A nova maré vermelha na América Latina

Por Daniel Araújo Valença (*)

Texto publicado na edição 14 da revista Esquerda Petista

Em princípios de 2022, afirmávamos em artigo publicado pelo Jornal Página 13 que o ano de 2022 deveria “seguir os rumos de 2021: crise econômica, política, social e sanitária, implicando o acirramento da luta de classes e nova correlação de forças na região”. Apontávamos, também, que a ofensiva neoliberal e conservadora da década anterior estaria perdendo força, porém, tanto as eleições de Brasil e Colômbia seriam decisivas para a confirmação da alteração da correlação de forças na região quanto as conquistas eleitorais se dariam em condições econômicas, políticas e sociais bem diferentes das do início do século (iniciadas em 1998, com a vitória de Hugo Chávez), exigindo que as esquerdas acumulassem processos de organização e mobilização popular.

Entramos 2023 com a confirmação daquela possível conjuntura. A vitória de Lula possibilitou, desde já, a retomada da CELAC, a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos, o restabelecimento de relações diplomáticas e comerciais normais com Venezuela, Argentina, Bolívia e demais países governados pelas esquerdas e tratativas para o estabelecimento de uma moeda comum, o que, concretizado, levaria à redução da influência do dólar e do imperialismo norte-americano na região. A vitória de Gustavo Petro na Colômbia, algo único em sua história, está levando o país a desenvolver laços de fraternidade com a Venezuela, após décadas de açoitamentos e possibilidades de conflitos armados entre os dois países, planejados e terceirizados pelos EUA.

Se a região respira esperança, o golpe de Estado contra Pedro Castilho no Peru, a tentativa separatista na Bolívia liderada pelas elites de Santa Cruz e o conflito entre Alberto Fernández, presidente da Argentina, e sua Corte Suprema demonstram como não será fácil para os nossos governos.

A integração regional e a aproximação econômica com a China terão papel central no próximo período quanto à materialização de avanços na economia com vistas a garantir a estabilidade política. Ou tais governos mudam rapidamente as condições de vida de suas classes trabalhadoras e desenvolvem uma capacidade de organização e mobilização popular ou necessariamente estarão frágeis ante uma extrema-direita dotada de poder econômico, político e midiático.

Por fim, a atual conjuntura latino-americana reafirma antigos fantasmas, bem como traz algo peculiar em relação ao último ciclo de governos de esquerda na região.

No Peru, o golpe de Estado que colocou Dina Boluarte como presidenta no lugar de Pedro Castillo demonstra novamente que as elites latino-americanas não se incomodam com a barbárie. Em verdade, sobrevivem às custas da barbárie. Se Pedro Castillo fazia um governo sofrível, uma verdadeira mutação política em busca da governabilidade parlamentar, em que seu gabinete se inicia com uma composição de esquerda socialista e rapidamente se degenera para buscar ancorar-se numa extrema-direita e setores fisiológicos, o que se seguiu ao golpe de Estado é estarrecedor. Ante aos protestos massivos contra o golpe, por uma assembleia constituinte e liberdade para Castillo, o governo de Boluarte adotou as mesmas práticas que o Chile de Piñera e a Bolívia de Áñez. Se, em resposta ao “Estallido Social”, no Chile, as forças repressivas deixaram mais de 400 pessoas com perda de visão e mais de 40 assassinadas; se, na Bolívia, a repressão às manifestações contra o golpe assassinaram a mais de 40 indígenas, a repressão peruana já contabiliza mais de 600 presos e mais de 60 vítimas.

Dina Boluarte chegou a afirmar que “Tenemos que proteger la vida y tranquilidad de los 33 millones de peruanos. Puno no es el Perú. Los que están generando la violencia, creo que también la prensa internacional debería de comunicar que el gobierno no está generando la violencia, que el gobierno quiere la paz y tranquilidad”. Como se percebe, para tais elites, o Peru se resume a Lima, como bem apontou Mariátegui quase cem anos atrás, e as pessoas que perderam suas vidas protestando contra o governo não são peruanas.

Daí é fácil de se concluir que a adesão de grandes capitalistas brasileiros à candidatura de Bolsonaro, mesmo após tantos crimes e do genocídio durante os tempos mais duros da pandemia de Covid, nada mais é do que a essência dessas classes dirigentes. A elas não interessa quantos morram, desde que se preservem os padrões de acumulação e reprodução do capital.

Se a repressão em massa de um governo golpista/neoliberal é um museu de grandes novidades, chamam a atenção os novos ventos trazidos pelos governos de México e Colômbia, seja devido à importância geopolítica de tais países, seja devido a uma posição anti-imperialista que não deixa mais Cuba, Venezuela, Nicarágua e Bolívia isolados.

López Obrador, no México, de maneira recorrente, tem enfrentado temas que seriam tabu no Brasil. A questão energética, por exemplo, é vista a partir da perspectiva da soberania energética e os interesses e articulações norte-americanas, em defesa de um modelo privatista, são denunciados veementemente.   Em seus pronunciamentos matinais, Obrador transforma tais momentos em verdadeiros espaços de formação política e dialoga abertamente com a população sobre soberania, direitos humanos, imperialismo norte-americano.

Na Colômbia, Gustavo Petro declarou guerra à política de guerra às drogas implementada pelos Estados Unidos em toda a região e recentemente anunciou a legalização do plantio de pequenas quantidades de coca, beneficiando milhares de camponeses, e seguindo exemplo trilhado pela Bolívia no início deste século.

Agora, a defesa de que não há alternativa de desenvolvimento para a América Latina sem a luta pela soberania e superação do imperialismo e da dependência vai da América do Norte à do Sul. Que os atuais governos consigam implementar rapidamente as mudanças necessárias para, assim, aprofundar essa nova correlação de forças na região e impedir novo retorno conservador.

(*) Daniel Araújo Valença é professor da Graduação e Mestrado em Direito da UFERSA, pesquisador do Grupo de Extensão e Pesquisa em Direito, Marxismo e América Latina, vice-presidente do PT/RN e vereador em Natal.

 

 

 

 

 

 

 

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