Epigrafia da contraparte perfeita
Repeti, o que guardara no coração, a frase dita pelo Sr Raul na mágica barbearia. Anaya, “a primeira evolução é o nascimento; a segunda a morte”. Ela novamente apertou, como contraparte perfeita, a minha mão. Depois, com o rigor das incertezas, disse-me, enquanto passávamos pelo túnel que permitia o acesso à Rua da Abolição,Dolincar, “ o primeiro amor é na juventude; o segundo na maturidade”.
Por Fausto Antonio (*)
Não sei se houve e ouvi, realmente, a frase que segue, de uma autoria externa. Talvez um anjo negro, substância do que sou, no (in) verso e no universo do corpo físico, tenha ditado ,num risco esculpido naquela caverna eterna, a sentença que,a mim, por longo tempo, veio como de autoria do Sr Raul Barbeiro. Registro a frase e, no contínuo, a sua relação direta e indireta com a memória enraizada e renovada pelo lugar. Palavras do Sr Raul: menino, “a primeira evolução é o nascimento; a segunda a morte”.
Como ele era velho e sábio, não deixei de internalizar, de imediato, que a mensagem fazia referência direta à morte e à velhice. A primeira porta do mistério estava aberta; a segunda se abriria, como uma iniciação, ocultando o dito. O tempo passou;o menino hoje é um velho. Crianças e velhos se encontram no requinte das memórias e no suntuoso nexo de inseparabilidade do espaço, que é sempre um balanço pendular indo e voltando da infância à velhice. Assim, o menino de ontem e o velho de hoje se encontram na Rua Barra Bonita, no Jardim Proença.
Por certo, a rua jamais será apenas um logradouro da cidade de Campinas. As memórias não empalham o passado que flutua retrospectiva e prospectivamente. Adicionalmente, a caverna se fecha e se abre na encruzilhada em T. Na esquina da Barra Bonita com Afonso Pena, avulta o Túnel que permite o acesso à Rua da Abolição. Os nomes, nas reentrâncias expandidas pelas memórias, derivam da paisagem imóvel ao incontido e dinâmico espaço geográfico. Há, então, simetricamente inseparável do espaço, os corpos negros que, no tempo circular da memóra, me acompanham e me devolvem renovado ao mágico passeio pelo tempo, que transita pelo antes, pelo depois e pela eternidade daqueles instantes fixados, por um sopro, e revistos pelas criações ou recriações das memórias intercaladas, sobrepostas e somadas ao espaço.
No T dos encontros, havia, no passado que ocupa o presente e o futuro, bem na esquina, a barbearia do Sr Raul. O espaço, lindamente celebrado nas memórias dos meus carvoeiros, era, é e será, sempre e desde sempre, o mítico Reino da Carapinha. Ali passávamos para cortá-las, aceitá-las e enrolá-las ao umbigo do que éramos no Reino da Carapinha. As memórias são o escuro e dele, precipitada, emerge a circularidade que é , sem um fixado início, meio e fim, a linha tênue do hoje, do ontem e do amanhã.
Na ressonância das precipitações, encontro do que há com o que não há, subi a rua mágica e atravessei o túnel. Antes, no entanto, na confluência das Ruas do Professor com Barra Bonita, na parte baixa da rua, lembrei, com Anaya, da festa junina, na década de 1970, no Salão de João Bento Martins; festa regada com viola, palmas e batidas de pé no chão. Os mais velhos diziam, o que vale para todo tempo, catira é coisa de preto. E o espaço, ocupado e praticado pelos pretos , é o quê? A coautoria, inicialmente circunscrita à recepção, levanta a voz autoral e diz que, no antigo “ Bairro dos Apertados”, tudo é coisa de preto.
Desse modo, as memórias seguem envoltas e em volta pelas futuras leituras e releituras. Outras memórias, então, sobem e descem e passam pelo escuro da criação; útero imantado pelo sangue, sopro e hálito. Feita a criação, é preciso a vivência do amor, que é o tambor ressonante do porvir. Mas no amor, Anaya, tudo se dá pelo avesso. Ela não disse sim ou não; ficou em silêncio e apertou, numa resposta afetiva e gestual, a minha mão.
Talvez,é bem provável, ela quisesse dizer que o amor se refaz pela contraparte; os contrários de dois seres que se queimam e, no entanto, se querem, sol e sol;fogo e fogo. Repeti, o que guardara no coração, a frase dita pelo Sr Raul na mágica barbearia. Anaya, “a primeira evolução é o nascimento; a segunda a morte”.
Ela novamente apertou, como contraparte perfeita, a minha mão. Depois, com o rigor das incertezas, disse-me, enquanto passávamos pelo túnel que permitia o acesso à Rua da Abolição, Dolincar, “ o primeiro amor é na juventude; o segundo na maturidade”. De mãos dadas, seguimos, como anjos da negrura, no inverso e, sentidamente, no universo do que éramos.
(*) Fausto Antonio é escritor, poeta, dramaturgo e professor da Unilab – Bahia.
Respostas de 2
As memórias guardadas no tempo fazem com que o coração flutue pelos espaços reservados de nossa alma. Nesses vagam os rumores, dos ditos e não ditos, dos vistos e dos invisíveis. Construímos assim, nossa história e, também, os personagens que nela habitam. Só pra dar um sentido mais bonito e poético para nossa existência. Belo texto Fausto.
Sempre passo pelo túnel que da acesso a Rua Abolição, memória, dos trens,dos paralelepípedos barulhentos,e do Senai, infância preta perdida no tempo, ao longe rojões no majestoso, derby campineiro,,gol da nega véia.
Vai Macaquinha sem vergonha!!!