Por Dante Lucchesi (*)
Para entender o que acontece todos os dias no Brasil e se repetiu na véspera do Dia da Consciência Negra, com o assassinato de João Alberto Silveira Freitas, como uma provocação perversa, trágica e revoltante, é preciso ir as raízes históricas do problema. Os dois grandes processos que estruturaram historicamente a sociedade brasileira foram o genocídio dos povos indígenas e a escravidão em massa de africanos.
O Brasil é o país mais escravocrata do mundo moderno. Foi o último país a abolir a escravidão e foi aquele em que a escravidão mais se prolongou no tempo. Nos quatro primeiros séculos da formação da sociedade brasileira, cerca de dois terços de sua população era composta por africanos escravizados e índios subjugados. O reflexo linguístico da violência absurda da escravidão é que nenhuma das cerca de 200 línguas que vieram na boca de cerca de 4,8 milhões de africanos que o tráfico negreiro trouxe para o Brasil aqui subsistiu.
O racismo é grande produto ideológico da escravidão. Era preciso plasmar uma visão absolutamente negativa do negro, para justificar a exploração desumana do regime escravista e toda sorte de violência que se cometiam inclusive contra mulheres e crianças. Assim, o negro não tinha alma, não era um ser humano, era uma mercadoria, uma peça, um animal. O negro era traiçoeiro, selvagem, preguiçoso, dissimulado, violento, intelectual e culturalmente primitivo, grotesco, feio, desprezível, sexualmente depravado etc. Mais de 300 anos de escravidão inocularam um substrato racista na mentalidade brasileira, que uma abolição fajuta ocorrida há menos de 150 anos não apaga. Esse substrato escravista alimenta o racismo estrutural. O Brasil é um país rasgado étnica e socialmente, e a parte da população economicamente dominante e privilegiada (majoritariamente branca) assiste, com naturalidade, ao extermínio massivo da população pobre (majoritariamente negra) nas periferias. Não há muita diferença na forma como a elite e a classe média branca e reacionária veem o negro hoje e a forma como a elite escravocrata via os seus escravos.
Uma comparação entre pesquisas de opinião revelou que só 10% da população brasileira se assumia como racista na década de 1990 e hoje mais de um terço da população se assume como racista no Brasil. Isso é o resultado da campanha jurídico midiática que levou ao golpe de 2016 e criou as condições para a eleição de Bolsonaro em 2018. É provável que pelo menos um terço da população brasileira sempre tenha sido racista, mas a luta popular e movimento democrático que levou a redemocratização do país, com o fim da ditadura militar em 1985, gestou uma cultura política e fortaleceu uma ideologia que não dava muito espaço para manifestações racistas, fascistas e reacionárias em geral.
Todo esse processo culminou com a eleição de Luís Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores, em 2002. Mas a massiva e violenta reação, fomentada e alimentada pela mídia corporativa (isto é, capitalista), contra o PT, não obviamente por causa da corrupção, mas sobretudo pelos programas de distribuição de renda, pela elevação dos salários e as políticas de ações afirmativas reverteu esse quadro. Um dos maiores crimes que o PT cometeu, para elite econômica e para a classe média reacionária, foi a elevação do valor real do salário-mínimo de menos de 100 dólares para mais de 300 dólares, além da institucionalização das cotas raciais, é claro.
A campanha maciça da mídia contra os governos do PT foi diretamente ao encontro do substrato escravista da sociedade brasileira fazendo com que ele emergisse das profundezas do esgoto, e essa cloaca alimentou o racismo estrutural e a cultura do ódio, da intolerância, do preconceito, do negacionismo, da homofobia e do feminicídio. Criavam-se, assim, as condições para a eleição de Bolsonaro, em 2018. Por que entre vários candidatos de direita mais palatáveis e mais bem preparados, 57 milhões de brasileiros depositaram sue voto em um miliciano fascista, mentecapto e desequilibrado? Porque Bolsonaro era candidato que melhor representava a barbárie escravista, a cultura do ódio, o fundamentalismo neopentecostal, tudo o que a mídia e todas as articulações reacionárias vinham fomentando nos anos precedentes. A eleição de Bolsonaro e de provavelmente a representação parlamentar mais reacionária e fascista da história da República, em 2018, empoderou todos os racistas, homofóbicos, negacionistas, recalcados e ressentidos, que perderam qualquer escrúpulo e pudor em externar suas posições abjetas e cometer seus crimes e atos de violência em plena luz do dia.
Em sua eleição, Bolsonaro atacou as reservas indígenas e se referiu ao peso dos quilombolas em arroubas, medida de peso usada para animais. Portanto, o extermínio dos povos indígenas, no bojo da destruição da floresta amazônica, e o aumento do assassinato de negros era o que se poderia esperar do governo Bolsonaro. E não adianta falar que se iludiu com o “mito”, porque Bolsonaro sempre deixou muito claro o que ele era. A elite econômica brasileira preferiria um Alckmin ou um Meirelles na presidência da República, mas não hesitou em votar em Bolsonaro, para manter seus privilégios que sistema neo-escravista que os mantém e perpetua. E não hesita também em sustentar Bolsonaro na presidência da República, não obstante todos os crimes que ele já cometeu, para continuar se beneficiando com a política neoliberal, entreguista, privatista antipopular de seu ministro da economia Paulo Guedes.
O bárbaro assassinato de João Alberto, que chocou o país, foi cinicamente ignorado por Bolsonaro, que ainda atacou os que se revoltaram, acusando-os de fomentar o ódio e a “divisão da pátria”, num absurda inversão dos papéis, que só tem lógica em sua mente doentia. Seu vice, na mesma toada, disse que não há racismo no Brasil, jogando na cara dos que ainda querem se iludir com ele, que é tão extrema direita quanto Bolsonaro. E a ministra dos Direitos Humanos [sic], Damares, se manifestou “com indignação”, mas não usou o termo racismo em nenhum momento em sua nota. Negar o racismo é ser conivente com ele, é apoiá-lo, é, em suma, ser racista também. Mas, não se poderia esperar outra coisa de um governo fascista, negacionista e genocida.
Enquanto a elite econômica, a grande mídia e um congresso dominado pelo fisiologismo mais rastejante mantiver Bolsonaro na presidência da república, para satisfazer seus interesses mais sórdidos e mesquinhos, a vida de muitos milhares de negros e índios continuará a ser ceifada ininterruptamente por todas as condições criadas por políticas e ações que só visam a manter a superexploração do trabalho e uma intolerável concentração de renda.
(*) Dante Lucchesi é sociolinguista e autor do livro Língua e Sociedade Partidas (Contexto, 2015), que foi contemplado com o Prêmio Jabuti em 2016, e organizador e autor do livro O Português Afro-Brasileiro (EDUFBA, 2009).