“Vamos pedir piedade. Senhor, piedade! Pra essa gente careta e covarde!”
(Blues da Piedade, Cazuza)
Leny Valadão (*)
Estreou recentemente na Netflix o documentário Carta para além dos Muros, título inspirado em cartas escritas pelo escritor Caio Fernando Abreu e publicadas no jornal Folha de São Paulo na década de 90. O documentário traz um apanhado interessantíssimo de entrevistas com médicos, homens e mulheres de diferentes orientações de gênero e sexuais, que refletem sobre os 30 anos da AIDS no Brasil, desde o primeiro diagnóstico até os desafios atuais.
Falando assim, por alto, parece se tratar de um documentário de biologia, médico, mas na realidade o filme nos joga em uma reflexão profunda, complexa e polêmica a respeito do valor social dos corpos na sociedade pós-HIV.
Desde sempre, como destaca Foucault em História da Sexualidade, a sociedade capitalista atribui um valor hierarquizado ao corpo humano. Há os desejados (limpos, saudáveis) e os não desejados (sujos, vetores de doenças e objetificados). E, claro, lá no século XIX o corpo indesejado é o da classe operária, essa “praga”, com a única serventia de ser a engrenagem que falta à máquina. As políticas higienistas das cidades no fim do século XIX e início do XX partem deste pressuposto de que o corpo subalterno, operário – no Brasil, acrescente-se o corpo negro – não podem permanecer nos mesmo lugares que o belo, saudável e desejável corpo da burguesia. Assim se destrói os cortiços do centro do Rio de Janeiro, por exemplo, jogando estas populações à margem, ao morro. Essa mesma visão também serve para embasar a perseguição aos judeus, ciganos, doentes mentais, deficientes físicos e homossexuais durante o nazismo – tratados médicos, explicações ditas científicas justificavam a ideia de superioridade da raça ariana, reforçando este valor hierarquizado do corpo humano.
O que se tem é que essa hierarquização do corpo traz consigo um interesse político e social, o qual exclui e elimina os corpos não desejáveis na sociedade. Isso alimentou e alimenta os genocídios por aí no mundo, pois grupos marcados por questões raciais, culturais ou sexuais tornam-se este corpo subalterno, esta “praga” a ser eliminada do convívio com a burguesia.
Quando chegamos na década de 80, o aparecimento da AIDS de forma tão misteriosa e fatal perturba os médicos infectologistas e gera polêmica por toda a sociedade. A narrativa que cerca a epidemia de HIV nos anos 80 é a dos “grupos de risco”, os 5 “H”: Homossexuais, Hemofílicos, Haitianos, Heroinômanos (usuários de heroína) e “Hookers” (profissionais do sexo). O que se dizia e entrava no imaginário social é que a AIDS era uma doença que afetava esse “tipo” de gente e, tirando os infectados “por engano” em uma transfusão sanguínea, a doença servia como “castigo” àqueles que ousavam utilizar-se de seus corpos com a finalidade do prazer – fosse sexual, fosse por meio das drogas.
Toda essa ideia permeou o senso comum a respeito do HIV, dificultou a disseminação das informações corretas sobre o contágio, marginalizou os infectados e caiu como uma luva para os moralistas defensores da família e dos bons costumes. Mesmo com o avanço da medicina nos medicamentos que possibilitam uma vida normal aos soropositivos e com o avanço, no Brasil, das políticas de distribuição dos coquetéis entre a década de 90 e de 2000, a doença estigmatiza o doente e seu corpo não é bem-vindo. Seu corpo é “sujo” porque revela sua “imoralidade”. Ainda que atualmente, sob tratamento, as pessoas soropositivas sequer transmitam o vírus e sequer o vírus é detectável nos mais avançados exames, o HIV é a “estrela de Davi” que identifica quem deve ser eliminado da sociedade.
Depois de 30 anos, o HIV é uma doença altamente controlável e que permite uma vida normal para o soropositivo. Mas o preconceito segue firme. A ideia de que estes corpos são indesejáveis, ofensivos a uma sociedade burguesa cristã e às famílias está no discurso do atual governo brasileiro. Desde o início de 2019, a área de combate à AIDS dentro do Ministério da Saúde vem perdendo status e recursos. Em maio do ano passado a área passou a ser responsável por combate a doenças que não são transmitidas sexualmente, como a tuberculose, o que significa na prática o rateio dos recursos destinados ao HIV com a prevenção e tratamento de outras doenças. O ministro da saúde declarou em uma oportunidade que as campanhas de combate à AIDS não deveriam ofender as famílias brasileiras, e em vídeo em outubro do ano passado o presidente do Brasil declarou ser contra a distribuição gratuita dos medicamentos de tratamento do HIV – os quais são distribuídos gratuitamente desde 1996. Tudo isso enquanto no Brasil tem-se um aumento considerável da transmissão do vírus entre os jovens de 15 a 24 anos. Tudo isso em nome da preservação dos valores morais da família tradicional brasileira.
É disso que trata “Carta para além dos muros”. A quem serve manter a ignorância em torno da AIDS, das formas de contágio e da eficácia do tratamento? Quem se beneficia com o discurso totalmente arcaico de grupos de risco? Por que manter os soropositivos à margem, como corpos sujos e imorais? O documentário nos convida a esta reflexão e coloca a luz no grande problema: o silêncio sobre a AIDS. Com a hashtag #precisamosfalarsobreisso o filme nos impõe o dever de combater essa hierarquização e marginalização dos corpos humanos e lutar contra o verdadeiro genocídio que é causado pelo preconceito em torno da AIDS – até hoje.
(*) Leny Valadão é diretora do Sindicato dos Bancários de Brasília, historiadora e mestranda em História na Universidade de Brasília