Publicado originalmente em https://ponte.org/
Os matadores não pouparam ninguém. Homens, mulheres e crianças foram massacrados. Fizeram ao todo nove vítimas, todas da mesma família. Entre elas, uma menina de quatro anos e um menino de cinco, mortos a pauladas e golpes de foice, como os adultos. E um bebê de dois meses, que foi atirado em um moinho.
Os assassinos eram homens escravizados. As vítimas eram os seus senhores, a família Junqueira, que há quase um século acumulava fortuna, prestígio e poder político conquistados com a exploração da mão-de-obra escrava. O episódio fez parte da Revolta de Carrancas, um levante de escravizados ocorrido em 13 de maio de 1833, em Minas Gerais.
O massacre da família Junqueira assustou a opinião pública da época, não só pela selvageria do crime, mas por ressuscitar um medo que por muito tempo rondou a sociedade escravista da época: se hoje há quem tema que o Brasil “vire uma Venezuela” ou “uma Cuba”, o fantasma daqueles dias era o risco de o país “virar um Haiti” e que a imensa população de escravizados organizasse uma revolução contra seus senhores. Nesse cenário, a punição contra os revoltosos foi a mais dura possível. Dezessete deles foram condenados à pena de morte — uma prática incomum, já que matar escravos significava prejuízo econômico. Dos condenados, apenas um, Antônio Resende, teve a pena comutada para prisão perpétua, por concordar em atuar como carrasco e enforcar cada um dos seus dezesseis companheiros.
É fácil imaginar um comentarista branco do século XIX condenando um massacre como o da família Junqueira: “Morreram pessoas como todos nós. Mataram crianças”, diria ele, fazendo uso das mesmas palavras usadas por Guga Chacra para se referir aos ataques do Hamas que mataram 1.300 pessoas no sul de Israel em 7 de outubro. E estaria certo. É óbvio que não se pode aceitar o massacre de famílias em nome de uma causa, seja ela qual for. Que culpa os filhos da família Junqueira poderiam ter de seus pais serem escravistas? Que culpa tinha o bebê jogado no moinho?
Naturalmente, haveria uma lacuna nesse tipo de análise que, imagino eu, deva saltar aos olhos de quem observa essa situação com a conveniente distância dos séculos. É que não se pode denunciar a violência de uma revolta de escravos, como a de Carrancas, ignorando a violência da própria escravidão. “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem”, diria o poeta. Da mesma forma, uma análise que denuncie a brutalidade das ações do Hamas, mas ignore o contexto da ocupação israelense, é uma farsa. Assim como são uma farsa as análises supostamente equilibradas que condenam a “violência dois lados” como equivalentes. Imagine um comentarista da Globonews do século XIX usando uma revolta como a de Carrancas para relativizar os horrores da escravidão transatlântica, dizendo que “tanto as crianças dos escravizados como as crianças dos proprietários de escravos sofrem com esses conflitos”.
Quem acredita na propaganda que retrata Israel como “a única democracia do Oriente Médio” pode se chocar com essa comparação entre a a situação dos palestinos sob a ocupação israelense e a dos africanos escravizados, mas ela é feita pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, no texto em que apresenta o conceito de necropolítica, largamente baseado nas ações adotadas por Israel na “ocupação colonial tardia em Gaza e na Cisjordânia”. Para Mbembe, tanto a antiga escravidão das colônias americanas quanto o atual colonialismo israelense são marcados por experiências de terror e ausência de liberdade que mergulham seres humanos numa condição permanente de “estar na dor”, a começar por uma fragmentação territorial que impossibilita movimentos e implementa uma segregação semelhante ao apartheid — aliás, a comparação da situação palestina com o regime racista que vigorou na África do Sul entre 1948 e 1994 é referendada por vozes tão diferentes como Anistia Internacional, Human Righs Watch, relatores especiais da ONU e o Nobel da Paz Desmond Tutu, justamente um dos grandes nomes da resistência ao regime sul-africano. Voltando a Mbembe e a seu texto sobre necropolítica, mais mencionado do que lido, é assim que ele descreve a ocupação israelense:
Viver sob a ocupação tardo-moderna é experimentar uma condição permanente de “estar na dor”: estruturas fortificadas, postos militares e bloqueios de estradas em todo lugar; construções que trazem à tona memórias dolorosas de humilhação, interrogatórios e espancamentos; toques de recolher que aprisionam centenas de milhares de pessoas em suas casas apertadas todas as noites desde o anoitecer ao amanhecer; soldados patrulhando as ruas escuras, assustados pelas próprias sombras; crianças cegadas por balas de borracha; pais humilhados e espancados na frente de suas famílias; soldados urinando nas cercas, atirando nos tanques de água dos telhados só por diversão, repetindo slogans ofensivos, batendo nas portas frágeis de lata para assustar as crianças, confiscando papéis ou despejando lixo no meio de um bairro residencial; guardas de fronteira chutando uma banca de legumes ou fechando fronteiras sem motivo algum; ossos quebrados; tiroteios e fatalidades – um certo tipo de loucura.
Virou lugar-comum dizer que não se deve confundir a reação do oprimido com a ação do opressor, mas esse continua a ser um lema dos mais necessários. E é necessário justamente porque a revolta dos oprimidos nem sempre assume a forma de rebeliões corajosas, mas também pode se manifestar na matança covarde de inocentes, como ocorreu em Minas Gerais em 1833 ou nos territórios israelenses no último dia 7. O horror desses massacres, contudo, não pode nos impedir de perceber como fazem parte do contexto de uma violência mais ampla, a da dominação de um povo por outro, e que a única solução real está na libertação.
Assim, as narrativas que ignoram o contexto mais amplo de opressão, e se limitam a recortar e ampliar os efeitos de um episódio violento cometido pelos alvos dessa mesma opressão, acabam se tornando cúmplices das maiores violências. É o que acontece quando a cobertura jornalística destaca proporcionalmente muito mais as dores israelenses, deixando claro que vidas palestinas importam menos (em maio de 2021, uma reportagem do Jornal Hoje lamentou a morte de 63 crianças “dos dois lados do conflito”, omitindo que eram todas palestinas). E é o que acontece com o uso do termo “terrorismo”, uma expressão sem qualquer rigor conceitual, que costuma ser a senha usada por governos de todo tipo para ter uma boa desculpa para violar direitos — não é à toa que o presidente salvadorenho Nayid Bukele chama sua megaprisão de Centro de Confinamento do Terrorismo, e que policiais brasileiros e seus admiradores tentam há anos, felizmente ainda sem sucesso, emplacar o termo “narcoterrorista”. Como os jornalistas nunca vão usar a expressão “terrorista” para se referir a Israel, mas apenas aos palestinos, toda a violência israelense, por maior que seja, se mostra justificável. Afinal, se apenas um dos lados é “terrorista”, o mal absoluto, e o outro não, tudo é válido para combatê-lo — inclusive o genocídio.
É o que acontece agora, no momento em que escrevo o texto dessa newsletter, que vai sair atrasada (desculpas por isso), e vejo o noticiário exibir a impensável transmissão de uma limpeza étnica ao vivo, com um deslocamento forçado de 1,1 milhão de palestinos dentro de um território sitiado, sem luz nem água, em uma catástrofe ainda maior do que a “Nakba” que deu origem ao estado de Israel, em 1948, tudo justificado por uma retórica governamental que lembra a dos nazistas, seja com o presidente Isaac Herzog dizendo que “toda a nação palestina é responsável” pelos ataques do Hamas, seja com embaixadores e soldados israelenses se referindo aos palestinos como “animais” a serem abatidos. E sem esquecer da contribuição brasileira à justificativa de genocídio, com Jorge Pontual dizendo explicitamente que as mortes de palestinos não podem ser comparadas às de israelenses.
E não se trata de vingança, mas de método de expansão colonial, como analisa a socióloga Sabrina Fernandes: “Alegar que Israel estaria ordenando um deslocamento impossível de um milhão de pessoas para o sul de Gaza por vingança é negar a estratégia de limpeza étnica para fins de anexação. Sempre foi sobre tornar a vida impossível pra que vão embora ou encurralar pra que morram”.
Tudo isso diz respeito diretamente às realidades que costumamos abordar na Ponte porque faz tempo que Israel, aliado ao complexo industrial-militar dos EUA, se tornou um laboratório que testa e vende soluções militares e tecnológicas para o capitalismo global vigiar e confinar suas multidões de gente perigosa ou indesejável, como migrantes, refugiados, ativistas, pobres e grupos racializados. “Muitas das técnicas usadas para confinar permanentemente civis em Gaza e na Cisjordânia estão sendo vendidas mundo afora como ‘soluções de segurança’ de ponta, comprovadas em batalha, por coalizões corporativas que conectam empresas e governos israelenses, estado-unidenses e de outros lugares”, escreve o geógrafo Stephen Graham no livro Cidades Sitiadas.
A mesma tecnologia usada por Israel para erguer muros e sistema de vigilância ao redor de Gaza foi usada pelos EUA para erguer seu muro na fronteira com o México, da mesma forma como drones israelenses desenvolvidos para subjugar palestinos passaram a ser usados rotineiramente por forças policiais da América do Norte, Europa e Ásia Oriental. Sem falar em softwares como o Pegasus, vendido por Israel a diversos governos para invadir os celulares de ativistas, dissidentes e jornalistas.
Segundo a jornalista Naomi Klein, os empreendedores mais bem sucedidos do país passaram a usar “o status de Israel como um Estado fortificado, cercado por inimigos furiosos, como uma espécie de showroom 24 horas — um exemplo vivo de como gozar de relativa segurança em meio à guerra constante”. Israel passou a implantar em seu território e vender ao mundo a ideia de que, com as ferramentas adequadas de repressão e vigilância, seus cidadãos poderiam levar uma vida tranquila mesmo ao lado de multidões cotidianamente violentadas e confinadas.
Uma ideia que encontra seu símbolo na realização rotineira de raves a poucos quilômetros da faixa de Gaza, baseada na crença de que seria possível dançar e curtir despreocupadamente ao lado de um imenso campo de refugiados a céu aberto. Essa imagem, de enclaves fortificados de paz em meio ao caos, é uma bastante sedutora para um mundo cada vez mais marcado pela desigualdade e pelos conflitos, o que explica como Israel conseguiu transformar genocídio em um modelo de negócios bem sucedido.
É uma imagem que cai como uma luva, por exemplo, no Brasil, que já celebrou inúmeras parcerias com Israel nas áreas de segurança. A tecnologia israelense se faz presente tanto nos caveirões usados pela Polícia Militar para invasões e massacres nas favelas cariocas como em um muro construído para segregar o complexo de favelas da Maré durante os Jogos Olímpicos de 2016, como denuncia o historiador Fransérgio Goulart, da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial: “O Estado de Israel que invadiu e sequestrou espaços e territórios palestinos tem produzido em larga escala tecnologias de produções de mortes”.
Ainda que as motivações dos ataques do Hamas ainda sejam complexas e controversas, parece claro que um dos principais efeitos dos brutais ataques do dia 7 foi o de “demolir a fantasia dos israelenses de que podem viver seguros em uma terra ocupada”, como uma liderança do Hamas teria declarado.
Assim, com a nova Nakba que se desenha agora em Gaza, tudo indica que Israel busca não só avançar na eliminação dos palestinos de seu território, como mostrar ao mundo que a sua tecnologia de confinamento ainda é capaz de impedir o morro de descer quando não for Carnaval.
Fausto Salvadori
Diretor de redação da Ponte Jornalismo