Por Rafael Tomyama*
Já passou da hora de acertar as contas
Marcos Nunes, em artigo no DCM, diz que não aguenta mais a conversa de que “a esquerda precisa fazer autocrítica pelo golpe de direita“.
A impaciência petulante do autor precisa ser contraditada, não pelo diletantismo da reles encheção de saco, mas porque professa teses inaceitáveis: seja pela presunção de que somos infalíveis, mesmo nos bacanais da corrupção inerente ao sistema do capital, seja numa outra espécie de “autocrítica”, que pretende que nos tornemos uma farsa de nós mesmos.
Pode ser que, em tempos de criminalização do PT e de tudo que se rotule “social”, a ideia de admitir os próprios erros soe como uma confissão de culpa acerca de acusações, forjadas ou não, contra petistas. Incluso a farsa disseminada de que o partido corresponderia à uma “organização criminosa”.
Há também o caso do sofisma trazido da cultura machista, que responsabiliza vítimas de violência por supostamente “darem causa” aos abusos que sofrem, devido às suas aparências, formas de se vestirem ou de se comportarem. Este ardil, ao mesmo tempo em que as fazem se sentirem culpadas, tem o condão de minimizar a reprovação dos verdadeiros criminosos.
Mas no âmbito da política partidária, o esforço de lideranças, ou das penas à seu serviço, em refutar a necessidade de uma rigorosa autocrítica tem a ver com um estratagema para esconder suas parcelas de responsabilidade nos erros políticos cometidos. Erros que, sem isentar as perversidades dos golpistas, acabaram por ajudá-los a perpetrar seus planos mais facilmente e nos conduziram ao quadro atual de derrotas da esquerda.
As vozes da pequena burguesia liberal subestimam a capacidade do povo de tirar lições coletivamente com suas escolhas e de suas representações de classe. Sem uma avaliação concreta, que arme o partido e a esquerda para aprender e superar seus próprios erros, a tendência passa a ser, em pouco tempo, repeti-los.
A explicação para isso é a de que os interlocutores que se recusam a fazer um balanço de como chegamos até aqui são os mesmos que acreditam que, depois de tudo o que houve, é possível reconduzir Lula para fazer a mesma política de pacto de conciliação de classes, feita no primeiro governo.
O problema é que tinha um golpe no meio do caminho.
No meio do caminho tinha um golpe
Mas, no caso do texto de Marcos Nunes, não se trata exatamente de esconder vergonhas e sim de negar princípios e defender as deformações das práticas políticas, como se os fins justificassem os meios. Ao misturar o PT no jogo imundo da politicagem acaba por desmoralizar Lula e a esquerda. Não se sabe que intenções possam estar por trás disso. Quiçá pretenda engabelar o leitorado medíocre.
Já no início do texto, o autor que diz desprezar a autocrítica, começa fazendo… autocrítica. E que autocrítica! Ele associa algumas “hesitações, tibiezas e enganos” com umas adjetivações nada elogiosas ao PT, por ter, em suas palavras, “se associado aos canalhas de sempre” e “se acanalhado no processo“, etc.
No seu ritual de autoflagelação, declara inclusive duvidar que o PT possa ser classificado como partido de esquerda! O autor lança premissas tão irresponsáveis e desrespeitosas que é difícil acreditar que sirva ao propósito que se diz portador: o de atribuir a culpa do golpe exclusivamente aos adversários que ruminam um tal “ressentimento da classe média“.
A partir disso fica evidente que o objetivo não é o de uma crítica edificante e sim propugnar uma “autocrítica que a direita gosta”. Ao não se preocupar em buscar os nexos causais e analisar as relações com os acontecimentos, o texto vai colecionando um apanhado metafísico de dados que “brotam” misteriosamente do solo. Ou melhor dito simplistamente: “A política mudou“.
Na “explicação” inicial, por exemplo, a oposição surge como um raio, descontextualizada, e trafega, numa passagem direta, da ciência da derrota eleitoral à uma poderosa frente parlamentar que encabeça o impeachment, com o suporte das demais forças ressentidas.
Adiante, após digressão histórica acerca do condomínio do poder dominante (o que sempre houve) o autor naturaliza o oportunismo político, como algo imprescindível para a chamada governabilidade:
“Lula veio no registro ‘Paz e Amor’. Conciliatório, dava uma no prego, outro na ferradura. Não fugiu ao fisiologismo, pois isso inviabilizaria por completo qualquer ação de governo. Sim, comprou deputados e senadores, comprou juízes. Afinal, é assim que se governa em todos os países do mundo, desde que se firmou essa balela de Democracia Representativa: governos de coalizão compostos a partir de favorecimentos, alguns menos, alguns mais ilícios, uns poucos lícitos.” (!!!)
Após a postura inicial que se reivindica “anti-autocrítica” passa a se ombrear com a inquisição dos piores algozes ao acusar Lula de “comprar de parlamentares e juízes“, “favorecimentos” e “ilícitos” maiores ou menores. Com suas próprias palavras.
Em seguida, vem mais um disparate: a crença de que o desenvolvimentismo do governo Lula e a coalização tenha sido capaz de ir paulatinamente “desmontando o tripé que garantia a imobilidade e servilismo do país: os arrochos monetário, fiscal e salarial.” Oi? Sério?
Mas como teria sido essa tal “ruptura lenta e gradual” capitaneada pelos governos petistas, apesar de seus compromissos em alianças? A fabulosa guinada, segundo o autor, teria sido possível pela (ou apesar da) conciliação com práticas espúrias?
Daí em diante então começa a desfiar um rosário das realizações e melhorias que os governos petistas produziram para o povo mais carente. Assim, Nunes deixa claro que sua crítica não se refere apenas à “autocrítica”, mas que pretende uma invalidação de toda e qualquer crítica, contrapondo o descarado lema: “rouba mas faz”.
Evidentemente que houve benefícios sociais para quem mais necessita. Mas não se pode esquecer também que par-e-passo tais medidas, o lucro dos banqueiros nunca foi tão estratosférico. A mídia empresarial sempre recebeu a maior parte da verba do orçamento publicitário do governo para ataca-lo 24 horas por dia, entre outros efeitos colaterais de tanta conciliação.
Não se avançou em reformas estruturais. Não se mexeu a fundo na propriedade da terra. Nem no patrimônio dos ricos. Não se produziu justiça fiscal, nem se deixou de pagar os serviços da dívida. Recusou-se rever as concessões de rádio e TV, em sua maioria nas mãos de políticos de direita. Estas renúncias não são percebidas pelo autor como limitações decorrentes dos acordos com o “mercado, isto é, as grandes corporações financeiras e do agronegócio” que finge criticar.
Com este nível de acordo e dependência, não se quebrou o ciclo de domínio das oligarquias, mas se aliou-se a elas e, de certa forma, permitiu-se que elas continuassem tranquilamente sua rota de domínio à vontade. Por isso os “santinhos” de campanha com a foto do Lula ajudaram a eleger os mesmos crápulas de sempre, enquanto os candidaturas do meio popular enfrentavam erráticas as campanhas milionárias dos neoaliados e oportunistas de todo naipe.
Esta é a dificuldade da análise de conjuntura pequeno-burguesa: ela percebe o tabuleiro político como uma fotografia estática e imutável e não como um filme. Para manter-se no jogo, a única saída seria aceitar as “regras” e jogar com elas, e não usar a vantagem tática para incidir sobre a correlação de forças para mudar as regras. Ou mudar o jogo todo.
O pequeno-burguês enxerga as condições políticas impostas pelo grande capital e garantidas pelo Estado capitalista como determinantes das “conciliações necessárias” para uma governabilidade submissa a seus ditames. Ele não percebe o papel protagonista que um governo popular poderia ter tido muito mais, ao incidir sobre tais condições políticas.
Crítica da crítica à autocrítica
A pretensa análise da psicologia social sobre os ressentimentos de setores médios, identificados como raízes da crise, não deveria servir, por outro lado, para explicar a fragilidade da reação popular? Ou do que possa estar para além da comprovação da manipulação da mídia e do baixo nível de consciência da classe trabalhadora para si?
O fato é que, por sua vez, o partido da classe renunciou ao trabalho de base, de promover a educação política do povão. Lideranças e dirigentes foram guinados a gestores públicos, encandeados por uma sinecura qualquer. Os protestos e greves eram descaradamente desestimulados pelos governistas, que alegavam não ser bom um bom momento para serem então pressionados.
Enquanto isso, a agenda setting dos ricos empresários e seus lucrativos negócios desfilava à todo vapor pelos enganosos salões acarpetados do poder. Tem razão quando diz que a corrupção é inerente a todos os setores da economia capitalista, e que restaria a todos os corruptos envolvidos denunciarem-se mutuamente para lucrarem mais com a corrupção (e a desgraça) da concorrência.
Para o autor, no entanto, a relação sempre promíscua do capital privado com os novos e velhos burocratas ter vindo à tona no “escândalo do mensalão” é que teria criado o “constrangimento” que impediu maiores avanços. Ou seja, a crítica e autocrítica moralista é que teria freado a radicalidade das mudanças e não a composição intrínseca pactuada entre projetos de nação opostos.
Mesmo assim, os escândalos fabricados pela mídia não teriam conseguido deter a reeleição por quatro vezes do petismo no governo federal. Na visão do autor, o que teria motivado o “golpe institucional” foi a sabotagem, a reação contra a caça aos corruptos e a ambição pelo poder de aliados fisiológicos, notadamente o velho MDB, com o suporte da mídia e do judiciário.
Ora, Nunes não dedica uma única palavra para a deterioração da situação econômica interna e mundial, as opções macroeconômicas de endurecimento fiscal do governo Dilma, a perca do controle sobre um Estado judicializado (e o “republicanismo” que o gerou), etc. O grande pacto cobrou a fatura e a chantagem das ditas “elites” dominantes deixou de ser apenas uma questão gerencial, avançando sobre a pauta política, incidindo sobre os ganhos dos trabalhadores e barrando qualquer novo avanço.
E ele não se dedica a esta análise não porque não considere necessária nenhuma autocrítica, mas porque ao fim e ao cabo refaz a sua premissa inicial. De “autocrítica desnecessária” ela passa a ser o de selecionar “qual autocrítica a fazer?” E logo a seguir lança o desafio:
“Não ter rompido com a cadeia do fisiologismo parlamentar? Vamos lá, provem como é possível viabilizar isso. Construir um partido de massas sem financiamento de empresas que, obviamente, quererão contrapartidas? Provem como é possível viabilizar isso. Fazer um cabo de guerra com os interesses do capitalismo financeiro internacional e vencê-lo contando com a sustentação de um povo constituído enquanto nação?”
Aí reside o maior dos problemas, que fazem os anteriores listados antes parecerem insignificantes: Marcos Nunes não vê a menor chance de vencer a luta de classes. Alega isso porque não vê saídas fora da institucionalidade burguesa, porque só consegue enxergar, na perspectiva eleitoral, a ofensiva judiciária contra a candidatura Lula. Pior: desdenha da capacidade da consciência e organização para emancipação da classe trabalhadora por si mesma.
Esse derrotismo que supõe um determinismo histórico imutável, pretende não uma crítica da necessária autocrítica. Ávida, isso sim, por um outro tipo de autocrítica: a que pretende reescrever nossa história de trás pra frente. A que almeja a abolição de qualquer referência teórica e prática ao caráter socialista do PT. Só falta nos exigir que peçamos desculpas por sermos o que sempre fomos e nos reinventemos ao avesso para termos a permissão de continuar existindo!
Para os que se encontram rendidos e desbundados, temos uma péssima notícia: temos gás pra encher muito mais o saco ainda. É preciso inverter ao contrário toda essa conversa mole. Não nos subordinamos à exploração e à barbárie. Somos socialistas. E essas amolações só nos deixaram cada vez mais afiados.
*Rafael Tomyama é jornalista e militante do PT em Fortaleza