A Venezuela realmente existente

Por Anisio Pires (*)

A quantidade e a “qualidade” das coisas ditas sobre a Venezuela sempre surpreendem.  Sem saber muitas vezes o que responder, nos indignamos ou damos gargalhadas pelas estapafúrdias histórias nas quais se acredita. No entanto, o assunto é sério e perigoso. Nos dias 29 e 30 de julho passado, assassinaram 27 pessoas em protestos “pacíficos” que “reclamavam” pelo resultado eleitoral. Todos os que morreram apoiavam o governo, ninguém era da “oposição pacífica”. Tendo o governo bolivariano, como todos no mundo, o mando das forças militares e policiais, como explicar que a “ditadura” não reagiu para vingar essas mortes?

Falar das mentiras repetidas que viram verdade (Goebbels) não adianta, pois a simples menção da “Venezuela” bloqueia o valor dessa velha lição sobre a manipulação. Parece o fumante e o cigarro. A pessoa sabe que faz mal, mas pelo vício, continua. O “vício” de atacar a Venezuela pode mais que a verdade e na era das redes e dos algoritmos, ideias para prevenir enganos dificilmente atravessam os muros psicológicos.

Repetir que a Venezuela “tem problemas como qualquer país” tampouco explica nada. Moro na Ilha de Margarita (estado Nueva Esparta) que possui algumas vantagens, mas também desvantagens em relação ao resto do país. Fora isso, tudo normal. Deixo o convite-desafio. Venham e confiram pessoalmente, em qualquer horário e cidade que escolherem, se a mídia interessada mente ou não.

O país está em paz. É falso que exista violência tipo guerra civil. No passado tivemos muita violência criminosa. Agora, graças aos programas de segurança, é coisa do passado. Paraiso? Não, mas bem longe do inferno. Prevalece o policiamento preventivo o que não elimina confrontos com o crime organizado. As cidades se dividem em “quadrantes de paz” por áreas geográficas. A população recebe o telefone de contato de seu quadrante e, quando alguma coisa real ou suspeita acontece, o chama. Já utilizei esse serviço em duas ocasiões e a resposta foi rápida. Detalhe importante. Blitz indiscriminadas contra inocentes como no Brasil, aqui não ocorrem. Em 25 anos de revolução jamais houve uma tragédia como a do músico Evaldo dos Santos Rosa, sua esposa e filho de 7 anos. Em 2019, no Rio, levaram mais de 80 tiros. Militares os “confundiram” com um bandido.

O triste fenômeno brasileiro de milhares de pessoas dormindo nas ruas, aqui não existe. Uma pessoa ou outra em territórios específicos, mas são poucas. É verdade que o bloqueio dos EUA fez retroceder muitos dos serviços públicos, mas o caso da moradia virou questão de honra para o governo. O programa de moradias gratuitas (Gran Misión Vivienda Venezuela) iniciado em 2011 com Chávez nunca parou. Com uma população de quase 30 milhões, já foram entregues mais de 5 milhões de moradias gratuitas e de qualidade.

A situação desumana de pessoas catando “comida” no lixo é uma raridade e o fenômeno de perseguir caminhão de ossos, na Venezuela, nunca existiu! A fake news absurda de “pessoas comendo gatos e cachorros” é pura maldade. Enquanto isso, quando se trata da Coreia do Sul, a “Coreia capitalista”, onde comer cachorro é um antigo costume, nada se fala. Apenas em 2027 este costume será tornado ilegal por uma lei recém aprovada. Por pressões internacionais, o Ministério de Agricultura coreano propôs pagar “compensações” aos fazendeiros (de 170 a 450 dólares) para cada cão não abatido. No entanto, os fazendeiros consideram um valor muito baixo. Exigem 1.500 dólares para manter os bichinhos vivos.  (https://rtbrasil.com/noticias/5938-coreia-sul-pagara-cada-cao/). Ninguém sabe que na Venezuela, apesar de tudo, tem um programa criado em 2014 para proteger os animais, a “Misión Nevado” (https://misionnevado.gob.ve/). E para mostrar o quanto é estúpida essa fake news, é importante informar que muitas pessoas já foram presas por maltrato animal. (https://www.globovision.com/nacional/9221/cerca-de-150-detenidos-por-maltrato-animal-el-primer-semestre-de-2023). Na “humanista” Coreia, matar cachorros dá lucro, na “sanguinária” Venezuela, dá cadeia.

O povo venezuelano tem passado muitas dificuldades, evidentemente desiguais (nem todos tem sofrido) porque desigual é sua sociedade ainda capitalista que quer transitar com muitas contradições ao socialismo.

O fenômeno da migração de venezuelanos como “prova de tirania” é parte do perverso bloqueio ao pais. Veio acompanhada de campanhas psicológicas para que as pessoas vissem as coisas ainda piores. Manipulando as dificuldades reais com mensagens neurotizantes (“este país não tem saída”, “este país é um horror”, etc.), a direita vem promovendo a migração, dizendo que o país “já não presta” porque os “chavistas” tomaram conta.

É passível de crítica que o governo nem sempre divulgue os dados sobre a realidade do país, embora pareça razoável que nenhum país, grupo humano ou individuo revele suas fraquezas frente a um inimigo, menos ainda se este quer te destruir. Apesar disso, surgem informações que permitem conhecer as “feridas de guerra” como diz o governo. Em 2019, o Informe dos economistas Mark Weisbrot e Jeffrey Sachs do Centro de Investigação em Economia e Política (CEPR-Washington) teve um título sugestivo: “Sanções econômicas como castigo coletivo: o caso da Venezuela”. Com dados de instituições não vinculadas ao Estado, o informe revelou que só entre 2017 e 2018 a cifra estimada de mortes em consequência do bloqueio estadunidense foi de mais de 40 mil pessoas (https://cepr.net/images/stories/reports/venezuela-sanctions-2019-05-spn.pdf).

Apesar dessas feridas dolorosas, o governo foi capaz de reagir, sendo a melhor prova disso a sua resposta durante a pandemia da Covid-19.  As medidas prontamente adotadas pela Venezuela resultaram nas menores taxas de mortalidade da América Latina. Lembremos do gesto solidário do Presidente Maduro enviando oxigênio para salvar vidas em Manaus enquanto o genocida falava em “gripezinha”.

Na mensagem anual ao país (janeiro de 2024) o Presidente revelou ao mundo parte do sofrimento por trás da migração: “o déficit nutricional da família venezuelana chegou em 35% no ano 2017”. Para 2024, graças as iniciativas alimentares do governo, o déficit se reduziu a 6,5%. Contribuiu para isso a política de produção alimentar implementada. De uma Venezuela que importava perto de 80% dos alimentos que consumia, passamos em 2024, apesar do bloqueio dos EUA, a 100 % de abastecimento com produção nacional.

Mas se as coisas não estão assim tão ruins, cabe a pergunta: por que nas eleições de julho passado (que a direita diz que foram fraudadas), os opositores extremistas obtiveram 43% dos votos? Há vários aspectos.

Por um lado, está a questão salarial. Pesquisas revelam que a população espera que o Presidente resolva a questão. Do salário mínimo mais elevado do continente na era Chávez, hoje se tem um dos mais baixos. O governo até agora não conseguiu dar os aumentos que a população anseia ao mesmo tempo que reivindica o bom desempenho da economia (treze trimestres de crescimento continuo), o que retroalimenta em parte a insatisfação. No entanto, os baixos salários por si só não explicam como um candidato desconhecido, sem carisma, de saúde abalada, que quase não fez campanha, tenha conseguido dar à extrema-direita essa votação.

Oscar Shémel, diretor do instituto de pesquisa Hinterlaces fala do “voto neurótico”. Segundo ele, a guerra contra a Venezuela não é somente política, econômica e militar, mas multidimensional, onde o fator comunicativo, a “guerra cognitiva”, ocupa um papel fundamental. O ataque incessante via redes sociais impede as pessoas de pensarem, confunde-as, desconectando-as da realidade. O resultado é ansiedade, raiva, frustração e ódio, sentimentos que a mídia conseguiu dirigir contra aquele que foi transformado no objeto da neurose das pessoas, o Presidente Maduro. Num fenômeno irracional parecido ao da Argentina que elegeu Milei, uma porção da população foi votar para tirar Maduro de uma vez e do jeito que fosse. “Vamos acabar com isto de uma vez”. O que faltou a Schémel nessa análise foi incluir as falhas (burocracia, corrupção e deficiência nos serviços públicos) como elementos que também contribuíram para alimentar a neurose. Entenda-se que várias dessas falhas que geram mal-estar na população vêm de longa data numa confusa mistura de falta de sensibilidade política de certos dirigentes e funcionários, antivalores e ações contrarrevolucionárias de pessoas que propositalmente agem contra o governo, afetando a imagem da revolução. O governo sabe desses problemas, mas não fica claro se tem dificuldades para encontrar soluções ou se subestima seu impacto negativo na população. É como se a confiança nas indiscutíveis virtudes e fortalezas da revolução gerassem uma espécie de “conformismo revolucionário”.

Reafirmando a soberania e a independência da Venezuela, a Revolução Bolivariana vem fazendo um esforço para revalorizar “O afirmativo venezuelano” (Augusto Mijares). A questão é que não se percebe ou não se dá a devida importância à necessidade de reafirmar o sentimento nacional patriótico e o amor pela Pátria, na excelência e bom funcionamento de tudo o que se faça, sobretudo nos serviços públicos e na infraestrutura do país. Poder fazer o exame, o raio X ou ter o medicamento hoje e não na semana ou no mês que vem, faz a diferença entre o humanismo revolucionário e o burocratismo. Por que o povo necessitado que todos reivindicam como a “prioridade” deve ter paciência e esperar?  Para que se entenda. Imaginem um cidadão chinês saindo de uma das espetaculares estações de trem de alta velocidade e que seja abordado por um agitador político de direita para falar mal da “ditadura” do país. Esse cidadão que acaba de viver uma experiência futurística gratificante olhará na cara desse agitador e o ignorará. Meus compatriotas chavistas, por razões várias, parecem subestimar a importância dessas vivencias concretas para as pessoas, esperando as vezes um apoio quase religioso para a causa revolucionária. Uma e outra vez esquecem que foi o próprio Chávez quem afirmou: “O socialismo deve ser humanamente gratificante”.  Nós que tanto nos orgulhamos da resistência do povo venezuelano, devemos pensar em termos de “amor estratégico” e nos convencer que quanto mais gratificante seja a vida do povo, mais força terá o exemplo da Venezuela no mundo como Pátria rebelde, livre, soberana e independente.

A genialidade humana do Comandante Chávez estava nesse dom especial de ver ao mesmo tempo além (a geopolítica mundial) e aquém (os dramas cotidianos do povo). Tentemos ser como Chávez.

Os problemas existentes estão na preocupação de dirigentes históricos como Elías Jaua que foi vice de Chávez. Numa entrevista recente falou sobre “as retificações necessárias” para atender melhor o povo. O assunto foi inclusive tema de debate na última campanha eleitoral por parte de uma nova corrente dentro do chavismo, o “Movimento Futuro”. Integrado por vários ministros e dirigentes da revolução, seu principal porta-voz o atual Ministro de Educação, Hector Rodriguez, foi bem explícito: “Não pensamos pedir licença nem perdão por criticar o que tenha que se criticar”. Até o próprio Presidente Maduro tem reclamado de problemas locais de fácil solução que depois de muito tempo ele teve que resolver porque as instâncias e equipes intermediárias não o fizeram. O Presidente vem criticando o que ele chama de “minimalismo”. Trata-se dessa atitude de certos dirigentes e funcionários de fazerem o mínimo, apenas para cumprirem, com suas tarefas.

Neste momento estão acontecendo assembleias por todo o país reunindo as cinco gerações envolvidas na revolução (desde os guerrilheiros dos anos 60 até a gurizada mais nova), visando uma série transformações a curto, médio e longo prazo, onde se destaca a necessidade de construir um Novo Estado mais eficiente e dinâmico. Em termos gramscianos, o Presidente refletiu que, após 25 anos de revolução, o velho Estado não terminava de morrer e que o novo parecia não querer nascer, pois até agora apenas tinham aparecido alguns germes. Maduro propõe dar um novo impulso nos próximos 6 anos a esse Novo Estado de caráter Social e Popular rumo ao “Estado Comunal”. Mais democracia direta, alicerçada em tomadas de decisão no espírito do Orçamento Participativo (Programa Maduro + Nº 61). O Presidente quer que mais de 70% do orçamento público seja entregue diretamente ao Poder Popular. Isso faz lembrar “O Estado e a Revolução” de Lenin e o projeto de devolver à sociedade o poder original que foi apropriado pelo Estado ao longo da história. Apesar de interessante, vemos essa proposta com “o otimismo da vontade e o pessimismo da razão” (Gramsci). 12 anos atrás o próprio Chávez impulsionou uma sacudida na revolução, o “Golpe de Timão”, que tinha na “Comuna ou nada” sua ideia mais importante. 12 anos depois, embora se fale do aumento numérico das comunas, não se percebe seu impacto na solução, estável no tempo, dos problemas cotidianos das pessoas. A transferência de recursos trará novas contradições e disputas egoístas porque segue muito embrionário “o espirito da comuna” que segundo o próprio Chávez “é muito mais importante, neste momento, que a Comuna mesma”. Sem a “cultura comunal” dificilmente o poder popular poderá tornar-se dono coletivo do Estado. Essa pedagogia política e cultural tem sido descuidada como o revelam os conjuntos habitacionais entregues por todo o país. Na maioria deles os antivalores capitalistas seguem muito presentes, ao ponto de que nas eleições passadas, pessoas dissociadas e desagradecidas se manifestaram contra o governo apesar de terem recebido casas confortáveis de forma gratuita. A síndrome dos “pobres de direita”.

Estas reflexões sobre a humanista Venezuela Bolivariana que defendemos, são heréticas. Apesar da alta votação recebida pela extrema-direita, poucas pessoas da vanguarda bolivariana falam no assunto. Um dos intelectuais mais importantes do país, Luis Britto Garcia, fez breves comentários. Apontou que o nível de abstenção foi mais elevado e o qualificou como “um voto negativo cujo sentido devemos interpretar”. Contrastando os resultados em suas fortalezas e debilidades, Luis Britto afirmou: “nosso sistema político socialista tem produzido resultados esplêndidos que temos comentado e comemorado. Ao mesmo tempo, tem mostrado vulnerabilidades internas inaceitáveis”. (http://luisbrittogarcia.blogspot.com/2024/08/mas-verdades-electorales.html).

Em 2004, numa eleição que Chávez ganhou por mais de 5 milhões (a direita obteve mais de 4), Fidel Castro comentou a seu amigo: “Chávez, na Venezuela não pode haver quatro milhões de oligarcas”. Cinco anos depois (2009) em outra eleição que Chávez também venceu por mais de 6 milhões (a direita mais de 5), o falecido jornalista José Vicente Rangel que foi vice de Chávez, parafraseou Fidel num artigo: “Cinco milhões de oligarcas? ”. Rangel alertava naquela ocasião: “algo não está marchando bem”.

Nas recentes eleições três coisas ficaram muito evidentes: 1). O apoio popular de 52% à Revolução Bolivariana é indiscutível; 2). Não há 43% de oligarcas; 3). Tem coisas que seguem sem marchar bem.

Para uma revolução no poder, assediada por fora e por dentro, o perigo dessas vulnerabilidades chama-se fascismo. Dada a proliferação de movimentos fascistas pelo mundo, muitos companheiros de luta vêm repetindo, como sinal de firmeza e radicalidade, uma frase que se tornou popular: “fascismo não se discute. Fascismo se combate”.  A pergunta é, Como?

No plano militar, a Rússia na Ucrânia está dando um bom exemplo. No plano político, a Venezuela e outros países vêm implementando um conjunto de medidas legais para impedir que os fascistas se aproveitem do Estado de Direito para promover o ódio e a violência, incluída a utilização das redes sociais. Como já disse o influencer brasileiro Felipe Netto, o lucro que alimenta os algoritmos que promovem o ódio só se pode enfrentar com leis firmes que regulamentem seu funcionamento.

No plano social a coisa é mais complexa. As necessidades materiais e espirituais que o capitalismo não satisfaz e são por ele promovidas via propaganda de consumo, geram insatisfações e frustrações permanentes que parecem ser subestimadas pela vanguarda. Nos anos 30 quando Trotski tentou alertar sobre o perigo fascista na Alemanha, afirmou: “Se o partido Comunista é um partido de «esperança revolucionária», o fascismo, como movimento de massas, é então um partido de «desespero contrarrevolucionário»”. A vanguarda bolivariana parece não estar valorando o peso desse desespero neurotizante na população, descuidando a qualidade e efetividade das respostas, achando que com denunciar o discurso falso e hipócrita da extrema direita será suficiente para conquistar o apoio da população. No Podcast do Presidente Maduro com Diego Ruzzarin e Juan Carlos Monedero, este último mencionou duas lições: 1. O fascismo vence quando a esquerda se divide; 2. “No auge do fascismo sempre há um erro das esquerdas que não fizemos bem nossas tarefas”.

O chavismo estará fazendo as tarefas?  Respondamos com outra pergunta: Descartada a minoria oligárquica e outros setores ricos e médios com muito dinheiro e interesses obscenos, por que mais de 30% dos eleitores (somados os que se abstiveram), não se identificam com a generosa ideia de Bolívar de construir uma sociedade que ofereça às pessoas “a maior soma de felicidade possível”? Seguimos sob ameaça. Na resposta a essa pergunta poderemos encontrar juntos, povo e vanguarda, a chave para que a Revolução Bolivariana se torne “irreversível” como defendia o jovem deputado Robert Serra, assassinado cobardemente pela direita.

Estas são as nossas verdades sobre a Venezuela realmente existente. Olhares, vivencias e críticas construtivas na defesa de sua revolução que acima de tudo luta pela vida.

(*) Anisio Pires, sociólogo venezuelano (UFRGS/Brasil), professor da Universidade Bolivariana da Venezuela (UBV)

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