Por Jana Silverman (*)
Artigo publicado na edição 14 da revista Esquerda Petista
Em novembro de 2020, Joseph Biden foi eleito à Presidência dos EUA, gerando muitas expectativas dentro da camada de trabalhadores multirraciais, jovens estudantes e profissionais liberais dos centros urbanos que formam a espinha dorsal de apoio eleitoral do Partido Democrata. Mais de dois anos depois, o sonho de um novo governo democrata menos neoliberal e neoimperialista do que os governos predecessores de Clinton e Obama tem desvanecido, com os trabalhadores estadunidense pagando o preço do retorno à austeridade com respeito ao gasto social, e a classe trabalhadora internacional pagando o preço do retorno à concorrência entre os grandes poderes globais. Entretanto, muitos trabalhadores jovens estadunidenses, principalmente os da Geração Z, que cresceram na sombra da crise financeira de 2008, não estão aceitando passivamente a guinada à direita de Biden, estão liderando uma nova onda de luta sindical e impulsando candidaturas socialistas a nível local, estadual e federal. Neste artigo, perfilamos as políticas externas e domésticas do governo Biden no ano 2022, à luz do ressurgimento da resistência da classe trabalhadora e da persistência do novo movimento socialista que brotou em 2016 com a pré-candidatura presidencial de Bernie Sanders.
O ano político propriamente dito nos EUA não começou com a retomada dos trabalhos parlamentares no Congresso americano em janeiro de 2022, mas com o início dos bombardeios da Rússia sobre a capital ucraniana no dia 24 de fevereiro. Sem entrar numa análise mais profunda do papel dos EUA no conflito armado entre Rússia e Ucrânia, é possível constatar que a conflagração desta guerra sufocou qualquer tentativa da esquerda estadunidense de influenciar o governo Biden a adotar posições mais progressistas em matéria de política externa e evitar uma nova Guerra Fria global. Infelizmente, a esperança de que Biden poderia adotar posições mais críticas frente aos regimes de extrema-direita que eram os “governos de estimação” do Trump, como o Brasil de Bolsonaro e a Índia de Modi, e voltar a políticas mais pragmáticas com respeito a Cuba e à Palestina, foi entravada pelo estouro da guerra no Leste Europeu. Hipocritamente, Biden empregou o discurso dos “direitos humanos” para, imediatamente, enviar vastas quantidades de armamentos ao exército ucraniano e para adotar uma política migratória mais leniente apenas para os refugiados ucranianos fugindo da guerra. Organizações de esquerda, como os Democratic Socialists of America (DSA), maior grupo socialista nos EUA, foram demonizadas pela imprensa liberal ao adotar posições que, sem deixar de condenar a agressão russa, questionaram o papel da OTAN na Europa do Leste e defenderam uma solução negociada ao conflito armado. Infelizmente, após um ano de guerra, a escalação militar continua, e as vozes da esquerda estadunidense a favor da paz têm sido em grande parte marginalizadas ou silenciadas, como, por exemplo, em outubro, quando membros da bancada progressista na Câmara de Deputados foram forçados a retratar uma declaração a favor de uma saída diplomática em vez de estimular ainda mais a corrida armamentista.
Biden aproveitou da invasão russa para tentar forçar seus aliados a se enquadrar num novo alinhamento global marcado pelo confronto entre os eixos EUA/União Europeia contra a China/Rússia. Ele já começou a ensaiar esta nova guerra de grandes potências em 2021, com a aprovação no Congresso americano do projeto de lei US Innovation and Competition Act (USICA), que estimula a concorrência política e econômica com a China sob o pretexto de promover a inovação tecnológica. Este PL foi sancionado em agosto de 2022, com algumas modificações sob o novo nome de CHIPS and Science Act. Esta lei proíbe produtores estadunidenses de semicondutores e microchips de alta tecnologia a vender seus bens a empresas chinesas, interrompendo cadeias globais de valor e impedindo a “livre concorrência” no setor de tecnologias de informação. Contudo, no médio prazo, esta guerra híbrida comercial e econômica provavelmente prejudicará mais os próprios capitalistas americanos do que seus concorrentes, por ser extremadamente dependente das exportações industriais chinesas e das compras chinesas dos títulos do Tesouro estadunidense.
Em matéria de políticas sociais, a agenda doméstica de Biden, em 2022, ficou refém não só dos representantes do Partido Republicano, mas também da ala mais direitista de seu próprio partido. O afamado projeto de lei Build Back Better, que iria fortalecer o estado de bem-estar social fraco que existe nos EUA através da criação de programas de creche universal gratuita e de licença maternidade remunerada, e da expansão do programa de saúde pública para idosos, morreu no processo de tramitação no Senado, assassinado nas mãos dos senadores da base governista Joe Manchin e Krysten Sinema, que se recusaram a apoiar o PL em nome da “responsabilidade fiscal”. Uma versão muito reduzida do PL foi aprovada em agosto de 2022, incluindo apenas disposições para subsidiar o preço de alguns medicamentos e oferecer benefícios fiscais para empresas e pessoas físicas que utilizam energias mais limpas e carros elétricos.
Diante da incapacidade do Biden de avançar numa agenda social própria, apesar de ter maiorias parlamentares tanto na Câmara Baixa quanto no Senado, o Poder Judiciário, de recorte extremadamente conservador, entrou em cena como ator político principal. As decisões da Corte reverteram vários direitos sociais que os democratas nunca conseguiram codificar em lei. O exemplo mais impactante deste ativismo político da Suprema Corte dos EUA em 2022 foi a decisão da maioria da Corte no caso Dobbs vs Jackson Womens’ Health Organization, que eliminou o direito constitucional ao aborto, jogando aos governos estaduais a potestade de manter ou não a legalização do aborto nos seus determinados territórios, desta maneira, efetivamente, eliminando totalmente ou parcialmente o direito das mulheres a este procedimento importante de saúde reprodutiva em 19 estados americanos. Do mesmo modo, a Corte Suprema também produzia outras decisões judiciais supremamente retrógradas em 2022, por exemplo, permitindo o porte quase irrestrito de armas de fogo em público e restringindo o poder das agências federais de proteção ambiental a impor aos estados estândares ambientais, por exemplo, para reduzir as emissões do carbono.
Neste contexto de derrotas significativas em matéria das políticas sociais, os trabalhadores estadunidenses também sofreram economicamente, com uma alta expressiva na taxa de inflação e um fim das políticas econômicas expansionistas, que impactou negativamente na renda tanto das camadas médias quanto das camadas baixas da população. As políticas econômicas anticíclicas implementadas durante a pandemia do COVID-19, como os pagamentos de renda emergencial a milhões de famílias trabalhadoras, a extensão dos pagamentos do seguro-desemprego e o moratório nos despejos por falta de pagamento de aluguel, terminaram no final do ano 2021, além dos benefícios fiscais especiais para as famílias com crianças pequenas. Ao mesmo tempo, a demanda reprimida de serviços durante a pandemia explodiu com o fim das medidas de distanciamento social em 2021, e o aumento no consumo das famílias, combinado com um aumento nos preços dos commodities, devido em parte aos transtornos causados pela guerra na Ucrânia, causou uma alta expressiva nos preços, num nível não visto desde os anos 80. A inflação acumulada para o período dezembro de 2021 – dezembro de 2022 foi calculada em 6,5%, com aumentos particularmente significativos nos preços da comida, óleo combustível, luz, transporte público e passagens aéreas. Por mais que a taxa de desemprego ficasse em patamares historicamente baixos, chegando a apenas 3,5% em dezembro de 2022, os ganhos salariais não conseguiram compensar a inflação crescente. De acordo com o Bureau of Labor Statistics, o salário médio semanal encolheu 2% no período dezembro de 2021 – dezembro de 2022 devido à inflação, mas também à porcentagem pequeníssima (só 7%) de empregos no setor privado amparados por convenções coletivas negociadas por sindicatos e pela criação expressiva de novos empregos em setores caracterizados por ter uma remuneração mais baixa, como hotéis, restaurantes e serviços pessoais.
A perda de poder de compra das famílias em tempos de desemprego estruturalmente baixo –combinada com as frustrações contidas dos trabalhadores “essencias”, forçados a arriscar suas vidas sem EPIs adequados ou acréscimos de salário por insalubridade durante a pandemia, enquanto os uber-capitalistas como Jeff Bezos e Elon Musk aproveitaram de lucros recordes – levou ao florescimento de uma nova militância dentro da classe trabalhadora estadunidense, liderada principalmente por jovens, afrodescendentes e mulheres. Dois exemplos simbólicos do ressurgimento do movimento sindical norte-americano são o nascimento dos sindicatos Amazon Labor Union (ALU) e Starbucks Workers United (SBWU) em 2021-2022, que atualmente representam milhares de trabalhadores na empresa líder de e-commerce Amazon e nas lojas de café Starbucks.
No caso do Starbucks, uma empresa do setor de comidas rápidas que emprega mais de 383 mil trabalhadores ao redor do mundo, os trabalhadores começaram a lutar por representação sindical nos EUA após aguentar jornadas extenuantes sem as proteções apropriadas durante a pandemia. Centenas de trabalhadores jovens, sem nenhuma experiência sindical, se organizaram em comitês pró-sindicais, às margens das confederações e centrais sindicais americanas já estabelecidas. Hoje, mais de 7 mil trabalhadores de 260 lojas Starbucks em 36 estados têm representação sindical através do SBWU, com a esmagadora maioria dos dirigentes do SBWU sendo jovens com menos de 30 anos, mulheres e pessoas LGBTQI+.
A experiência da luta sindical na Amazon é parecida à história do SBWU. A criação do sindicato independente ALU foi produto de uma greve não autorizada organizada quase espontaneamente pelos trabalhadores de base no maior armazém da empresa na cidade de Nova Iorque no primeiro mês das medidas de confinamento na pandemia de COVID-19. O ALU, liderado por trabalhadores jovens, migrantes e afrodescendentes, ganhou seu reconhecimento perante a lei trabalhista americana em abril de 2022, e atualmente está lutando para pressionar a empresa a instaurar um processo de negociação coletiva. Os exemplos do SBWU e ALU são apenas dois num ano marcado por uma maior militância dos trabalhadores, especialmente os trabalhadores do setor de serviços tradicionalmente sub-representados no movimento sindical estadunidense. Em 2022, houve 20 greves de grande porte registradas nos setores da educação, saúde e comunicações, e com uma tentativa de greve nacional no setor do transporte ferroviário, só interrompida por causa de um interdito proibitório imposto pelo governo federal.
No calor desta ebulição sindical, a esquerda estadunidense tem registrado avanços eleitorais importantes. Nas eleições federais e locais de novembro, o Partido Democrata perdeu controle da Câmara dos Representantes e manteve seu controle do Senado apenas por uma margem minúscula, devido, em grande parte, à frequência relativamente baixa de eleitores da base democrata em certos estados. No contexto deste resultado morno para o Partido Democrata, os candidatos de corte mais progressista registraram maiores margens de vitória do que seus colegas mais centristas. A bancada dos progressistas na Câmara Baixa cresceu a 101 membros, e o grupo de deputados abertamente socialistas (incluindo membros dos DSA) aumentou de oito a 12. Setenta e cinco por cento dos candidatos socialistas e anti-imperialistas apoiados oficialmente pelos DSA a nível nacional ganharam suas eleições para deputado federal, deputado estadual e vereador, algo absolutamente inconcebível apenas vinte anos atras, durante o auge das guerras estadunidenses contra o Iraque e o Afeganistão. Aliás, os DSA apoiaram campanhas bem-sucedidas impulsando referendos nos estados conservadores de Kansas, Kentucky e Montana para restaurar o acesso legal ao aborto, também uma campanha no estado de Illinois para expandir os direitos sindicais e outra no estado de Maine para fortalecer o direito a moradia para inquilinos de baixa renda.
Não obstante essas vitórias sindicais e eleitorais, a esquerda estadunidense ainda tem muito caminho para andar, para poder desbaratar o neofascismo pseudopopulista representado por Trump e seus imitadores, como o governador do estado da Flórida, Ron DeSantis, e para enfraquecer o neoliberalismo “politicamente correto” de Biden e da corrente majoritária dentro do Partido Democrata. Apesar das derrotas espetaculares de vários personagens políticos da ultradireita nas eleições de novembro, como Doug Mastriano e Kari Lake, que disputaram os cargos de governador para os estados-chave de Pensilvânia e Arizona, respectivamente, o neofascismo ainda segue vivo, com as pré-candidaturas de Trump e DeSantis para as contendas presidenciais em 2024 a todo vapor, e com uma minoria significativa da classe trabalhadora branca e rural ainda questionando os resultados das eleições de 2020. Por outro lado, a esquerda não tem uma figura clara que poderia ser um adversário eficaz para contrapor a candidatura à reeleição do quase octogenário Biden, salvo que seja o também idoso Bernie Sanders de novo. Do mesmo modo, o ressurgimento sindical dos últimos anos não tem podido brecar o aumento na desigualdade de renda e a redução na cobertura da negociação coletiva no país, e a nova Guerra Fria instaurada por Biden (com o apoio implícito ou explícito da maioria da classe política tradicional, seja do Partido Republicano, seja do Partido Democrata), não será facilmente revertida no futuro próximo. Em uma conjuntura marcada por grandes incertezas geopolíticas, econômicas e sociais para o povo norte-americano, a única certeza que existe é que esta esquerda jovem terá muita luta para frente para poder reverter a correlação de forças no cenário político dos EUA.
(*) Jana Silverman é pós-doutoranda em estudos de trabalho do Center for Global Workers Rights na Universidade Penn State, pesquisadora do Washington Brazil Office, e membro do Comitê Executivo do Comitê Internacional dos Democratic Socialists of America (DSA)