Por Raimundo Pires Silva (*)
Carlos Fávaro, ministro da Agricultura, vem preconizando alguns desafios primordiais da pasta. A questão da continuidade dos antecessores e de manter a qualificação dos servidores em pensar o agronegócio mirando um agro sustentável, que respeite o meio ambiente, que cumpra os preceitos legais. O diálogo para se construir pontes entre os setores do agro com o presidente Lula, com a ministra Marina Silva e com todos outros ministérios.
Em entrevista à Veja (publicada em 13/01/23 no site da revista), não dá margem a dúvida ao afirmar que todos aqueles que pensarem dessa forma terão portas abertas no governo, pondo em evidência que aqueles que desmatam e tocam fogo ilegalmente são os mesmos que, agora, atentam contra a democracia, e que ações extremistas sejam tratadas ao rigor da lei. No bojo do anseio de construção de conexões, realizou uma reunião consensual com MST sobre a legitimidade da reforma agrária dentro dos aparatos legais, pois defende que a reforma agrária bem-feita funciona – nesta questão, lembra o personagem da novela Rei do Gado, da TV Globo.
E restaurar a imagem negativa externa do agronegócio diante prerrogativas das pressões sociais, políticas e econômicas de caráter ambiental, pois o agronegócio, no seu limiar econômico, encontra-se na dianteira do colapso dos bens da natureza (solo, água, biodiversidade e clima). Os acontecimentos nefastos aos bens da natureza no território rural se agudizaram a tal ponto nos últimos anos que se reduz o tempo histórico para tentar impedir e conter o processo desastroso das mudanças climáticas.
Fávaro participa do Fórum Global para Alimentação e Agricultura (GFFA), em Berlim, com a perspectiva de reaproximação com a comunidade europeia, passando a mensagem de mudanças nas diretrizes brasileiras para meio ambiente.
O ministro quer consolidar a imagem mítica do agro (amplamente difundida na mídia), fundamental para o desenvolvimento sustentável do país, que conjuga a produção agrícola e agroindustrial com a sustentabilidade dos biomas nacionais, com a geração de divisas para a solvência da balança de pagamentos.
E por que esse esforço institucional?
Primeiro, para escamotear que o agro se constitui em uma atividade econômica cosmopolita, ancorada na diferenciação fundiária (hegemonia territorial do latifúndio na apropriação das rendas de produção e da terra) e na remota concentração da riqueza e da renda, e provoca a simplificação da natureza (monoculturas se expandindo nos biomas nacionais são expressões desse processo). Em síntese, retoma na contemporaneidade as remotas bases do subdesenvolvimento e da dependência nacional.
Segundo, para camuflar que agro se conforma em uma atividade econômica associada e dependente ao capital global, resignado em Cadeias Globais de Valor (CGV), dispersa alhures na economia mundial, sob crescente controle da produção e circulação pela autorregulação dos oligopólios de abastecimento e de insumos agrícolas, e tampouco se socializa a distribuição do valor e do excedente.
Um sistema global que chega a cada canto do país com formas e normas estabelecidas para servi-lo, sendo a causalidade de processos qualitativamente conexos. A desindustrialização concomitante com a especialização primário-exportadora em poucas commodities: grãos de ração (soja e milho), carnes (bovinas, suínas e aves), açúcar e álcool, papel e celulose, café e suco de laranja. O outro, a concentração do capital global nos mercados agrícolas e agroindustriais, ao mesmo tempo que se persegue a forma líquida do dinheiro, ou seja, a liquidez como condição plena de mobilidade setorial e internacional. Sob auspícios da renda financeira, a commodity agrícola vem se configurando como forma fictícia e abstrata de capital, ganhando características virtuais, se integrando plenamente no circuito especulativo, enquanto geração de riqueza.
A complexidade econômica e geopolítica das cadeias globais agrícolas no país sugere características imperialistas e dependência.
Terceiro, a crise ambiental ter solução nos marcos do sistema de acumulação vigente. A julgar que os mercados externos estão cada vez mais exigentes com a sustentabilidade dos biomas nacionais e, paradoxalmente, a agricultura vem se tornando vítima da desregulação climática, ou seja, a frequência e a intensidade dos extremos climáticos vêm diminuindo, significativamente, a produtividade agrícola – o ambiente econômico do agronegócio encontra-se desestruturado por problemas ambientais. Assim, para o ministro, urge que se inicie a transição para uma produção de baixo carbono, resiliente e adaptada às mudanças climáticas e concomitante se construa bases políticas e econômicas para o mercado externo.
O horizonte setorial de caráter ambiental em construção pelo ministro nos traz a indagação sobre a possiblidade de transição do agro atual para agro sustentável, tendo em conta que, para os bens da natureza (solo, água, biodiversidade e clima), o agronegócio se assemelha a um feiticeiro incapaz de dominar as forças que invocara.
O avanço sobre a natureza é o status quo do padrão de acumulação hegemônico no território rural, colocando o agrário nacional numa crise ecológica sistêmica sem sinal de superação, fazendo surgir outros paradigmas, principalmente no campo ecológico. Apesar do território rural estar, praticamente, racionalizado de forma global numa corrida aos recursos naturais, paradoxalmente, ocorre uma conflitualidade entre aqueles que querem a terra para produção de commodities agrícolas e os que querem a sustentabilidade dos bens da natureza e soberania alimentar.
Para concluir, penso que estamos diante de uma política setorial de reformulação social, política, produtiva e ambiental da antinomia do agro, qual o propósito se aproxima com o que Gramsci chamava de “revolução passiva”, processos de transformação em que ocorre uma conciliação entre as frações modernas e atrasadas das classes dominantes, seguindo a lógica de Lampedusa: “se quiser que as coisas continuem como estão, as coisas precisam mudar”[1].
Uma nova postura da elite agrária cosmopolita sobre o papel do Estado, ressignificando o modelo estatal neoliberal. Parafraseando o professor Nelson Carlos Coutinho, trata-se do predomínio do privado sobre o público, um predomínio ainda maior do que aquele vigente no velho tipo de Estado “varguista”.
(*) Raimundo Pires Silva é consultor da FESPSP, diretor da ABRA e militante do PT.
[1] Frase de Don Fabrizio Corbera, o Príncipe de Salina, um dos personagens do livro O Leopardo. de Giuseppe Tomasi di Lampedusa