Por Eliane Cabral (*)
As primárias para escolha de quem serão os candidatos que vão disputar a presidência dos EUA nas eleições de 2020 tem revelado um cenário interessante da luta de classes no interior daquele país. O socialista democrático Bernie Sanders, pré-candidato pelo Partido Democrata, tem obtido uma boa avaliação nas principais enquetes nacionais sobre a eleição e liderava, até esse final do mês de fevereiro de 2020, as primárias entre os candidatos democratas. Considerando a hegemonia que os representantes de Wall Street exercem no país, é difícil prever até quando essa trajetória ascendente de Sanders se sustentará, mas, o fato é que ela tem deixado bastante assustadas as classes bilionárias, seus representantes políticos e o setor das megacorporações (bancos, produtos farmacêuticos, TI, seguros e empresas de combustíveis fósseis) americana.
Os bons números de uma candidatura progressista, crítica a ordem sistêmica estabelecida e que fala abertamente de socialismo democrático aparece como um ponto fora da curva no establishment partidário norte-americano. Até 2016, as disputas travadas entre Republicanos e Democratas pela presidência do EUA, pouco divergiram no que é essencial aos olhos da classe dominante. A política econômica neoliberal, a política externa imperialista e o forte investimento no setor militar sempre foram mantidos. Mesmo o governo Obama, que criou expectativas positivas na classe trabalhadora, sobretudo a negra, pouco se afastou das pautas mencionadas.
Com essa identidade, a indicação de Sanders como candidato tem enfrentado resistência entre os democratas. Ele é visto como um outsider por parte significativa dos escalões superiores do partido, e seu discurso, de esquerda, é apontado como perigoso para ser apresentado na disputa com Donald Trump, candidato que deve ser confirmado pelo Partido Republicano. A principal argumentação feita pelos adversário contra a candidatura de Sanders diz respeito a sua inelegibilidade. Embora os números das enquetes gerais apresentem bons resultados para ele, a cúpula do partido, avalia que, entre os pré-candidatos democratas, ele é o adversário que mais facilmente será derrotado pelo republicano.
Sanders disputas as primárias com três outros candidatos: Joe Biden, Elizabeth Warren, Amy Klobuchar. Dada a preocupação dos altos escalões do partido com o fato do nome do senador progressista ser indicado, é possível que estratégias sejam tentadas pela sua cúpula com o objetivo de evitar que o senador seja o mais votado nas primárias e garantir a indicação de uma figura mais moderada.
Slavoj Žižek (2020), ao fazer uma leitura do cenário eleitoral atual, aponta que os EUA estão passando, pelo menos na plano empírico, por uma mudança na estrutura partidária. A conjuntura presente indica que há efetivamente quatro grupos preenchendo o espaço político americano: Republicanos do establishment, Democratas do establishment, populistas da alt Right e socialistas democráticos. A grande diferença, segundo o autor, é que, enquanto o populismo de Trump facilmente afirmou sua hegemonia sobre o establishment republicano, o racha no interior do Partido Democrata está ficando cada vez mais forte. Sendo possível dizer que a luta entre o establishment Democrata e a ala dos socialistas democráticos é a única verdadeira disputa política atualmente em curso.
Mas, se do ponto de vista do establishment a candidatura de Sanders se apresenta como antagônica, o mesmo não se pode dizer, sobre o entendimento de parte da classe trabalhadora. Ao observamos os apoiadores e financiadores da campanha do senador, não se vêem doações das grandes corporações ou doações individuais de bilionários americanos. Até fevereiro de 2020 a campanha de Sanders arrecadou em torno de 7 milhões em doações, feitas por 1, 5 milhões de contribuintes individuais, cujas valores médios dados foram de 18 dólares por pessoa. Destacam-se como principais doadores da sua campanha: profissionais da educação, enfermeiras, trabalhadores do Walmart e trabalhadores do Starbucks, entre outros. Doações basicamente da classe trabalhadora.
O apoio massivo da juventude a Sanders, também tem sido uma outra novidade da campanha do pré-candidato socialista democrático. As pesquisas de opinião indicam que sua base eleitoral mais forte está entre jovens de 16 a 25 anos. Historicamente a juventude americana participa pouco dos processos eleitorais, mas quando se envolve, pode provocar mudanças significativas no jogo estabelecido. Essas mesmas pesquisas indicam também a preferência de um número significativo de negros e latinos, grupos que constituem uma parte considerável do eleitorado americano, por Sanders.
A declaração de apoio das escritoras feministas Nancy Fraser e Lisa Featherstone publicado em fevereiro de 2020, dá o tom do que tem significado a candidatura de Sanders para os movimentos sociais progressistas dos EUA. Dizem elas: “Não nos interpretem mal. Gostaríamos de ver uma mulher presidente tanto quanto qualquer outra pessoa. Mas isso não pode nos custar a chance de construir um movimento que possa realmente melhorar a vida da grande maioria das mulheres. A campanha Sanders oferece exatamente essa chance. Todo mundo sabe que Sanders defende os interesses dos 99% contra os 1% da classe bilionária. O que é menos compreendido é que sua campanha – e o crescente movimento por trás dela – trata efetivamente o sexismo, não apenas suas formas cotidianas, mas também suas raízes mais profundas da sociedade capitalista“.
O projeto político apresentado pelo pré-candidato socialista democrático tem como centralidade a crítica à desigualdade econômica, e apresenta como principais propostas: reforma migratória imediata para proceder com a legalização dos que não possuem documentos; acabar com as medidas anti-imigrantes; criação de seguro saúde universal, educação superior gratuita, o New Deal Verde e a restauração de direitos civis para todos. Essa plataforma política dialoga, especialmente com os trabalhadores, imigrantes, negros e jovens, o que tem feito da sua campanha um espaço de coalizão multicultural e multirracial que reflete a diversidade dos EUA como país.
Declarações críticas feita pelo pré-candidato à política externa americana como: “é bom sermos honestos sobre a política exterior norte-americana, e isso inclui admitir o fato de que os Estados Unidos derrubaram governos democráticos no mundo todo, no Chile, na Guatemala e no Irã, e colocou ditaduras no lugar”; entre outras que indicam a necessidade da retirada de militares americanos do Oriente médio, apontam para uma linha de atuação com relação a política externa contrária à realizada historicamente pelos EUA, que sempre teve como objetivo manter sua hegemonia mundial como principal potencial capitalista.
Os bons resultados apresentados pela campanha de Sanders, bem como sua capacidade de mobilização perante a classe trabalhadora e os movimentos sociais no país, não seriam possíveis se não fosse um outra condição que também se observa no país. Trate-se do acirramento da luta de classes a partir do avanço das políticas neoliberais. Esse acirramento, aparece como consequência da incapacidade do capitalismo sobre sua fase financeira, de conciliar, mesmo nos países centrais do capitalismo como são os EUA, a acumulação do capital com a garantia de alguma condição de vida de digna para a classe trabalhadora, conforme ocorreu em períodos anteriores – Estado de Bem Estar Social.
A política imperialista norte-americana, associada à uma política econômica que investiu em uma base produtiva sólida, voltada ao mercado de consumo interno e àa exportação foram, em parte, grandes responsáveis por conter as tensões internas antissistêmicas durante o século XX nos EUA. Porém, a opção, no final do século passado, pelo capitalismo rentista como “motor” da acumulação capitalista nesse país, possibilitou que mantivesse sua hegemonia mundial como principal potência capitalista, mas também promoveu importantes transformações na economias interna, que passou de uma base produtiva sólida para uma economia centrada nos serviços e vulnerável ao interesses das finanças. Essa condição econômica, sobretudo durante a crise de 2008, rebaixou as condições de vida, produziu desemprego e endividou a classe trabalhadora americana.
A Vitória de Trump de 2016 foi ,em parte, consequência da crise pela qual a classe trabalhadora passava. O represente democrata naquele momento, era associado pelos trabalhadores à continuidade das políticas neoliberais responsáveis pelas péssimas condições de vida que se encontravam. Trump, por sua vez, era o diferente, porém não muito. O governo Trump conseguiu dar algumas respostas no sentido da recuperação econômica e de empregos, mas as condições e a perspectiva de vida, de um parte da população americana, especialmente a mais jovem, continua muito ruim. Para piorar, esse governo adotou medidas ultraconservadoras, lançando mão da repressão crescente, do cerceamento das liberdades democráticas e do ataque aos imigrantes, o que contribui também para a marginalização de trabalhadores dentro do próprio país.
Em nossa opinião, é nesse contexto de contradição capital/trabalho e, em que a luta classes se acirrou nos EUA, que o socialista democrático Bernie Sanders aparece como uma esperança, aos trabalhadores, sobretudo aos mais jovens. Como já apontamos, é difícil saber até onde a onda Sanders vai chegar, mas é bem interessante ver a classe dominante da nação símbolo do capitalismo mundial preocupada com o fato de um socialista democrático vir a assumir a presidência.
(*) Eliane Cabral é professora da UNIFAP