Por Daniel Valença (*)
Ao longo de 2019, em alguns países da América Latina, a direita e a extrema direita avançaram; em outros, amplas massas nas ruas colocaram os governos neoliberais em xeque. Além disso, a vitória eleitoral do peronismo na Argentina, a resistência chavista na Venezuela e sandinista na Nicarágua, bem como o início do mandato de López Obrador no México demonstram que a ofensiva reacionária contra os governos progressistas e de esquerda na região não foi o fim da história iniciada em 1998.
Por outro lado, o avanço cada vez mais incisivo do capital sobre o trabalho e a crise política em âmbito internacional tendem a trazer ainda mais instabilidade, conflitos e imprevisibilidade e para a região, que carrega em sua história diversos golpes de Estado e revoluções. Ante a esse contexto, nos debruçaremos sobre alguns dos principais processos políticos em curso, correndo o risco de nos vermos surpreendidos por alguma nova sublevação popular ou restauração conservadora.
A principal conquista das elites oligárquicas e do imperialismo norte-americano em 2019 na região foi, sem dúvidas, o golpe de Estado na Bolívia. Sob o pretexto de fraude eleitoral e com a colaboração da Organização dos Estados Americanos (OEA), lideranças cívicas empresariais e latifundiárias, setores religiosos, a polícia e as forças armadas, promoveram um golpe de Estado que elevou a senadora racista Jeanine Áñez à presidência do país.
Do episódio, ressalte-se que Evo em momento algum convocou as massas indígenas-originárias-camponesas para defender o governo do golpe de Estado, apostando em clamar pela “paz” e pelo “diálogo com respeito à democracia”. A ingenuidade e o republicanismo (semelhantes ao que vimos no Brasil, quando o lema era “não houve crime, não haverá impeachment”) custaram caro: quando amplas massas indígenas camponesas se mobilizaram para defender o processo de transformações vivenciado pela Bolívia, o governo interino tratou de assassinar a trinta e cinco indígenas mobilizados.
Aqueles que viam a repostulação do líder cocaleiro como afronta à democracia, calaram ante ao genocídio de dezenas de civis indígenas por militares golpistas. Telesur, RT Internacional e dezenas de rádios comunitárias tiveram suas frequências de transmissão cortadas. Centenas de presos e perseguição ferrenha a cada liderança do MAS-IPSP e das organizações completam o cenário do golpe.
Neste momento, o governo golpista, com a complacência do Tribunal Plurinacional da Bolívia e da presidenta da Congresso, Eva Copa (do MAS-IPSP, partido de Evo) prolongou seu próprio mandato até a posse daqueles que serão eleitos em 3 de maio de 2020. Assim, Jeanine Áñez tende a ser a principal candidata da oposição, desbancando a Carlos Mesa, que deverá se tornar o “Aécio boliviano” – a principal liderança política à época da trama do golpe de Estado e que se vê varrida pela extrema direita que ele próprio credenciou.
Quanto ao cenário eleitoral, o MAS-IPSP aparece em primeiro lugar nas pesquisas (ao redor de 20%), mesmo sendo a disputa entre nomes das oligarquias já postos desde o pleito de outubro e a sigla (ou seja, sem nomes). A direita deverá partir pulverizada para o pleito: Jeanine Áñez, Carlos Mesa, Luis Fernando Camacho, são alguns dos nomes.
Do outro lado, o MAS-IPSP decidiu pelo binômio Luís Arce Catacora, ex-ministro de economia de Evo Morales e David Choquehuanca, ex-canciller. A escolha não respeitou a decisão do ampliado (congresso) do MAS-IPSP e das organizações sociais, que havia deliberado por David Choquehuanca – que tem o respaldo do campesinato indígena de La Paz – como presidente e Andrónico Rodríguez como vice, liderança do campesinato indígena do Chapare, em Cochabamba. Se este binômio representava o núcleo duro do MAS-IPSP e dos movimentos indígena-camponeses, a opção por Arce se volta a tentar conquistar setores médios e não afins ao MAS.
A escolha poderá ampliar o leque de votos do MAS, mas também poderá fazer a sigla perder votos e empenho militante em sua base histórica. Ressalte-se, também, que no dia seguinte ao anúncio da candidatura o Ministério Público anunciou a “ampliação das investigações” contra Arce e Juan Ramón Quintana, outro ministro do governo Evo. Uma vez mais, o lawfare se revela como arma política decisiva na região.
No Chile, as ruas voltaram a ser das classes trabalhadoras, décadas após a tragédia de 1973. Mesmo sob a forte repressão que, segundo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos – CIDH, deixou ao menos 26 mortos, 12600 feridos e mais de duzentas pessoas com sequelas oculares, os protestos massivos fizeram o governo Piñera recuar e ceder direitos nas esferas da educação, saúde e previdência.
Esta ditadura neoliberal também foi obrigada a convocar uma assembleia constituinte para elaborar um texto constitucional que substitua o atual, vigente desde a ditadura de Pinochet. No entanto, se a lógica jurídica é que o instituinte determina o instituído, que o poder originário (assembleia constituinte) impõe as regras gerais ao poder derivado (legislativo), o acordo governo Piñera-legislativo convocou uma constituinte que só poderá ter seu texto aprovado com o aval de 2/3 dos parlamentares, o que restringe possibilidades de transformações radicais.
O Partido Comunista do Chile e várias outras organizações divergiram e não participaram do acordo. Provavelmente, assistiremos em 2020 à continuidade da resistência chilena por uma constituinte realmente originária, pela deposição de Piñera e pela punição pelos crimes de lesa-humanidade cometidos ao longo de 2019 contra o povo chileno. Por fim, quanto ao Chile, não custa lembrar que o Partido Socialista participou dos governos que sucederam a ditadura e optou pela transição consentida. Ou seja, ao longo de duas décadas de governos com a participação ou liderados pelos socialistas, optaram por deixar intocáveis os pressupostos neoliberais e a ordem constitucional instituída pela ditadura chilena, sob o argumento da correlação de forças desfavorável e da política possível para aquele momento. Por pouco, a sublevação popular não estoura em um governo Bachelet.
Na Argentina, a resistência realizada pelos sindicatos, mulheres, juventudes, as inúmeras greves gerais contra cada avanço do governo Macri, levaram a uma mudança na correlação de forças e eleição de Alberto Fernández e Cristina Kirchner. Em pouco tempo de governo, ante à ameaça de blackout do agronegócio, impuseram limites à exportação do setor, beneficiando o mercado consumidor interno; criaram um plano de segurança social, voltado a garantir renda a idosos, redução do preço dos remédios e outras políticas redistributivas. Conformou-se, também, um grupo de trabalho para debater e avançar na proposta de legalização do aborto.
O México, país da lendária primeira revolução social do século XX cuja esperança retorna com a eleição de López Obrador, tem tido avanços na educação e saúde públicas, mas enfrenta dificuldades com a segurança e o crescimento econômico. Neste último período, sua altivez na política externa chamou atenção. O país não apenas se posicionou firmemente contra o golpe de Estado na Bolívia e concedeu asilo a Evo e membros de seu governo que permanecem na embaixada mexicana naquele país, como também articulou a refundação da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos – CELAC, buscando reposicionar a integração regional na agenda do continente.
Por fim, a Venezuela começou 2019 totalmente açoitada pelos Estados Unidos e viu o líder do legislativo se auto-proclamar presidente. Ao longo do ano, ocorreu a tentativa de invasão forçada da “ajuda humanitária de Guaidó”, o boicote elétrico que deixou o país no apagão, o aumento das sanções econômicas americanas, etc. Mas a Venezuela, que começou o ciclo de governos progressistas em 1998, resistiu até agora a toda sorte de conspirações. A virada do ano trouxe a derrota de Guaidó para a presidência da Asamblea (e, agora, também aqui ele se auto proclama presidente), bem como a expectativa de eleições parlamentares em 2020 com a recuperação da maioria no parlamento pelo chavismo, perdida nas eleições de 2015.
A experiência venezuelana nos revela que, com politização e organização da classe trabalhadora urbana e o controle das forças armadas, mesmo sob forte crise econômica, é possível resistir às investidas das oligarquias locais e do imperialismo. A derrota deste, seja na via eleitoral seja na tentativa da desestabilização, poderá levar os Estados Unidos a tentarem o último recurso: a intervenção armada. A conjuntura na Venezuela e nos Estados Unidos é que dirão se tal via será possível.
(*) Daniel Araújo Valença, professor do curso de Direito da UFERSA, coordenador do Grupo de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina-Gedic, Vice-presidente do PT/RN.