Por Valter Pomar (*)
Invejo -especialmente nos dias de domingo – quem, sendo parte de um coletivo, fica em paz cuidando só de uma parte do jardim.
Isto posto, quero comentar a “carta ao leitor” da mais nova edição da revista Focus.
Não sei, falando sinceramente, quantas pessoas leram ou vão ler esta edição. Mas por via das dúvidas, dirijo ao editor a seguinte “carta do leitor”,
Prezado Alberto Cantalice
O Partido dos Trabalhadores é plural. Faz parte desta pluralidade a militância que teve passagem em outros partidos. É caso de muitos militantes comunistas. Alguns vieram para o PT, especialmente na década de 1980, por enxergarem no Partido uma estratégia oposta ao “etapismo” e a “conciliação de classes”. Outros vieram para o PT, especialmente nos anos 1990 e depois, por enxergarem no PT a possibilidade de implementar – desta vez com êxito – a estratégia etapista e de conciliação de classes.
Enfim, é a dialética dos tempos.
Mas deixemos isso para outro momento.
Escrevo para comentar a “carta ao leitor”, assinada por voce e publicada na revista Focus de 10 de julho de 2023. Como é domingo, serei sintético.
Achei descabelada a simetria que voce estabelece entre a “disseminação das fake news” e a “disseminação do politicamente correto”. Como sou ouvinte da Jovem Pan, sei que o ataque ao politicamente correto é uma das obsessões da extrema-direita. Portanto, não acho trivial misturar as duas coisas no mesmo saco.
Acusar o “politicamente correto” – seja lá o que voce entende por isso – de “dar azo (sic) às ideias de negação da política e do desapreço aos valores democráticos” me lembra, para ser franco, aquele pessoal que reclama ser vítima de “racismo reverso”.
Em resumo, não se deve confundir nunca eventuais exageros do oprimido, com as práticas do opressor.
O problema, penso eu, é que você tem uma obsessão contra quem defende a “luta antissistema”. Talvez você não perceba, mas esta tua obsessão está te convertendo – como aconteceu com muitos que passaram pelo movimento comunista – num defensor do sistema. Tuas opiniões sobre os temas da segurança pública e o papel da política estão, na minha opinião, relacionados a este viés por ti adotado.
Além disso, você – na minha opinião – confunde causas com efeitos. O que causa a “fratura do tecido social” não são as mentiras monetizadas, o que causa a fratura do tecido social é a dinâmica do capitalismo, do neoliberalismo, dos processos econômicos e sociais que criam um ambiente material no qual floresce todo tipo de comportamento antissocial, inclusive as mentiras monetizadas. E os campeões do comportamento antissocial não são os lumpens que moram na rua, os campeões do comportamento antissocial são os bacanas que moram nos condomínios de luxo.
Como voce confunde as coisas, tua abordagem sobre os acontecimentos recentes na França estão mais preocupados em denunciar os “episódios de depredação e saques” do que em compreender as causas destes episódios, a começar pela política do Macron. Aliás, cá entre nós, para usar o teu termo, são “episódios”, não são a história inteira, embora a grande imprensa – e certos intelectuais de esquerda – estejam mais preocupados com isso do que com a depredação e saque que a grande burguesia (francesa, inclusive) promove todo santo dia contra o povo, especialmente os migrantes.
Outra coisa: a analogia entre junho de 2013 e os “episódios” recentes na França existe, mas também existem uma “certa similaridade” com os “episódios” ocorridos nos Estados Unidos, depois do assassinato do George Floyd. Não foi apenas a “empregabilidade” e o “futuro”, foi a violência policial, o assassinato cometido por um cidadão fardado, não um, mas muitos e muitos e muitos, protegidos por uma legislação (de 2017) que dá aos policiais o direito de usar sua arma “em legítima defesa”. Mas desta vez, o crime foi filmado e o caldo entornou.
Portanto, Cantalice, a indignação legítima que explodiu nas ruas não foi com o assassinato de “um” jovem, foi com o assassinato de muitos jovens e, além disso, com a barbárie cotidiana a que são submetidos os jovens migrantes e filhos de migrantes na “republicana” França. Sabe aquilo que você aprendeu em Moscou, na escola do Partido, sobre a transformação da quantidade em qualidade? Pois é, é um caso clássico.
Por isso, eu tenho vergonha alheia quando vejo escrito – na carta ao leitor da revista publicada pela instituição de que eu sou diretor – a frase “a partir de uma indignação legítima … chegou-se a um movimento embalado pelo discurso de ódio, de demonização das instituições republicanas, insuflado pela extrema-direita que descambou no caos”.
Me dá vergonha, porque 1/essa descrição não corresponde aos fatos e 2/confunde oprimido com opressor e 3/também porque revela que voce esqueceu daquela passagem, acho que do Brecht: “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem.”
Ademais, Cantalice, é óbvio que há criminosos aproveitando e é óbvio que a Le Pen se beneficia do que está ocorrendo. Ou seja, é óbvio que Macron está pavimentando o caminho para Le Pen. Mas qual é o caminho para impedir que isso ocorra? Como colocar ordem no caos? Com a paz dos cemitérios, com mais repressão? Ou reconhecendo a legitimidade dos protestos e mudando as políticas públicas, inclusive dissolvendo a brigada responsável pela repressão (sim, meu caro, os franceses também tem sua polícia militarizada)?
Sem uma posição firme e nítida sobre isso, não tem como disputar narrativas. A tua posição – ao contrário do que você parece acreditar – não é generosa, não é inclusiva, nem é alternativa ao extremismo direitista.
Tenha um bom domingo, atenciosamente
Valter Pomar
(*) Professor e membro do diretório nacional do PT