Banco Central: decifra-me ou te devoro

Por Vito Farina (*)

Banco Central, Roberto Campos Neto. Foto: Raphael Ribeiro/BCB

A terceira administração Lula teve início com duas importantes diretrizes: o cumprimento da promessa redistributiva de conceder um aumento real no salário-mínimo, que resultará até maio num reajuste de 3% acima da inflação de 2022, e o reforço dos programas sociais de renda mínima, e ainda recursos adicionais para a Saúde e a Educação. Para tanto o novo Governo, antes mesmo de tomar posse, conseguiu aprovar Emenda Constitucional que assegurasse ao menos R$ 145 bilhões para esses investimentos sociais em 2023, e o mesmo montante para 2024, autorizados além do teto de gastos constitucional promulgado em dezembro de 2016.

As negociações da chamada PEC da Transição no Congresso foram bem-sucedidas, embora as discussões, tanto no Parlamento como na Sociedade, tivessem sido bastante duras, com críticas à suposta leniência fiscal da esquerda brasileira. Uma espécie de terrorismo fiscal promovido pelo mercado financeiro e repercutido pela grande mídia, ainda que a experiência pregressa tenha mostrado que as administrações Lula I e II foram fiscalmente responsáveis.

Voltando um pouco no tempo, não é demais afirmar que a suspeitíssima “Ponte para o Futuro“, de Temer e Moreira Franco, que culminou no golpe de 2016, atingiu, no campo econômico, seus objetivos nada republicanos de retirada de direitos sociais dos brasileiros. Conseguiu-se uma reforma trabalhista seguida por duas reformas previdenciárias, e implantou-se o já referido teto de gastos, em detrimento do custeio da Saúde e Educação. Desde então o que se observava era que o dito mercado “nadava de braçadas largas em mar de almirante, e a boiada passava, solenemente”.

Politicamente, a intenção de criminalizar o maior partido de esquerda brasileiro, como não poderia deixar de ser, foi um fiasco. Encetou-se uma tentativa de criminalizar a política, pretendeu-se transformar o Partido dos Trabalhadores numa organização criminosa. E ousou-se ajudar a guindar à Presidência da República um ser desprezível, que ostentava em seu currículo a expulsão do Exército – considerado por Geisel um mau-militar, além de ter tido historicamente atuação parlamentar pífia no Congresso Nacional. Não poderia mesmo dar certo, e os resultados catastróficos foram compartilhados por todos.

Contudo, a partir da vaza-a-jato, zerou-se o jogo político. O lawfare contra Lula e o PT estava com seus dias contados, e em 8/11/19 o então ex-presidente foi libertado. Posteriormente, as duas dezenas de processos contra si foram arquivados, e Lula ressurgia como candidato presidencial a ser batido.

Em reação à renovada força política de Lula, restava ao tal mercado “colocar água no chopp do pêtê “, e aprovar a toque de caixa uma autonomia do Banco Central, que limitasse os graus de liberdade do petista na economia, caso a oposição triunfasse de fato. Curiosamente, o projeto de EC, matéria típica de reorganização do Estado, a qual previa uma alteração organizacional de Autarquia especial do Poder Executivo brasileiro, não partiu do Governo incumbente, mas do Senado. Desconhece-se o porquê desse fast track. Objetivamente reconhece-se que o mercado goza de robusto prestígio entre congressistas. Constatado o vício de origem, um ministro da Suprema Corte, provocado, suspendeu efeitos da emenda da autonomia do BC, posteriormente considerada constitucional pelo Pleno. E a nova regra, a Lei Complementar nº 179, foi sancionada em 24/2/21, 16 meses depois da soltura de Lula. Teria sido sancionada em menos de um ano não tivesse existido o questionamento no Supremo.

Economistas do campo liberal concebem a autonomia de bancos centrais um avanço institucional, tendo em vista que a autonomia operacional se justificaria em face da importância da manutenção do poder de compra das moedas soberanas, tautologicamente do interesse de todos, notadamente das menores faixas de renda, com reduzida capacidade de proteção de seus rendimentos num ambiente de conflito distributivo. Esses economistas ainda apoiam mandatos não-coincidentes entre os chefes de Governo e dirigentes de bancos centrais, a fim de contornar eventuais ímpetos populistas, ou ainda, que o poder incumbente da vez não seja capaz de influenciar, de forma perversa, os rumos da política monetária a seu favor.

Assim, para liderar a autoridade monetária, é condição necessária que o indicado detenha experiência técnica, sólida formação acadêmica, possua visão social, sendo ainda desejável que desfrute de reconhecimento entre seus pares, e que também tenha perfil discreto em face das características do cargo.

No Brasil buscou-se implantar uma autonomia formal em estágio avançado, com mandatos não-coincidentes entre o chefe da autoridade monetária e o Presidente da República, de forma radical e pouco debatida, com aparentes intenções veladas. O dirigente da Autarquia, em seu status inaugural de BC autônomo, embora detenha títulos, é pouco conhecido nos meios da pesquisa acadêmica, sua experiência principal era de dirigente de instituição financeira, foi indicado por Guedes para presidir o Banco Central, empossado ainda nos primeiros do governo anterior. Já em 2021, aprovada a autonomia, ganharia um mandato fixo até 31/12/24.

Importante reconhecer que já existia no Brasil uma autonomia operacional do BC, de facto, desde Lula I, quando o escolhido à época pelo petista, tido como fiador da política econômica junto ao mercado financeiro, definiu os rumos da política monetária com total independência. Como fora indicado em 2003 por Lula, as críticas à política monetária restritiva à época, leia-se juros altos, foi terceirizada por Lula a auxiliares de peso, como o vice-presidente. Agora, em seu terceiro mandato, Lula sentiu-se livre para criticar aquele que fora escolhido por Guedes, certamente com as bençãos do poderoso mercado.

Mas qual o sentido do resgate dessa memória? Explicar que a autonomia do Banco Central de 2021 foi de Arak. Ela nasce com um viés político extraordinário: contrapor-se à política econômica do petismo, que em tese contrariaria os interesses da banca, por mirar incluir “o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda “. E o presidente do BC brasileiro contribuiu para reforçar o caráter político-ideológico da autonomia do Banco Central do Brasil aprovada em 2021.

Em momento bastante conturbado da política nacional, com o país polarizado entre a sensatez (da maioria) e o fanatismo (de supostos patriotas que adotaram como imagem símbolo o amarelo da seleção canarinho), muito à vontade, o senhor Roberto Campos Neto (RCN) exerceu o seu direito de escolha nas eleições de 30 de outubro de 22, portando uma camisa amarelo-canário. Posteriormente, já com o novo Governo instalado, foi flagrado em grupo de Whatsapp, denominado “Ministros de Bolsonaro “, em 10 de janeiro de 2023, dois dias após os inaceitáveis atos antidemocráticos de 8 de janeiro, perpetrados por simpatizantes do candidato derrotado nas eleições presidenciais de outubro. Dois detalhes: 1) com a aprovação da autonomia do BC em 2021 o presidente da autarquia perdera o status de ministro; 2) após o flagrante da foto como membro do referido grupo, saiu.

RCN ferira de morte a autonomia de seu novo Banco Central. Demonstrou que tinha um lado. Faltou-lhe o saudável distanciamento político comum a presidentes de bancos centrais do mundo, ao menos daquele considerado desenvolvido, status que os defensores da autonomia formalizada no Brasil tivessem um dia almejado. Com efeito, é característica fundamental de presidentes de bancos centrais a discrição. Devem ser econômicos nas declarações a fim de não gerarem expectativas, capazes de influenciar agentes econômicos e desencadear movimentos especulativos. Devem muito menos demonstrar pendor político. Devem atuar como se esfinges fossem.

Nesse contexto, no final de janeiro de 2023, em comunicado da Autoridade Monetária que continha o resultado da reunião do Comitê de Política Monetária (COPOM), de manutenção da taxa de juros Selic em patamar elevado de 13,75% a.a., a Autarquia, “independente “, deu indicações taxativas que os juros permaneceriam elevados por um longo período. Desta vez, parece que a Autoridade Monetária estaria incorrendo em grave erro, e Lula, atento, entre tantas derrapagens de RCN, percebeu o viés político de sua atuação.

Lula, diferentemente de seu primeiro mandato, encontrou uma situação nacional de alto desemprego, com um terço da população faminta, sem desconhecer que existe uma crise internacional com a guerra da Ucrânia, somada a um crescimento econômico lento, mundo afora, situação econômica que parece cada vez mais se tornar permanente. A tarefa que Lula tem pela frente é muito desafiadora, tanto mais com uma taxa de juros de 13,75%, inibidora de investimentos produtivos, e do consumo das famílias. Assim, Lula, como lhe é peculiar, teve um grande tirocínio em criticar abertamente a política monetária de RCN. Em seu comunicado após a manutenção dos juros a 13,75% a.a., RCN demonstrou, na prática, pouca disposição em colaborar com o novo governo instalado no Brasil a partir de 1º de janeiro de 2023.

RCN, emparedado, sentiu o golpe, o que pode ser comprovado por seu enorme desconforto demonstrado na entrevista concedida ao programa Roda Viva, em 13/2/23. Quando confrontado pelos entrevistadores, tentou justificar sua taxa de juros de 13,75% a.a. com o esdrúxulo argumento de que a inflação brasileira teria um componente forte de demanda, que precisaria, portanto, do remédio amargo dos juros altos para refrear o consumo supostamente aquecido.

Pois é consenso mundo afora que a inflação contemporânea, que além do Brasil, encontra-se elevada na Europa, Estados Unidos, e nas demais economias emergentes, tem sua alta explicada, de um lado, por um choque de oferta originado da desorganização das cadeias produtivas, resultado da pandemia da Covid-19. O rigoroso lockdown da China, importante fornecedor de componentes eletrônicos ao mundo, reduziu a oferta desses bens, o que teve impacto nos custos de segmentos econômicos dependentes desses componentes em todo o mundo. De outro lado, a invasão russa da Ucrânia fez elevar os preços da energia e dos alimentos. A Rússia é grande provedora de insumos energéticos, o fornecimento de seu gás à União Europeia tem sido cercado de controvérsias, e são severas as sanções impostas à importação de petróleo russo, com repercussões globais nos preços de energia.  Por seu turno, a Ucrânia encontra dificuldades para exportar grãos ao mundo, o que tem gerado aumentos nos preços desses insumos.

Este diagnóstico das causas do aumento da inflação mundial é corroborado por economistas sérios e competentes, por revistas internacionais especializadas, por organismos econômicos internacionais, e por analistas de mercado.

Na véspera da entrevista de RCN, outro programa, o Canal Livre, exibia a entrevista com o sofisticado economista André Lara Rezende (ALR), que também corroborou que a alta dos preços era gerada por uma inflação de custos, resultado dos choques de oferta, e ainda atacou o elevado patamar dos juros brasileiros. Afirmou que o juro real no Brasil, de aproximadamente 8 pontos percentuais acima da inflação de 2022, é o dobro do juro real praticado no México e no Chile. Acrescentou que os juros elevados levam a um desaquecimento dos investimentos produtivos e a uma elevação da taxa de desemprego, e que no Brasil, como complicador, temos observado um crescimento na inadimplência das famílias, e atravessa-se um momento de dificuldades por parte de grandes empresas, e consequente contração da oferta de crédito pelos bancos.

Andre Lara apontou que a elevação da taxa Selic, que saltou de 2%, a partir de março  de 2021, para fechar 2022 no patamar de 13,75%, determinou um impacto sobre o estoque da dívida pública brasileira de 2% do PIB em 2021, e de 4% do PIB em 2022, isto é, 6% do PIB em 2 anos com uma “canetada “ do Banco Central, e comparou esse patamar com o impacto de 2% no PIB, implícito nos R$ 145 bilhões da PEC da Transição, que demandou enorme esforço político de Lula, mesmo antes de assumir seu terceiro termo na presidência do Brasil. Como se pode perceber das declarações de ALR, as críticas dirigidas a RCN não eram apenas políticas, como agentes do mercado e a imprensa mainstream fizeram crer, mas eminentemente técnicas, partidas de um economista competente, formulador do Plano Real, programa econômico que logrou debelar a superinflação brasileira.

Não é de mais imaginar que as opiniões corretas de ALR, de que não havia justificativa para uma taxa Selic tão alta, incomodaram mais a RCN que as críticas contundentes, e não menos acertadas, de Lula, muito embora não seja nada fácil ser confrontado por um presidente com enorme prestígio, interno e externo, feito Lula.

Em 2022 os juros da dívida pública brasileira alcançaram a cifra de R$ 591 bilhões! Segundo fontes do Banco Central, a Selic média de 2022 foi de 8,91%. Assim, acaso em 2023 a taxa Selic permaneça nos níveis atuais, sem qualquer redução, a conta juros do Governo central será recorde: R$962,5 bilhões. Destarte, emerge que o déficit público brasileiro é retroalimentado por essas taxas de juros descalibradas da Autoridade Monetária. No caso, ocorre uma brutal transferência de renda para pessoas físicas e jurídicas que detenham aplicações financeiras, ou seja, os rentistas.

Sob fogo cerrado RCN, ainda no Roda Viva, acenou uma bandeira branca no sentido de colaborar com o projeto do novo Governo Lula, e em evento no dia seguinte à sua entrevista, promovido por uma instituição financeira, afirmou que o mercado precisa ter mais boa vontade com o Governo. A conferir.

Corroborando-se a tese de ALR e de outros economistas sérios deste País, não há nenhuma justificativa para o Brasil ostentar a maior taxa de juro real do Planeta, para os leigos, juro real é a diferença entre a taxa de juros e a inflação. O quadro 1 acima revela essa disparidade. As economias avançadas praticam no momento juros reais negativos. Entre os emergentes a Rússia também está a praticar juros negativos, e os investidores seguem aplicando em títulos da dívida soberana de seus países. O ato de investir em títulos públicos mundialmente é considerado o investimento mais seguro dentre todas as aplicações financeiras disponíveis, e de grande liquidez. No Brasil atual, se trata de um maná: segurança, liquidez, e alta rentabilidade!

Assim, se será fato que RCN teria mesmo capitulado, tal estaria a revelar que Lula, coberto de razão, a seu modo, venceu o debate dos juros. Ao fim e ao cabo, foi Lula quem decifrou, e devorou a esfinge. E Lula segue afirmando que uma vez findo o mandato de RCN à frente do BC, em 31/12/24, reabrirá o debate em torno da autonomia do Banco Central, que não foi feito de forma técnica, nem adequada. Foi um movimento político do tal mercado.

A autonomia do Banco Central pode, por exemplo, perfeitamente prever que servidores de carreira da instituição, altamente qualificados, tenham exclusividade na assunção de cargos estratégicos no Banco Central brasileiro, em vez de agentes do mercado, como atualmente. Vale lembrar que nas administrações anteriores de Lula, sob a batuta de Henrique Meirelles, toda a diretoria do BC era composta de servidores de carreira, sendo dois deles advindos do Banco do Brasil, uma empresa pública. O BC já demonstrou que pode funcionar muito bem ao utilizar seus próprios quadros em postos estratégicos. É preciso que a autonomia do Banco Central seja de fato ser rediscutida, inclusive que redefinido o alcance do Congresso Nacional em fiscalizar a gestão do chefe da Autoridade Monetária. A título de exemplo, no centro do capitalismo mundial o presidente do FED, o BC americano, presta contas duas vezes ao ano em sessões no Congresso.

No caso da nossa autonomia, é preciso problematizar que nosso ambiente bancário altamente concentrado e oligopolizado, favorece a captura. Existe um duplo interesse: tutelar a política monetária, e a dinâmica da regulação bancária. Vale dizer que em outros países que possuem BC autônomos, a autoridade monetária cuida das funções precípuas de bancos centrais: as políticas monetária, cambial, e de crédito, a administração das reservas internacionais, e o principal, zela pela estabilidade econômica e da moeda, sendo que a regulação bancária é de competência de órgãos alheios aos bancos centrais. Pense nisso, meu caro leitor.

O nosso mercado, em última instância, teme, jocosamente, que a esquerda promova uma administração populista que leve ao descontrole orçamentário, o que alimenta seus pavores de insolvência. De memória curta, esquecem-se que um presidente conservador e de direita foi quem promoveu um calote na banca brasileira, há 32 anos, e nem se apercebem do que significou a gestão Bolsonaro para as contas públicas. Os mercados financeiros, irracionais, oscilam entre manias e pânicos. No nosso caso, a eterna chantagem sobre o governo promovida pelo míope e obtuso mercado financeiro brasileiro forja o pensamento da mídia conservadora, o que acaba por contaminar parcelas da sociedade. Mas Lula, que no início de 2023, com seu enorme prestígio, delimitou o espaço de quem historicamente insiste em tutelar a nação brasileira, desde os primórdios da República, agora promete delimitar o espaço que cabe aos agentes do mercado, que não são eleitos pelo povo.

Essas instituições que ora Lula enfrenta com muito élan, são sempre muito sensíveis quando se trata de defender seus interesses comezinhos, e nada nada sensíveis com as causas sociais, razão de ser do Partido dos Trabalhadores! Mas é preciso estar alerta, pois essas forças ora contidas por Lula, ambas são afeitas ao golpismo, revanchismo e possuem gosto pelo poder. Por isso, vida longa a Lula!

(*) Vito Farina é colaborador do site Página 13.

 

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