeito étnico da brancura, para inscrever a sua visão caricata de negros (as).
O negrume lembra a velha e racista tradição da Nega Maluca, normalmente encarnada por brancos (as) racistas, que naturalizam a visão estereotipada da negrura, isto é, da mulher negra, que é infantilizada e reduzida aos órgãos sexuais avantajados, deformados. Os negros e negras, que assumem o papel e saem travestidos assim, deixam de falar sobre si e sobre o outro; eles e elas são ecos dos brancos (as), os verdadeiros narradores, autores (as) desses corpos e consciências mutilados.
O blackface, o rosto negro usado preconceituosamente pelos brancos, é da mesma linhagem racista do negrume usado nos maracatus de Fortaleza. O negrume é um meio eficaz para invisibilizar a presença da corporeidade negra; é a redução do negro (a) a um amontoado e/ou a uma massa que não significa união; convivência crítica com a diferença, mas a unificação hegemonizada pelos brancos (as), que se sentem confortáveis na medida em que anulam a negrura real dada pela corporeidade negra. Temos o negro universal, nestas máscaras, construído pelo branco (a). O negro universal instituído pelos brancos (as) é sempre uma caricatura do negro. Por conta dessa similitude, é uma deriva pessoal, fiz uma intervenção contra a encenação, no fatídico 2017, na orla de Fortaleza, da Nega Maluca. Pois é: o negrume e o blackface têm o mesmo caráter ou sentido; eles permitem perversamente apenas a caricatura. O dado perverso é a caricatura do negro feita por sujeitos brancos, que ficam impunes e imunes às discussões e às posições de combate ao racismo.
A proliferação dessas práticas tem sempre o apoio do poder público, certamente Fortaleza vive a reprodução dessa realidade. Em Campinas,SP, nas décdas de 70 e 80 do século XX, o apoio da Secretaria de Cultura e da prefeitura local era parte da manutenção da política pública racista da Nega Maluca. O poder público ajuda e ajudava reforçar o racismo. Em Campinas, a Nega Maluca recebia troféu na década de 70 e início de 80, nós, militantes negros (as) antirracismo, tiramos o troféu na luta política, “no pau” e no debate. O processo , profundamente dolorido e libertário, conta com páginas comoventes no romance Memória dos meus carvoeiros.
Do ponto de vista da luta contra o racismo, cara leitora e caro leitor, o mesmo deve ser feito com o negrume em Fortaleza, Ceará, e com a manifestação da Nega Maluca em São Francisco do Conde, Bahia e em todos os rincões do Brasil.
Há muitas pessoas negras e brancas na contramão do racismo; eles (as) querem superar este estágio de invisibilidade do negro, que aparece apenas travestido. Sem dúvida, , tal política esconde o branco, que anda livre por trás da máscara preta,mera caricatura do negro. E muitos negros (as) vão na mesma lógica, numa caricatura e/ou escamoteação da própria negrura, que recebe por cima uma tinta artificial e inútil.
(*) Fausto Antonio é escritor , poeta, dramaturgo e professor da UNILAB -Bahia. É autor, entre outro livross, de Memória dos meus carvoeiros e No reino da carapinha, publica anualmente na coletânea Cadernos Negros.
Respostas de 7
Li e entendi, um texto bem redigido e claramente identitário, com ressentimentos e revolta sintetizando sentimentos de segregação. Textos como esse induzem a divisão entre grupos étnicos fragmentando a sociedade permitindo a polarização e consequentemente enfraquecendo o sentimento de povo, nação e sociedade nesse, intuito facilita a divulgação de ideias socialistas e comunistas, como querem os grupos que estão dominando nossas instituições, levando a corrupção num grau exarcebado. Levando a ruptura do tecido social e consequentemente a mudanças de regime, o autoritarismo presente atualmente deriva e se alicerça nessas práticas.
Li e entendi, um texto bem redigido e claramente identitário, com ressentimentos e revolta sintetizando sentimentos de segregação. Textos como esse induzem a divisão entre grupos étnicos fragmentando a sociedade permitindo a polarização e consequentemente enfraquecendo o sentimento de povo, nação e sociedade nesse intuito facilita a divulgação de ideias socialistas e comunistas, como querem os grupos que estão dominando nossas instituições, levando a corrupção num grau exarcebado. Levando a ruptura do tecido social e consequentemente a mudanças de regime, o autoritarismo presente atualmente deriva e se alicerça nessas práticas.
pede para as mulheres negras baianas e artesãs pararem de fabricar as lindas bonecas nega maluca. vamos ouvir a resposta das mesmas pra esse texto
A propósito fessô Fausto Antonio, onde encontro seus livros? Achei um site, o w.quilombjoje/site/cadernosnegros. Seria este, por favor?
Magnífico artigo, fessô Fausto Antonio! E coberto de verdade! Quero ler seus livros urgentemente!
Artigo muito interessante, professor.
Mto bom o artigo. Bem fundamentado no sentido de fazermos uma auto reflexão sobre o racismo construído e arraigado históricamente na sociedade brasileira e mundial. É necessário fazermos debates e campanhas permanentes sobre tais reproduções para que nossos descendentes negros e brancos possam respeitar uns aos outros com consciência social plena. A paz real entre as pessoas só será alcançada através da liberdade e da igualdade.