A propósito de jumentos

Poderia vir algo saudável e conexo da boca do inelegível, a não ser ofensa e sandice? O Presidente Lula esbanja sabedoria e elegância ao valorizar jumentos e burros, como fizeram Jesus e Machado de Assis

Por Paulo Sérgio de Proença (*)

Agressões verbais são comuns no mundo da política, infelizmente. Não bastassem os abusos criminosos do gabinete do ódio, em 25 de julho passado, o inelegível chamou Lula de jumento e de analfabeto.

A deficiência cognitiva do ex-presidente nos poupa de gastar tinta com o segundo adjetivo; poderíamos elencar as muitas qualidades pessoais e políticas que ornam a vida e a trajetória de Lula que, com certeza, analfabeto não é. Aliás, bancos escolares e títulos acadêmicos não garantem sabedoria a ninguém. Quem é, então, analfabeto?

A comparação é grande mola do raciocínio. Apurar semelhanças e diferenças, avaliá-las para tirar algum proveito prático ou abstrato é recurso insuperável, como comprova a sabedoria milenar de todos os grupos humanos.

Para isso, a natureza em geral e os animais em particular são fontes privilegiadas, porque aludem à realidade imediata. Testemunham isso as fábulas, que extraem do mundo animal lições para a vida humana. Nesses escritos milenares, animais se vestem de gente: falam, desejam, têm fome e sede. São seres humanos em pele animal: uns são vilões; outros, mártires. Há uma força de atração nesse arranjo que capta nosso interesse.

Dentre os animais, o jumento pede passagem. Um representante dessa linhagem nobre teve a honra de conduzir Jesus a Jerusalém, na entrada triunfal de um rei rejeitado. O jumento não perdeu a pose, contudo; seguiu firme até seu destino, cumprindo sua missão, suportando o peso do Rei em seu lombo. Que honra!

A filosofia cínica buscava a simplicidade e, para isso, procurava simbiose com a natureza. Pregava o desprendimento aos bens materiais; observava a vida animal e dela tirava instruções para a vida humana, de forma filosófica. Jesus teve em algum grau afinidade com o cinismo, pois era desprovido de bens e tirava lições da natureza, principalmente de animais. Ele menciona, por exemplo, serpente, porco, raposa, cão, aves etc. O jumento, sinal de simplicidade, de força e de resistência, foi escolhido para protagonizar uma cena importante de sua trajetória.

Machado de Assis era atento observador e deu, por assim dizer, continuidade a essa tradição. Quincas Borba, um cão, é herói coadjuvante do famoso romance homônimo. Em crônicas desse autor, menções a animais são significativas. Em 15 de agosto de 1876, ele faz comparação entre burro e cavalo. Como burro surge do cruzamento entre jumento e égua, estamos na mesma família.

O narrador diz que não gosta do cavalo, porque esse animal é “o mais intolerável dos quadrúpedes”, apesar de ser elogiado por poetas, ser considerado nobre e ir à guerra. O motivo para isso? É o ambiente social de que esse animal participa, atrelado a uma pretensa superioridade.

Por outro lado, ao burro o narrador só endereça elogios: “Que mansidão! Que filantropia! Esse puxa a carroça que nos traz água, faz andar a nora, e muitas vezes o genro, carrega fruta, carvão e hortaliças, puxa o bonde, coisas todas úteis e necessárias”. Como se vê, o burro acumula vantagens, por sua utilidade; seu meio social não é o do glamour da nobreza, pois se ocupa de tarefas ligadas ao mundo do trabalho. O burro é útil à sociedade, ajustado a necessidades imediatas dos seres humanos. Por essa simples pista, podemos avaliar de que lado Machado estava, no jogo de influência e de poder de seu tempo.

O Presidente Lula reage ao ataque do inelegível, de forma elegante; o teor da resposta se aproxima do lugar de importância que jumentos e burros ocuparam na tradição literária, religiosa e filosófica, como se pode confirmar pelos exemplos citados (fábulas, filósofos cínicos e Jesus). Esta é a resposta do Presidente: “Ontem a imprensa me pediu para responder uma pessoa que tentou me atacar chamando de ‘jumento’. Um animal simpático e mais esperto que alguns. O que seria ofensivo seria comparar um jumento a ele, isso sim. Ofensivo aos jumentinhos que não fazem mal a ninguém”.

Ainda hoje é intensa a presença de animais em atividades humanas. Prova disso é o jogo do bicho; a receita federal é representada por um leão; e a associação de algum animal a times de futebol. Em alguns casos, ocupam um lugar especial na nossa intimidade e se tornam domésticos. Qualidades humanas são representadas por eles, como coruja (sabedoria), cão (fidelidade), raposa (esperteza) e assim por diante.

Animais não são bons nem maus. Assim, eventual traço negativo a eles projetado tem origem humana, pois seres humanos podem ser bons e maus – normalmente mais maus do que bons.

O genocida inelegível só arrota violência; dele não se pode esperar nada além disso. Faltam-lhe sensibilidade e grandeza pessoal. É um anjo do Mal, senhor da cizânia, narciso do inferno.

De fato, compará-lo a jumentos seria uma indignidade, uma falta de consideração com esses animais tão úteis a seres humanos, coisa que aquele indivíduo está longe de ser.

(*) Paulo Sérgio de Proença é professor da Unilab-BA

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