Por Luis Roberto de Paula (*)
A participação indígena em processos eleitorais é um assunto que tem chamado cada vez mais a atenção. Recentemente tivemos a eleição para o cargo de deputada federal de Joênia Wapichana (REDE-2019-2022), Sônia Guajajara e Celia Xacriabá (PSOL-2022-2026). Joênia não conseguiu a reeleição – e hoje ocupa a Presidência da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) – enquanto Sônia Guajajara está licenciada do cargo de deputada e ocupa a função de ministra do Ministério dos Povos Indígenas no atual governo.
De maneira menos conhecida junto ao público mais amplo, a participação indígena em processos eleitorais municipais – como os que se avizinham – possui uma longa tradição. Desde pelo menos os anos 1970 os indígenas no Brasil vêm lançando candidaturas e conquistando um conjunto significativo de mandatos junto aos poderes executivo e legislativo municipais. Há trabalhos disponíveis na internet que discutem essa complexa participação indígena na esfera municipal.
Evolução das candidaturas indígenas
Para termos uma ideia de uma das dimensões que compõem esse fenômeno, apresentamos um mapeamento preliminar das 2.546 candidaturas de pessoas que se autodeclararam indígena junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para concorrer aos cargos de prefeito, vice e vereador neste ano.
O Gráfico1 apresenta a evolução da totalidade das candidaturas autodeclaradas indígenas aos três cargos, retomando mapeamentos já realizados sobre as eleições de 2016 e 2020. Nota-se que afora a pequena queda no número de candidaturas autodeclaradas indígenas ao cargo de vice-prefeito em 2020, os demais cargos mantêm a tendência de crescimento.
Importante que os leitores entendam que a expressão “candidaturas autodeclaradas indígenas” implica que o Tribunal Superior Eleitoral – diferente de outras instituições que possuem políticas públicas voltadas para povos indígenas -, não obriga que os candidatos especifiquem suas comunidades étnicas de origem. Basta assinalar na ficha de inscrição da candidatura junto ao TSE a opção “indígena”. Apesar dessa não obrigação, a grande maioria do conjunto aqui analisado indicou sua respectiva etnia, o que permite termos uma estimativa de quais das mais de 300 etnias existentes estão participando do processo eleitoral.
Um outro aspecto importante a ser notado nos dados apresentados pelo TSE neste ano é o fato de que no universo total de candidaturas autodeclaradas indígenas, um conjunto significativo delas se encontram na condição de “aguardando julgamento”. Isso implica que o número de candidaturas identificadas muito provavelmente sofrerá mudanças ao longo dos próximos dias, a partir da decisão final do TSE sobre um subconjunto de mais ou menos 450 candidaturas indígenas. Além de trazer complicações às campanhas (Gráfico 2).
Candidaturas indígenas e Partidos
O Partido dos Trabalhadores (PT) é novamente o partido com maior número de candidaturas autodeclaradas indígenas lançadas junto aos poderes executivo e legislativo municipais (350), seguido pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB) com 232 e Partido Progressista (PP) com 185, mesma sequência de 2020. (Gráfico 3).
Ainda no campo dos partidos que se autoproclamam mais próximos à agenda de defesa dos direitos indígenas, identifica-se a Rede de Sustentabilidade (Rede) e o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) como escolhas partidárias locais importantes para os povos indígenas nessas eleições, mantendo a tendência de crescimento verificada nas eleições de 2020.
Destaca-se ainda o aumento significativo de candidaturas autodeclaradas indígenas pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) e de maneira bastante curiosa identifica-se um salto de candidaturas lançadas pelo Partido da Causa Operária (PCO) em municípios do Mato Grosso do Sul.
Na contramão dessa tendência de crescimento de candidaturas autodeclaradas indígenas no campo de partidos, digamos, de natureza ‘progressista’, o PCdoB apresenta um queda acentuada.
Em geral, as escolhas partidárias indígenas ecléticas são fundamentalmente contextuais, porque baseadas prioritariamente no cálculo pragmático de suas lideranças diante da (des)organização das forças político-partidárias arranjadas local e regionalmente. Não por acaso, no campo dos partidos ideologicamente classificados como conservadores (e, portanto, normalmente refratários aos direitos indígenas), observa-se também o aumento significativo das candidaturas autodeclaradas indígenas por partidos como PP, União, Republicanos e PL.
Note-se que na parte de cima do Gráfico 3, os 8 partidos apresentados em sequência – PMN, PTC, Patriota, PSL, PROS, PSC, PTB, DEM – aparecem com zero candidaturas autodeclaradas indígenas nessas eleições, apesar de terem ocupado lugar importante nas escolhas partidárias indígenas nas eleições de 2020. A explicação é bastante simples: tais partidos foram extintos e deram origem a novas agremiações politicamente conservadoras (por exemplo, União e PRD).
Candidaturas indígenas e cargos
A quantidade de candidaturas autodeclaradas indígenas aos cargos de prefeito, vice e vereador em cerca de 10% dos municípios que compõem o território nacional, indica em alguns deles a forte presença de eleitores indígenas.
O Gráfico 4 apresenta as candidaturas indígenas somente ao cargo de vereador em 2024 em alguns municípios selecionados e as compara com as candidaturas ao mesmo cargo em 2020. Os números expressivos e cada vez maiores de candidaturas indígenas lançadas para concorrer especificamente a esse cargo parece como algo dissonante quando observamos as eficazes estratégias políticas que lideranças indígenas vêm construindo ao longo de décadas de participação eleitoral em processos municipais.
O aumento exagerado de candidaturas indígenas na mesma base eleitoral implica na dispersão de votos indígenas e, por decorrência, no automático benefício às candidaturas não-indígenas nos mesmo municípios. Tudo indica que grande parte das lideranças indígenas nacionais, regionais e locais está bastante consciente do quanto tal estratégia de excessos de candidaturas indígenas é prejudicial a conquista dos futuros mandatos indígenas. Portanto, a explicação para a insistência nesse tipo de estratégia deve ser buscada em outros tipos de variáveis que compõem a participação indígena em processos eleitorais municipais, tanto nas de ordem interna (disputas políticas entre os grupos indígenas), como naquelas relacionadas à obtenção de cargos e seus respectivos salários. Se a hipótese da fragmentação da base eleitoral indígena vier a se concretizar, ainda mais num contexto de relativa estagnação da quantidade de candidaturas lançadas, é muito provável que os povos indígenas conquistem nessas eleições municipais menos mandatos do que aqueles conquistados em 2020.
Em termos de disputa pelo poder executivo municipal, há casos de disputas entre indígenas da mesma etnia por partidos “rivais”. São exemplo o que ocorre em São Gabriel da Cachoeira (AM), Uiramutã (RR), Carnaubeira (PE) e Jacareacanga (PA). Ao lado de São Gabriel da Cachoeira, o município de São João das Missões (MG) já se tornou uma “situação clássica” de participação indígena em processos eleitorais. Uma possibilidade interessante de ‘sucesso’ eleitoral indígena ao principal cargo de prefeito pode ocorrer entre os Xerente em Tocantínia (TO) e os Xavante em Campinápolis (MT).
Importante notar, ainda, que de maneira tímida diversas capitais do país têm apresentado crescimento de candidaturas autodeclaradas indígenas, como são os casos de Manaus, São Paulo, Salvador e Rio de Janeiro. Note-se que, em sua totalidade, são candidaturas distantes das suas bases étnicas de origem.
Candidaturas indígenas e etnia de origem
Das 305 etnias reconhecidas hoje oficialmente pelo Estado brasileiro, pelo menos 100 lançaram candidaturas ao executivo e legislativo municipais em 2024 em mais de 500 municípios brasileiros. As 10 primeiras etnias que constam no Gráfico 5 são aquelas que mais lançaram candidatos indígenas aos três cargos em disputa. As demais etnias indicadas na sequência são apenas exemplos ilustrativos da diversidade étnica e dos estados envolvidos na participação indígena no processo eleitoral em curso. Aparecem também indicadas no gráfico quatro candidaturas referenciadas no TSE como “etnias estrangeiras”, bem como a quantidade aproximada de 520 candidaturas sem informação da condição étnica específica.
Mulheres indígenas nas eleições de 2024
Por fim, demonstrando o processo de ‘aldeamento da política’ capitaneado por mulheres indígenas como Sonia Guajajara, Joenia Wapichana, Celia Xakriabá , Vanda Witoto, Chirley Pankará, dentre tantas outras que atuam nas mais diferentes dimensões do campo político nacional e local, os dados disponibilizados pelo TSE até o momento confirmam o aumento não só do total de candidaturas de mulheres autodeclaradas indígenas (954 – Gráfico 6), como junto aos cargos de prefeita (8 municípios – Tabela 1) e vice-prefeita (29 municípios). As demais candidaturas são para o cargo de vereadora (917).
Consideração final
Esse mapeamento preliminar das candidaturas autodeclaradas indígenas no processo eleitoral municipal deste ano revela que os povos indígenas no Brasil consolidam a opção pelo “aldeamento da política”, expressão cunhado pelo movimento indígena nacional há alguns anos.
Além disso, traz pistas para que todos os interessados nesse tipo de dinâmica possam se sentir estimulados a acompanhar mais de perto este fenômeno sociopolítico e cultural, que ainda permanece relativamente pouco conhecido na sua especificidade fora dos meios acadêmico e indigenista.
(*) Luis Roberto de Paula é antropólogo, pesquisador e docente do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Mundial da Universidade Federal do ABC. luis.roberto@ufabc.edu.br