Por Mateus Santos (*)
Em alguns dos veículos de imprensa mais importantes do país, o saldo de mortos ocasionado pela COVID-19 está entre as principais manchetes diárias, um espaço praticamente certo no interior dos programas ou das páginas jornalísticas. Média móvel, números absolutos, números do dia ou da semana. Dados e mais dados que tentam estabelecer as fronteiras de uma das maiores tragédias da história recente do Brasil. O que serviria, em tese, para um elemento de alerta e conscientização, transformou-se num aparente elemento de nosso “Novo Normal”. Este termo, muito comum na atualidade, busca sintetizar uma espécie de emergência de um estilo de vida e de sociedade a partir da pandemia, como se 2020 marcasse uma verdadeira ruptura na nossa trajetória. As anormalidades quantitativas do COVID-19 parecem fazer parte dessa normalidade forçada, capaz de conciliar mortes em massa com esforços desesperados por uma reabertura econômica que equivocadamente buscam sugerir que houve um real isolamento rígido.
Se as catástrofes nos levam a olhar para o passado em buscas de respostas para elementos que nem sempre nos parecem claros, a pandemia também me faz crer e refletir sobre a relação entre os números atuais e a sua anormalidade. Como ouvir ou ler sobre tais quantidades e nem sequer refletir sobre nossa prática? Seria este um desleixo dessa e das últimas gerações? A naturalização da perda parece chocar segmentos da população, pois, após os números, cenas de reabertura de shoppings, espaços de lazer e outros ambientes de sociabilidade dos normais passados trazem outra mensagem para quem vive numa incerteza cotidiana.
Volto à questão anterior: o que faz as atuais gerações reagirem dessa maneira? Seria um defeito genético ou algo passível de ser explicado a partir do encontro de um “pecado original”? Penso que não. Perspectivas evolutivas ou demasiadamente regressivas fortalecem preconceitos ao seu próprio coletivo ou aos outros. Contudo, se não há elementos claros e diretos do ponto de vista histórico, um olhar para outros tempos pode fornecer uma leitura mais complexa e possivelmente aumentar este trauma.
O que estou chamando de permanente naturalização do anormal reside na crença de que, ao contrário do que eu ou você possa pensar, a convivência com fatos e processos que colocam em risco a integridade de um coletivo não se apresenta enquanto uma obra da nova normalidade, mas enquanto um aspecto capaz de ser historicizado ao longo da nossa formação sociopolítica e cultural. Enquanto a baliza física final de uma trajetória, a morte, que traz sofrimento e dor para quem perde, foi encarada de formas completamente diferentes.
Tendo suas bases na exploração colonial, a violência é um eixo estruturante para o entendimento da prevalência do natural anormal. Enquanto mãos e pés dos senhores, como defendeu Antonil no início do século XVIII, uma das primeiras grandes demonstrações de interação com o trágico se deu no âmbito da escravidão e da constituição da sociedade colonial. Na formação de um verdadeiro sistema que ultrapassava as fronteiras dessa parte do “Novo Mundo”, a dinâmica do tráfico sustentava não somente um processo que conciliava espaços sociais reprodutores de mão-de-obra e territórios de produção escravista,[1] mas também um processo pelo qual o domínio privado na relação entre exploradores e explorados atribuía diferentes valores à vida dos últimos. Entre chicotes, negociações e conflitos, a sociedade escravista conviveu durante séculos com a morte, a incerteza total de futuro e a destituição da condição humana. Entre os mais de 4 milhões de negros e negras que, sob a contraposição entre “Novo Mundo” e “barbárie”, para cá foram trazidos, vidas e mais vidas foram perdidas ou colocadas sob risco material ou espiritualmente.
Em nome de alguns, o sofrimento de muitos foi naturalizado e “pacificado” aos olhos de segmentos expressivos da opinião pública. Poucos não são os casos que o passado nos oferece. Porém, citarei um mais próximo de mim. Em uma das ruas de Salvador, é possível encontrar um monumento destinado “aos heróis de Canudos”. Seriam estes os sertanejos que, de forma aguerrida, sobreviviam às mazelas e a negação de uma cidadania completa do pós- escravidão e pós-império? Não, o heroísmo nos sertões baianos do final do século XIX é atribuído aos responsáveis por transformarem o Belo Monte em pó. Sob a ótica do Estado e de quem, em seu nome, se coloca na condição de narrador dessa história, os números de Canudos foram apenas detalhes de nossa trajetória. Um episódio que, diante da representação de um perigo coletivo para as autoridades e outros setores da sociedade, ganhou um relativo silêncio da parte de quem produziu gritos de sofrimento e tristeza.
Nesse Brasil em que entre o “eu” e o “outro” existem barreiras de naturezas racial, econômica, cultural e política, não me faltam outros momentos em que naturalizar o anormal se constitui parte de uma regra. No encontro com outra tendência de nossa história, o autoritarismo, muitas vidas foram perdidas e suas perdas silenciadas em nomes de projetos excludentes e sustentados pela violência. Numa república com grave déficit democrático, como disse Lilian Schwarcz,[2] um conjunto de perdas ao longo da nossa História Política se tornou uma tragédia coletiva que nem mesmo os números dão conta de dimensionar o tamanho deste saldo. Ao se constituir enquanto uma tragédia coletiva alimentada em diferentes momentos, o cerceamento de liberdades e a negação da vida neste campo também foi naturalizado por meio de instrumentos como a censura e os instrumentos de repressão.
No campo, lugar outrora exaltado por literatos e artistas, o encontro com a violência, a morte e a naturalização do anormal foi permanente. Na disputa por terra e recursos minerais, o avanço da exploração dizimou silenciosamente índios, pequenos produtores, movimentos campesinos e a própria natureza. A perda quantitativa de indivíduos para as cidades, longe esteve de alterar profundamente o quadro de enfrentamento nos territórios rurais. Ao contrário disso, a violência do homem com o homem e do homem com seu meio também constituem parte de uma trajetória de convivência com o anormal.
Nas cidades, a situação não é muito diferente. Os maniqueísmos e as personificações dos autoproclamados “sujeitos de bens” em relação a homens ou mulheres considerados “fora-da-lei” escondem uma guerra cotidiana e sangrenta, capaz de matar mais que um conflito civil, daqueles que certamente promoveriam indignação em boa parte das famílias do país. À perda de seus filhos e filhas, mães e familiares chorando ou manifestando outras formas de indignação representam segundos ou poucos minutos de uma tragédia que quase nunca é tratada a partir de sua quantificação. Entre um caso e outro, no programa policial ou no grande jornal, a violência das ruas levou e leva milhares ao ponto final de sua história. Mais uma vez, o que se vê não é uma reação de enfrentamento ao anormal, mas o silenciamento ou ainda discursos e práticas que naturalizam tais processos enquanto uma agenda política e social.
O encontro entre nossa história e a permanente naturalização do anormal, a partir de um olhar retrospectivo, não pode ser tomado como algo eterno. Crises impõem desafios aos homens e as mulheres de uma determinada sociedade. Não serei otimista ao dizer que deixaremos tão logo de conciliar setores sociais em indignação e outros em indiferença com as tragédias. O tempo histórico é complexo por lidar com a [auto] construção de comunidades diversas. Contudo, temos mais uma oportunidade de reverter esse quadro.
Como na maioria dos processos citados acima, caberá a História, enquanto ciência, bem como aos demais estudos das humanidades, trabalhar em prol da desnaturalização do natural “anormal”. Por meio de números, mas acima de tudo, pelo reconhecimento de trajetórias interrompidas por essa e outras violências e tragédias do nosso passado, o normal é questionado por ser entendido como normal. Conviver com situações de morte como meras partes da vida cotidiana não pode ser parte integrante de nenhuma sociedade. Para que mais de 85 mil vidas perdidas sejam efetivamente reconhecidas como vidas, isto é, indivíduos com uma trajetória particular, merecedores de nosso respeito e luta, precisamos estabelecer um desencontro com nossa própria caminhada enquanto Estado, sociedade e nação, capaz de olhar ao outro como uma parte integrante também de um “eu” coletivo. Que a pandemia passe e leve consigo os anormais normalizados do descaso com a vida.
(*) Mateus Santos é mestrando em História Social pela Universidade Federal da Bahia
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[1] ALENCASTRO, Luiz Felipe. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
[2] SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.